O deserto e os subúrbios de classe média fazem parte da mitologia norte-americana. Numa sociedade de origem puritana, são lugares que contrastam com vida urbana cosmopolita, sinônimo de caos e degradação moral. Mas mesmo nesses lugares, o Mal está à espreita, aproveitando-se dos pontos fracos morais das pessoas. Essa é a quintessência do gótico americano, representado pela minissérie Netflix “Bem-Vindos à Vizinhança” (The Watcher, 2022), sobre o sonho americano que se transforma em pesadelo: um casal novaiorquino compra uma linda casa em tons pasteis em subúrbio de classe média. Quando começam a receber cartas ameaçadoras de um anônimo que conhece todos os detalhes do cotidiano daquela família. Até a racionalidade ser sugada pela paranoia e obsessão.
O gênero gótico surgiu na Europa, intimamente associado com o movimento do Romantismo nos séculos XVIII-XIX. Castelos, masmorras, grandes corredores labirínticos através dos quais transitam pessoas ou personagens sobrenaturais e acontecimentos que ocorrem no limite entre o fantástico e o estranho, apagando as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Essencialmente, é um gênero que explora o medo do desconhecido, seja diante do sobrenatural (espectros, fantasmas, demônios etc.), seja diante da psicologia do terror – loucura, medo etc.
Saindo do velho continente, o gótico criou um subgênero nos EUA: o “Gótico Americano”, cujas raízes estão em nomes como Edgar Allan Poe, Washington Irving, Herman Melville, até chegarmos ao século XX com H.P. Lovecraft e Stephen King.
O Gótico Americano se distingue das origens europeias por ter surgido em uma sociedade puritana: O Fantástico e o medo do desconhecido se confundem com dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a percepção corpo fragmentado do corpo pela infante pré-formação do ego (daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror) etc.
Porém, a quintessência do subgênero norte-americano é a incapacidade do protagonista gótico de superar a perversidade pelo pensamento racional, sendo sugado pela loucura e paranoia.
A mais nova série de terror do Netflix Bem-Vindos à Vizinhança (The Watcher, 2022) é um conto baseado em um caso real, sem solução e finalmente arquivado, reportado em uma matéria investigativa pela revista “New York” – clique aqui. Um caso real transformado em uma narrativa gótica americana, transposto para não só para a pedra de toque do sonho americano (a típica casa de subúrbio de classe média em tons pastéis) com um subtexto composto por uma série de fixações contemporâneas: mercado imobiliário, reforma de casas, teorias da conspiração ao estilo QAnon, redes sociais, racismo, #MeToo e, claro, dinheiro.
A minissérie segue Dean e Nora Brannock, um casal baseado na história real de Derek e Maria Broaddus, que compraram uma casa em Westfield, Nova Jersey, em junho de 2014. Que se transformou em um pesadelo quando eles começam a receber cartas misteriosas de uma pessoa que se autodenomina “O Vigilante”.
Colocando todos os seus meios de subsistência, segurança e a própria imagem em jogo, Nora (Naomi Watts) e Dean Brannock (Bobby Cannavale) estão dispostos a fazer qualquer coisa para descobrir quem está aterrorizando suas vidas.
Desde Poltergeist (1982) o tema do lado sombrio dos imóveis de subúrbios torna-se recorrente na filmografia americana. Criada por Ryan Murphy e Ian Brennan, a série Netflix não que apenas tratar sobre aquilo que nos assusta. Mais do que isso, a dupla quer mostrar aquilo que nos obceca.
Um casal que frequenta o circuito financeiro-cultural de Nova York (ele, trabalhando num escritório de investimentos; ela, uma artista plástica) e que vê numa suntuosa casa no subúrbio de New Jersey uma forma de ter uma vida de qualidade e segurança para os filhos, longe do caos urbano de uma metrópole.
Diante da irrupção do irracional e do perverso em pleno sonho americano que se tornou realidade, acompanhamos a lenta descida dos protagonistas do aparentemente seguro mundo racional (o dinheiro que paga câmeras de segurança e uma investigação particular, o suporte de serviços de corretores e da polícia local etc.) para a loucura e paranoia: nada é o que aparenta ser.
É o momento em que a minissérie deriva do gótico para o noir (outro gênero tipicamente americano) com a presença do detetive, tão impotente como seus próprios clientes. O destino do detetive pós-moderno: a própria investigação volta-se contra o próprio detetive, negando a ele a objetividade racional.
A Minissérie
Como a história real em que se baseia, The Watchersegue um casal, Dean e Nora Brannock (Bobby Cannavale e Naomi Watts), enquanto eles compram uma casa majestosa a uma hora de Nova York no cobiçado endereço 657 Boulevard. Assim como o casal que teve essa experiência na vida real, eles começam a receber cartas de um escritor anônimo que diz estar vigiando a casa e dá a entender que ela pode ser assombrada. Os detalhes nas cartas – sobre os filhos dos Brannocks, Ellie (Isabel Gravitt) e Carter (Luke David Blumm), e o comportamento da família, tornam-se cada vez mais específicos e perturbadores. Os Broadduses, o casal que realmente passou por essa experiência traumática, nunca se mudou para o 657 Boulevard. Mas na versão da Netflix, os Brannocks, que literalmente investem todas as suas economias na propriedade, instalam-se na residência.
Pouco tempo depois de se instalarem e começarem a reformar sua cozinha, os Brannocks estabelecem relações tensas com vários de seus vizinhos, incluindo Mitch (Richard Kind) e Mo (Margo Martindale), um marido e mulher que não tem escrúpulos em invadir o quintal dos Brannocks para colher rúcula. "Vamos fazer a salada mais deliciosa de todas as nossas vidas", Mo sibila na direção de Dean depois que ele grita com eles por invadirem em nome da coleta de alface.
A excêntrica historiadora local Pearl Winslow (Mia Farrow) e seu irmão com deficiência intelectual Jasper (Terry Kinney) também tendem a aparecer sem avisar, às vezes até no elevador de comida da casa. Como historiadora que pertence a uma associação de preservação do patrimônio histórico, ela está obcecada com a possibilidade da reforma dos Brannocks descaracterizar a casa.
As pessoas que Nora e Dean pedem ajuda – um detetive de polícia local arrogante e desmotivado (Christopher McDonald); um jovem especialista em segurança chamado Dakota (Henry Hunter Hall), que se interessa por Ellie; e a amiga/agente imobiliária Karen Calhoun (Jennifer Coolidge) — oferecem apenas uma ajuda modesta. Eles têm mais sorte quando contratam Theodora Birch (Noma Dumezweni), um detetive particular mais disposto a seguir pistas do que os policiais. Mas essa “melhor sorte” impulsiona Dean a descer pela toca de coelho da paranoia e das teorias conspiratórias. Chegando ao cúmulo QAnon: sua vizinha historiadora (que parece ter saído do quadro do pintor gótico americano Grant Wood) e sua associação parecem fazer parte de uma seita satânica com um antigo vínculo com a casa dos Brannocks.
Mitologia Americana
Ao lado do deserto, a vida dos subúrbios faz parte de uma grande mitologia norte-americana: nascida de uma sociedade puritana dos pioneiros, a vida urbana cosmopolita tornou-se sinônimo de caos e degradação moral. O deserto, com seus grandes horizontes e vasta horizontalidade, tornou-se o ponto de fuga pela pureza e simplicidade árida das formas – em contraste ao barroco da desordem urbana. E a vida suburbana, com seus tons pastéis e infraestrutura de classe média, o sonho puritano da pureza familiar longe das tentações metropolitanas.
Mas no gótico americano, o estranho e o perverso estão à espreita nesses lugares: perseguidores assassinos e red necks sanguinários com suas serras elétricas estão à espreita na desolação das estradas e motéis nos desertos; e nos subúrbios, o outro (o vizinho, o forasteiro etc.) como uma ameaça latente – daí o recorrente tema cinematográfico de famílias ameaçadas com invasões.
Logicamente pelas suas origens puritanas, o subgênero guarda o tom moralizante: o Mal só prevalece por explorar as fraquezas morais internas de protagonistas e famílias.
Em Bem-Vindos à Vizinhança os pontos fracos centram-se na obsessão de Dean em ser o marido provedor, nem que seja às custas da mentira (ele esconde de todos que está financeiramente quebrado após a compra da casa), na obsessão de Nora em ascender no frívolo mercado das artes novaiorquina e na filha adolescente que tem secretamente um caso com alguém mais velho.
E “O Vigilante”, o misterioso personagem que redige as cartas e parece conhecer todos os detalhes do cotidiano da família, além de conhecer de todos os pontos fracos. É o conhecido tropos dos filmes de terror - o Mal somente pode agir por dois flancos: ao ser convidado a entrar ou pelas falhas morais como a mentira, hipocrisia e a sexualidade adolescente.
A minissérie ressente-se de uma sucessão de plot twists, tão intensa que começa a dar a sensação nos últimos episódios de que a dupla de criadores teria que terminar a produção de qualquer maneira, deixando uma série de linhas soltas, suspensão de descrença, e, principalmente “Deus ex machina” - termo para designar soluções arbitrárias, improváveis, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saídas em roteiros malconduzidos.
Ficha Técnica |
Título: Bem-vindos à Vizinhança (minissérie) |
Criadores: Ian Brennan, Ryan Murphy |
Roteiro: Ryan Murphy, Ian Brennan, Reeves Wiedeman |
Elenco: Naomi Watts, Bobby Cannavale, Mia Farrow, Henry Hunter Hall, Isabel Gravitt |
Produção: Ryan Murphy Productions |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2022 |
País: EUA |