quinta-feira, março 28, 2024

O drama hermenêutico da incomunicabilidade semiótica em 'Anatomia de uma Queda'


O filme francês premiado pelo Oscar “Anatomia de uma Queda” (Anatomie d’une Chute, 2023) é mais precisamente uma anatomia da incomunicabilidade – drama hermenêutico sobre a impossibilidade de se encontrar a verdade sob camadas e camadas de signos e interpretações.  Um casal alemão e francês que vê no inglês o ponto comum para haver comunicação. E um tribunal que tenta julgar o caso equilibrando-se entre o francês e o inglês com tradução (traição) simultânea. Choque e incomunicabilidade por todos os lados, seja na esfera conjugal quanto jurídica. Uma escritora famosa é acusada de ter matado o marido, enquanto seu filho deficiente visual tem que enfrentar um dilema moral como testemunha. Tal qual o signo na Semiótica, cada um tem um interpretante particular da realidade. Porém, a verdade não é a soma desse todo. 

Por todos os lados que se olhe no filme francês premiado com o Oscar 2024 Anatomia de uma Queda (Oscar de Melhor Roteiro Original) encontramos o problema da incomunicabilidade: um casal que tem que abandonar suas línguas natal (francês e alemão) para se comunicar na língua comum do inglês; um julgamento no tribunal em que a ré alemã tem que se equilibrar entre dar depoimentos em francês mas em que momentos cruciais (p.ex., tentar comunicar sentimentos) se vê obrigada a se expressar em inglês com a ajuda de tradução simultânea para a juíza do tribunal; o pequeno filho de 11 anos deficiente visual interpelado no tribunal a testemunhar circunstâncias que podem comprometer sua própria mãe, a ré.

Esses são apenas alguns exemplos de um drama semiótico de incomunicabilidade que representa o filme Anatomia de uma Queda. Que inicia com uma sequência a princípio prosaica, mas repleta de significados que serão desenvolvidos nas próximas duas horas e meia: Sandra (Sandra Hüller), uma escritora famosa que está concedendo uma entrevista para uma estudante de pós-graduação em sua residência isolada nos sopés dos nevados Alpes franceses. Entre cálices de vinho, as perguntas começam a levar a respostas ligeiramente sedutoras. Configurando uma situação de paquera e sedução. A conversa parece estar desviando para uma atmosfera íntima.

O filho de onze anos de Sandra, Daniel (Milo Machado-Graner), saiu para dar um passeio com seu cão border collie chamado Snoopy – um acidente na infância lesou sou nervo ótico, mas ele conhece os arredores da casa como a palma da sua mão.

De repente, esse quadro aconchegante e íntimo é quebrado por uma música cacofônica e batidas em volume total: o marido de Sandra, Samuel (Samuel Theis), no andar de cima da casa, toca uma versão instrumental de “P.I.M.P.” do “50 Cent” num loop irritante. A entrevistadora fica confusa e Sandra tentar explicar que seu marido gosta de ouvir música enquanto trabalha. 

Finalmente, após as tentativas de conversar e se ouvir uma a outra, decidem encerrar a entrevista e continuá-la mais tarde na cidade próxima de Grenoble. 

Depois vemos Daniel retornando para casa, com a música ainda tocando a todo volume. Para encontrar o sangrento corpo de Samuel estirado na neve em frente à casa. Daniel grita e Sandra sai correndo, abraçando seu filho e ligando para a polícia e o Samu. 

Diante dessa cena resultante de uma queda do andar superior do casarão fica a pergunta: o que causou a morte de Samuel? Foi um acidente ou deliberadamente foi empurrado após uma briga conjugal? Assassinato ou pura fatalidade?



Essas são as perguntas que a roteirista-diretora Justine Triet usa para alimentar essa versão de um drama de tribunal e procedimentos criminais... ou pelo menos, que o que ela quer que você pense. 

A questão aqui não é necessariamente se Sandra matou seu marido e está tentando esconder o crime, embora seja definitivamente isso que o sistema judicial do país gostaria de saber. Afinal, não é todo dia que uma escritora famosa é acusada de assassinar seu cônjuge, resultando num circo midiático.

Não, o que Triet está fazendo é realizar uma autópsia de um relacionamento que, uma vez, começou como um romance acalorado antes que as responsabilidades, ressentimentos, compromissos e tragédias começassem lentamente a asfixiá-lo até a morte – o retrato de um casamento em que sexo, ambição, papéis de gênero e autoengano desempenharam papéis integrais nos impulsos passivo-agressivos de Sandra e Samuel.

A incomunicabilidade está presente tanto no relacionamento do casal comunicando-se numa língua alienígena (o inglês, o ponto médio possível para o casal) como no tribunal, no qual o promotor (Antoine Reinartz) tenta a todo custo caracterizar Sandra como culpada a partir de estereótipos sexistas da esposa lésbica traidora que não assumia o papel de esposa cuja filho é um deficiente visual necessitado de cuidados maternos.

Um julgamento marcado por uma babel da confusão linguística entre inglês e francês. 

No fundo um drama hermenêutico (relativo à Hermenêutica: teoria da interpretação das ações humanas dotada de significado), tanto do ponto de vista jurídico como da esfera conjugal: é possível encontrar a verdade por baixo de camadas e camadas de signos linguísticos? Se tudo não passa de traduções e interpretações, como é possível encontrar a verdade objetiva da realidade ou de um fato?



O Filme

Da vida doméstica no chalé, onde a carreira e os ressentimentos pessoais têm se construído tão constantemente quanto a neve que rodeia o chalé aconchegante, o filme salta para o tribunal, onde Sandra é defendida pelo desajeitado advogado Vincent Renzi (Swann Arlaud), ele próprio um antigo caso amoroso anterior ao casamento. 

Não é particularmente surpreendente que Sandra não esteja apenas em julgamento pelo assassinato de seu marido. Durante os debates no tribunal, percebemos que Anatomia de uma Queda se torna uma alegoria de todas as maneiras pelas quais as mulheres são julgadas e estereotipadas como carentes, desde ter muitas ou poucas necessidades sexuais até não priorizar o cuidado dos filhos o suficiente ou simplesmente não se desculparem por serem tão falhas.

Na medida em que o filme se desenrola, a luta do pequeno Daniel assume o centro do palco, enquanto ele tenta conciliar o passado de sua família e seu próprio futuro - ele é sempre assistido, física e dramaticamente, pelo seu cão-guia Snoop.

Junto com seu advogado, Sandra é obrigada a ensaiar em casa suas respostas em francês que apresentará no tribunal de Grenoble. Para mais tarde a babel linguística se instaurar – a necessidade de uma tradutora instantânea para a juíza conseguir acompanhar os depoimentos da ré.

Para acrescentar ainda mais uma camada da confusão hermenêutica da narrativa, Sandra é uma escritora bem-sucedida. Enquanto o marido Samuel era um professor universitário e escritor frustrado. E que acusa a esposa de ter roubado sua melhor ideia para um livro que nunca conseguiu escrever.

Sandra é uma escritora que tem uma peculiaridade que a promotoria vai tentar explorar: embora ficcionais, seus livros têm uma inspiração autobiográfica – haveria passagens em seus livros particularmente comprometedores que apontariam para o planejamento do assassinato do próprio marido.



Semiótica e incomunicabilidade


Na Semiótica, as noções de “realidade” ou “verdade” não existem ou, no mínimo, são irrelevantes. Fundamentada na filosofia do Pragmatismo norte-americano (William James, Ralph Emerson, J. Dewey) Charles Sanders Peirce estava mais interessado em compreender os mecanismos da semiose, isto é, das interpretações da realidade através dos signos. Pensando que o signo nunca será um recorte da realidade, mas uma interpretação a partir de outros signos mentais – os “interpretantes”. 

Essa intransitividade do signo não significa que a realidade não exista. Sim, ela está lá. Porém, só temos acessos dela parcialmente, sempre a partir do ponto de vista de um “interpretante” do momento.

O choque e a incomunicabilidade estão presentes por todos os lados. Quanto mais o filme tenta fazer uma anatomia de uma morte, mais os interpretantes entram em choque.  Embora desesperadamente se busque uma intersecção linguística, seja em inglês ou francês.



E para complicar, a camada extra do interpretante sexista da promotoria no tribunal.

Mais do que a queda fatal, Anatomia de uma Queda é a anatomia de um drama hermenêutico: onde está a verdade? Mesmo após a decisão final do tribunal, com o depoimento emocionado e decisivo do menino Daniel, fica a dúvida: será que ele apenas tentou proteger a mãe, já que o seu acidente foi provocado por um desleixo do pai?

Trocando em miúdos: o filme descreve uma anatomia impossível.


 

Ficha Técnica

 

Título: Anatomia de uma Queda

Diretor:  Justine Triet

Roteiro:  Justine Triet, Asthur Harari

Elenco: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado-Graner, Antoine Reinartz, Samuel Theis

Produção: Les Films Palléas, France 2 Cinemá

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2023

País: França 

 

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