Nesse momento acompanhamos um grande esforço promocional para mostrar que a Inteligência Artificial é de fato... inteligente. Um esforço sofisticado, porque mobiliza também supostos críticos, como o filósofo Yuval Harari, que acha que por conta própria os algoritmos poderão achar que o ser humano é redundante e decidir dominar o muno. Nesse esforço tenta-se rebaixar a noção de “inteligência”: o exercício diário de tratar máquinas ou aplicativos como formas de inteligência reais. Por isso, Karl Marx tornou-se tão atual - o trabalho morto (os algoritmos) domina o trabalho vivo (o saber-fazer). O modus operandi do Capitalismo desde Revolução Industrial – tirar do trabalhador o controle e capacidade criativa para incorporá-lo nas máquinas e ferramentas. Do tear mecânico até a Inteligência Artificial que se transforma num zeitgeist-fetiche que oculta a luta de classes. O que sobraria ao trabalhador expropriado do seu conhecimento acumulado é transformar o próprio eu como marca para se diferenciar no mercado. Resultando na “Sociedade do Cansaço” (Byung-Chul Han): encenar a si mesmo cansa!
São dois lados de uma mesma moeda: Inteligência Artificial e
“Sociedade do Cansaço”, conceito criado pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul
Han para descrever a enfermidade psíquica da sociedade atual.
De um lado, temos um grande esforço envolvendo tons
propagandísticos, pós-humanistas distópicos e messiânicos para promover a
Inteligência Artificial como um destino inevitável da evolução humana; e do
outro, um conceito que tenta representar uma sociedade cujos transtornos,
síndromes, desordens e déficits neurológicos se tornaram tão cotidianos que
ganharam um inédito impacto cultural e midiático.
Esses dois lados fazem parte de um mesmo fenômeno que só podemos
descrevê-lo como o zeitgeist desse início de século XXI – o espírito da época
que molda a forma como as pessoas pensam, agem e interagem. Um fenômeno
que se tornou uma força cultural e intelectual que influencia o desenvolvimento
social e a evolução dos valores e tendências da atualidade.
Mais uma vez, avanços tecnológicos como a IA surgem dentro de uma
retórica utilitarista: a longa história da busca dos códigos digitais em emular
o pensamento humano desde o famoso Teste de Turing no pós-guerra até a atual
engenharia dos algoritmos das Big Techs vem embalada pelo discurso de que tudo
se trata de auxiliar a humanidade, poupando-a de trabalhos repetitivos e
enfadonhos, aumentando a produtividade e deixando mais tempo para o ser humano
ser... mais humano.
Mas o que acompanhamos é exatamente o contrário, como a realidade
atestada pelo conceito de Byung-Chul Han – nunca as exigências do mundo do
trabalho foram tão urgentes e até invasivas: não se trata mais de comprovar uma
proficiência profissional, mas apresentar a competência comunicativa,
psicológica ou cognitivas corretas.
Como descreve Byung-Chul Han, a negatividade disciplinar do velho
mundo do trabalho do século XX (centrada na disciplina e controle do
saber-fazer) foi substituída pelo excesso de positividade do mundo corporativo
que exige a constante performance do EU – o gerenciamento de si mesmo como
marca diferencial na qual o antigo saber-fazer foi colocado em segundo plano.
Foi substituído pelo bombardeio neuronal das redes sociais, smartphones, home
office, o trabalho precarizado mediado por plataformas digitais, o trabalho
corporativo fragmentado por "jobs" etc.
Nesse novo ecossistema, o que importa é performar a competência
comunicativa ou cognitiva de sucesso. A proficiência profissional foi
substituída pela relacional, o ofício pela performance de si mesmo. Até porque
o saber-fazer foi incorporado pela IA. Cabendo ao profissional ser um
facilitador de processos.
Numa terminologia marxista, é quando o trabalho morto (os
algoritmos) domina o trabalho vivo (o saber-fazer). Seria o modus operandi do
velho Capitalismo, desde as máquinas a vapor, o tear mecânico e a máquina de
fiar da Revolução Industrial inglesa do século XVIII – tirar do trabalhador o
controle e capacidade criativa para incorporá-lo nas máquinas e ferramentas. Do
tear mecânico até a Inteligência Artificial.
Expropriação do conhecimento
O Capitalismo não começou exatamente na sua forma comercial,
quando transformou a mercadoria num equivalente geral e o mercado como uma
praça pública universal. Na verdade, o Capitalismo começou para valer quando
caiu a ficha do Capital de que o verdadeiro entrave para a sua livre acumulação
era a força de trabalho – artesões e manufatureiros eram donos de si mesmos,
isso é, detinham a técnica e suas próprias ferramentas criadas a partir de um
conhecimento acumulado por gerações.
Ou seja, tinham a autonomia para ditar seu próprio tempo, ritmo e
as suas próprias metas comerciais. Pode parecer a descrição atual do moderno
empreendedor. Mas a diferença é que, hoje, o capital está travestido de
plataforma digital.
Para quebrar a última resistência contra a liberdade plena do
capital, as oficinas criaram as máquinas a vapor, dando início a Revolução
Industrial – ferramentas e conhecimento do ofício acumulado foram expropriados
do trabalhador e alocados na máquina. O trabalho complexo torna-se simples,
reduzido a movimentos repetitivos e o ritmo da produção (e do lucro) comandado
pela gerência que agora administra grandezas quantitativas. E não mais
qualitativas, complexas e difíceis para serem encaixadas em, por exemplo,
planilhas ou relatórios de produção.
Karl Marx descreveu muito bem esse processo na sua obra máxima “O
Capital”. Principalmente o fenômeno tipicamente capitalista em que o trabalho
morto (o trabalho passado incorporado pela máquina) domina o trabalho vivo (do,
outrora, artesão), transformando-o em operário – aquele cuja função é apenas
azeitar o processo de produção (e fazer a manutenção da máquina) para torná-lo
mais rápido e lucrativo. E toda a fantasmagoria ideológica que oculta essa
realidade: o fetichismo da mercadoria.
Toda genialidade
tecnológica do Capitalismo surge dessa premissa simples, mas fundamental para a
sobrevivência do capital: transformar aquilo que é complexo e qualitativo em
simples e quantitativo. Da máquina a vapor, passando pela eletrificação e o
surgimento da linha de montagem, chegando à automação por máquinas de controle
numérico, robótica e controle de processos por computador, o objetivo é expropriar
da força de trabalho o saber-fazer, o ofício e o conhecimento acumulado,
transferindo-os para níveis de comando cada vez mais elevados.
E percebe-se que o sentido do desenvolvimento tecnológico é partir
da expropriação do conhecimento do chão da fábrica (os chamados “colarinhos
azuis”) até alcançar cada um dos níveis dos “colarinhos brancos”: capatazia,
gerência, diretoria etc.
Com a Inteligência Artificial, finalmente o capital alcança o topo
da hierarquia dos “colarinhos brancos”: os trabalhadores intelectuais – o poder
decisório, criativo e avaliador de CEOs, professores, juízes, artistas,
programadores, designers, engenheiros etc.
Assim como os “colarinhos azuis” eles não desaparecerão
completamente – serão apenas reduzidos drasticamente, resultando num grande
contingente populacional quem nem mais para ser explorado servirá. Os que
restarem, terão a descrição de função ressignificada: se tornarão “facilitadores”,
“tutores”, “orientadores”, “responsáveis” etc.
De todas as máquinas inventadas pelo Capitalismo, a Inteligência
Artificial é a ideologicamente mais delicada. Da máquina a vapor à robótica foi
fácil a expropriação do conhecimento dos trabalhadores: tudo passou como uma
evolução inevitável para aumentar a produtividade, satisfação dos consumidores
etc. A Publicidade e a Sociedade de Consumo justificaram isso.
Rebaixar a noção de “inteligência”
Com a IA é mais complicada: dessa vez a expropriação é do trabalho
intelectual, de criação, decisão e julgamento. A PsyOp deve ser mais elaborada
para induzir a acreditar que algoritmos, aplicativos etc. são, de fato,
ferramentas realmente inteligentes. Para acreditarmos nisso, temos que
obrigatoriamente reduzir os nossos padrões de inteligência humana – o exercício
diário de tratar máquinas ou aplicativos, como por exemplo Waze ou Google Maps,
como formas de inteligência reais. O que resulta num senso de realidade mais
flexível.
Essa PsyOp elaborada, por exemplo, pelo filósofo ideólogo do Vale
do Silício, Yuval Harari, apela para o terror distópico. Segundo ele, a
humanidade estaria próxima de se tornar irrelevante - o ser humano se
tornaria “redundante” ou “irrelevante” porque os algoritmos se tornariam
“inteligentes” - clique aqui. Uma narrativa
promocional criada pelas corporações para rebaixar ou tornar mais flexível a
noção de “inteligência” – acreditamos que os algoritmos “ampliam nossas
habilidades”. E, por isso, nos ameaçaria de obsolescência ao substituir a
autoridade humana.
Para o cientista computacional e design de softwares Jaron Lanier,
essa inversão é a base de uma religião que está sendo gestada nesse momento no
Vale do Silício: a religião da auto abdicação humana – computadores se
humanizam, enquanto humanos se tornam “processadores de informação” rebaixando
os padrões do que entendemos como inteligência.
Tudo se passa como se os “algoritmos” de repente alcançassem a
singularidade e decidissem por conta própria dominar a humanidade – Elon Musk,
por exemplo, vislumbra esse futuro distópico. Por isso... vamos para Marte!
Por isso a IA alcança o status de zeitgeist moldando a
forma como as pessoas pensam, agem e interagem. Ganha uma narrativa fetichista
que oculta o modus operandi do velho capital: transformar o trabalho
intelectual complexo em rotinas simples. Apenas que, dessa vez, o “progresso” não
mira mais os colarinhos azuis, mas o topo dos colarinhos brancos.
Expropriado do seu saber-fazer, do seu conhecimento profissional
acumulado por gerações (e transmitido pela educação universitária) e
transformado num “gestor” ou “facilitador”, o que resta ao trabalhador
intelectual do que a si mesmo – o seu Eu como marca a ser promovida, personalidade
que deve ser performatizada.
Não é por menos que cada vez mais os processos seletivos
corporativos estão se assemelhando a games ou reality shows. Há uma lógica
nisso: se o conhecimento técnico e proficiência profissional foram rotinizados pelos
algoritmos, o único diferencial passa a ser relacional, comunicativo – as novas
competências necessárias: proatividade, resiliência, empatia, liderança,
identificação, inteligência emocional. Quando se fala em “conhecimentos
específicos”, nada tem a ver com a profissão ou ofício, mas “proficiência em
softwares, ferramentas ou processos específicos da área”.
Ou seja, um facilitador, assim como, na Revolução Industrial, o
operário era o responsável pelo bom funcionamento da máquina: mantê-la
lubrificada etc.
Não por menos que temos como presidente do Império norte-americano
um ex apresentador de um reality show televisivo, “O Aprendiz”, Donald Trump,
que transformava um processo seletivo em um game, cujo final era emblemático: “You
Fired!”... Trump demitia um candidato que não correspondesse à performance
exigida.
Um exemplo na nossa realidade brasileira: a TV Tribuna (emissora
afiliada a Rede Globo de Santos/SP) criou o programa “Reality Porto” – um game
de processo seletivo dividido em episódios cujo vencedor conseguirá uma
colocação em uma conceituada empresa portuária. Cada vez mais critérios,
comunicacionais, comportamentais e emocionais dos processos seletivos se
aproximam da linguagem ficcional. Televisiva ou teatral.
O cansaço de encenar a si próprio
Encenar a si mesmo cansa! Também não é por menos que a nossa
sociedade pode ser definida como a “sociedade do cansaço”, como conceitua o
filósofo Byung-Chul Han.
Se no século passado o grande mal era o stress ou a “estafa” pelo
ritmo do trabalho segundo o paradigma da linha de montagem, no século XXI os
males ficaram psiquicamente e neurologicamente mais perversos: a depressão,
déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, transtorno de personalidade
limítrofe, síndrome de Burnout e assim por diante.
Mas talvez o problema de encenar a si próprio não seja exatamente
o problema. Desde quando Maquiavel comparou a política a um palco de teatro, encenar
a si mesmo passou a ser a própria dinâmica da esfera pública, desde os rituais
de etiqueta e moda.
A fotografia e, mais tarde, as selfies nas redes sociais são a
continuidade dessa encenação do Eu na esfera pública.
O problema é quando essa encenação se torna perversa e mitômana:
quando o indivíduo começa a acreditar na própria encenação (pela performance bem-sucedida
que, por exemplo, o faça vencer o “Reality Porto”) e esquece quem é ou quem já
foi! O Eu em que a simulação substitui o real, a selfie e o feed da rede social
substitui a vida real do usuário.
Cultura coaching, literatura de autoajuda, religiões neopentecostais
motivacionais e todo um aparato de tecnologias do Eu exigem hiperfoco, mas
paradoxalmente o resultado é o cansaço, a dispersão cognitiva. Que se
retroalimentam como fraquezas do ego que exigem um maior esforço e vigilância de
um ego que se desmorona.
É o mal desse excesso de positividade (a cultura motivacional,
confessional, a auto expressividade super estimulada etc.), marcado pelo
bombardeio neuronal nas redes sociais, smartphones, home office, o trabalho
precarizado mediado por plataformas digitais, o trabalho corporativo
fragmentado por "jobs" etc.
Veja bem... esse humilde blogueiro não é um ludista - -aqueles trabalhadores
ingleses que durante a Revolução Industrial se rebelaram contra as máquinas que
substituíam o trabalho manual. Destruindo máquinas, principalmente teares
e outras ferramentas de tecelagem, como forma de protesto contra as mudanças
tecnológicas que ameaçavam seus empregos e condições de vida.
Ferramentas de IA podem ser uma grande ajuda, não sou contra elas.
Ela pode despertar ideias, corrigir a gramática e suavizar os pontos difíceis
em um texto. Ou ainda usar a IA para iniciar um rascunho ou encontrar a palavra
certa.
O problema é a função de zeitgeist que a IA exerce na
atualidade. Como fetiche (o perigo dos algoritmos sencientes e autônomos que
podem supostamente destruir a humanidade) e controle no mundo do trabalho. Não
mais o controle e expropriação pela disciplina da linha de montagem. Mas agora
pela super motivação do Eu.