A morte do líder esquerdista uruguaio Pepe Mujica revelou que a sua persona transcendeu as diferenças do espectro político. Tanto que jornalões e portais da grande mídia tiveram que colocá-lo nas manchetes principais como “emblemático líder da esquerda”. Mas o jornalismo corporativo não dá o braço a torcer. É nesse momento que entra em ação a costumeira criatividade semiótica e a piruetas retóricas dos “aquários” das redações. Afinal, o momento é delicado – estamos num ano pré-eleitoral. Em tempos de agenda neoliberal, suas referências guerrilheiras e marxistas foram tratadas como “paradoxos” de um “humanista”... quase um santo, em tempos de novo Papa. Ou ainda um pretexto para mais um recall da Lava Jato: “ele era de esquerda, sem corrupção”, como fez questão de frisar um “colonista” da TV. Além de Mujica ser submetido à mesma operação semiótica de limpeza ideológica do Papa argentino Francisco: o líder uruguaio tornou-se “ideogênico”: ideologicamente “fotogênico”, palatável, anódino, de um humanismo genérico e abstrato.
Nesta terça-feira (13) faleceu o
ex-presidente do Uruguai (2010-2915), Pepe Mujica, aos 89 anos. Grande líder da
esquerda uruguaia, ex-guerrilheiro, preso político e agricultor, travava uma
batalha contra o câncer. Sem possibilidade de cura, estava sob tratamento paliativo.
Mujica foi o caso de um personagem
que transcendeu a opção política e ideológica. Tornou-se emblemático e símbolo mundial
pela sua coerência ética e ideológica, pela humildade quando esteve no poder
(contrastando com a pompa como o poder é representado na AL) e como manteve a arguta
consciência crítica e capacidade de reflexão até o fim.
Num ponto de vista marxista, a
trajetória de militância e reflexão de Pepe Mujica talvez seja a que melhor
representou a filosofia da práxis - a importância da atividade prática
(a "práxis") na transformação do mundo e na compreensão da
realidade. Quando a teoria está intrinsecamente ligada à ação, e que o
conhecimento é produzido através da experiência e da reflexão sobre a prática.
Uma figura com tal envergadura,
capaz de ter transcendido o próprio espectro político, deixou a grande mídia
numa saia justa: o peso moral da figura de Pepe Mujica tornou para o jornalismo
corporativo impossível passar indiferente. Ou, pelo menos, restringir a morte
de Mujica a uma simples notícia em um drops no rodapé de uma página qualquer.
Não. Foi obrigada a dar manchete
nas primeiras páginas dos jornalões, nas escaladas dos telejornais e virar tema
dos “colonistas” que habitualmente espezinham qualquer coisa que pareça “de
esquerda” em seus espaços nos portais da Internet e nos jornalões.
Mas a gente sabe que o jornalismo
corporativo jamais dá o braço para torcer. É nesse momento que entra em ação a
costumeira criatividade semiótica e a piruetas retóricas dos “aquários” das
redações. Afinal, o momento é delicado – estamos num ano pré-eleitoral.
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Sempre sensível ao timing e
contexto, a grande mídia foi buscar inspiração em dois eventos do momento: a
morte do Papa e o recall da Lava Jato – a concessão de asilo concedida pelo
Governo Lula à ex primeira-dama do Peru, Nadine Heredia (condenada pelo braço
peruano da Operação Lava Jato), e a prisão do ex-presidente Collor de Mello em
razão de uma condenação baseada nas investigações da operação Lava Jato.
Primeiro, fazer obituários transformando
o líder uruguaio em um humanista que mereceria ser canonizado. Como um Papa que
morreu. Santo Mujica! E, segundo, um político progressista humilde que não caiu
na tentação da corrupção que acomete dez em cada dez esquerdistas. Como mostram
a história recente das vizinhas Argentina e Brasil. Um esquerdista como Mujica
não existe!
Em tempos de fazer descer a fórceps
a agenda neoliberal na garganta dos latino-americanos, definitivamente a filosofia
da práxis de Mujica não é um bom exemplo para ninguém: quando foi presidente do
Uruguai, o salário-mínimo teve um aumento de 250%. Em sua gestão o gasto social
saltou de 60,9% para 75,5% do total do gasto público, intensificando programas
sociais e distribuição de renda - Mujica buscou manter uma política econômica
que combinasse crescimento com inclusão social.
Definitivamente, uma gestão de
esquerda. Ou, como quer o jornalismo corporativo, “progressista”, mas no
sentido da pauta de costumes. Que, aliás, é por onde transita a extrema-direita
– um jornalismo que avalia um governo de esquerda pelos mesmos critérios de um
governo como, por exemplo, Donald Trump.
Portanto, a presidência de Mujica
teria sido “progressista”: com Mujica na presidência o Uruguai tornou-se o
primeiro país do mundo a legalizar e regulamentar completamente o mercado de
maconha, desde o plantio e distribuição até a venda para uso recreativo; legalizou
o casamento entre pessoas do mesmo sexo, tornando-se um dos primeiros países da
América Latina a garantir esse direito; por descriminalizar o aborto.
Na grande maioria dos obituários
da grande mídia, Mujica é avaliado como “progressista” não por desafiar a
hegemonia liberal, mas pela sua pauta de costumes.
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Quando se é obrigado a falar da
sua trajetória como guerrilheiro tupamaru que sequestrava americanos, assaltava
bancos para financiar o movimento e fugia da Prisão de Punta Carretas, o líder
uruguaio passa a ser descrito como alguém com uma vida de “paradoxos”, como
eufemisticamente vaticinou a jornalista e apresentadora da Globo News Daniela
Lima – foi um democrata, mas também foi guerrilheiro de esquerda.
Para a inacreditável jornalista,
Mujica foi um “paradoxo”: como, de uma guerrilha sul-americana que congregava
maoístas, comunistas, anarquistas, socialistas, pariu um homem humilde, “progressista”
e incorruptível avesso às pompas do poder?
Daí para o processo semiótico de
canonização, estamos a um passo. Como disse a certa altura outro inacreditável “colonista”,
Valdo Cruz, da Globo News, “Pepe Mujica era de esquerda e não corrupto”, sugerindo
marotamente uma conjunção adversativa... Afinal, como a jornalista Daniela Lima
observou, Mujica era mesmo um tipo inexplicável, um “paradoxo”.
Então, se estamos no campo do
inexplicável, então a grande mídia o coloca no campo dos fenômenos religiosos.
Em tempos de novo Papa.
O que predominou nos obituários do
jornalismo hegemônico foi aquele impulso do líder uruguaio à distribuição da
renda não através de políticas de Estado ou dirigido por ideologias, mas
através (para usar as expressões da moda) da compaixão, empatia, inclusão, ou
seja, através do simples impulso da caridade.
Tal a vida dos santos levava uma vida “espartana” (outra expressão dos “colonistas na TV”) ou “austera” (adjetivo adorado pelos neoliberais do Estado Mínimo austero) de um homem que vivia numa chácara, andava em um fusca 87 azul odiava gravata e protocolos, além de doar dois terços do seu salário às moradias populares, capaz de tirar uma nota de 100 pesos do bolso para dar para um homem sem teto que o interrompeu em uma entrevista pedindo uma moeda. Essa lista para montar o perfil do líder foi a que predominou (evitando lembrar muito da suas "anarquices" e "comunices" da juventude). Certamente, para não cair nos “paradoxos” da jornalista Daniela Lima.
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Pepe Mujica, Papa Francisco e a ideogenização
Desse mesmo mecanismo semiótico de
espiritualização ou subjetivização para esconder a ideologia, também foi alvo o
Papa Francisco. Principalmente quando os
comentários dos “colonistas” tentaram responder à pergunta: qual o legado de
Pepe Mujica?
O incômodo materialismo das suas
leituras marxistas e anarquistas e a sua filosofia da práxis que orientou a sua
coerência política, foram substituídos por esse mecanismo de, por assim dizer, ideogenização
– como tornar Mujica ideogênico (ideologicamente fotogênico, palatável,
anódino)... assim como fizeram com o argentino
Papa Francisco.
Como o Papa, Mujica falava coisas
incomodamente materialistas como empobrecimento, exclusão e reprodução da pobreza
– sem falar da necessidade pela integração latino-americana. Expressão
que causa arrepios aos jornalistas corporativos.
De repente, são substituídas por
observações condescendentes como “que falta a empatia de Mujica fará” (Jean
Wyllys); ou “Mujica abandonou a revolta partidária pela mudança interior”
(Folha), “empatia com o povo” (O Globo) etc.
Mas assim como foi ressignificado
com o Papa, Pepe Mujica chegou a essa práxis não por uma compreensão racional
ou analítica da realidade que orientou a sua coerência política. Mas tudo
porque o Mujica foi “empático”, “humilde”, “inclusivo”, “tolerante com o inimigo”
etc.
Dessa maneira, grande mídia conseguiu
colocá-lo nas manchetes e portais e jornalões. Deixou de ser um esquerdista
(embora todos as manchetes o qualificassem como “ícone da esquerda da América
Latina”, como se desculpasse com os leitores por ser obrigado a noticiar) para
se tornar ideogênico ... quase um santo.
Apesar dos “paradoxos”...