quinta-feira, março 14, 2024

'O Astronauta': por que a humanidade quer ir para o espaço se todas as respostas estão na Terra?


Com a reativação do imaginário da conquista espacial no século XXI com projetos privados como os da SpaceX ou Virgin Galactic ressurge a questão: o que a humanidade tanto procura lá fora se tudo o que encontramos é o vazio, desolação, desertos ou infernos vulcânicos e mares ácidos? Quando tudo o que precisamos conquistar ou salvar está aqui no nosso planeta. Essa é a questão de fundo na produção disponível na Netflix “O Astronauta” (Spaceman, 2024). Um abatido e solitário cosmonauta da república comunista da Techecoslováquia ruma solitário para as cercanias de Júpiter para capturar amostras de uma misteriosa nuvem cósmica que passou a tomar conta dos céus terrestres. Mas descobre que não está só: uma aranha gigante alienígena curiosa quer mergulhar nas memórias do astronauta. Quer entender o que o faz se submeter a uma solidão auto infligida. “O Astronauta” é uma perfeita esquisitice espacial que trabalha com a simbologia esotérica dos chamados “registros akáshicos” e com a mitologia indo-europeia das aranhas.

Por que o homem quer ir ao espaço sideral? O quê atrai a nossa curiosidade para os planetas e as estrelas? Curiosidade que nasce na infância e se sofistica na fase adulta com a criação da Astronomia, Astronáutica, Astrofísica etc.? 

Para pesquisadores como o pensador francês Paul Virilio, a corrida espacial surgiu na História por uma demanda bem terrestre: a Guerra Fria e a disputa geopolítica que foi projetada para o espaço. No fundo, um desejo do próprio Capitalismo em sua fase colonialista, como expressou o empresário britânico Cecil Rhodes no início do século XX: “Pense nas estrelas que vemos à noite, esses vastos mundos que jamais poderemos atingir. Eu anexaria os planetas, se pudesse; penso sempre nisso. Entristece-me vê-los tão claramente, e ao mesmo tempo tão distantes”. 

Turbinado pelo capital privado como do bilionário Elon Musk, o século XXI vive o renascimento do imaginário da aventura da conquista espacial. Porém, a quantidade de sondas enviadas para todos os lugares no sistema solar (ou até além, como a Voyager 1) fez apenas ressurgir o fantasma do paradoxo de Fermi: quanto mais longe vamos ou enxergamos, quanto mais aumentam as probabilidades de existências de civilizações extraterrestres, menos temos evidências ou contato com tais civilizações. Encontramos apenas o vazio e, no caso dos planetas, desertos áridos ou esmagadores infernos vulcânicos e oceanos ácidos.

 Portanto, o que nos faz querer abandonar um planeta que é um caso único de reunião de coincidências felizes que possibilitaram o surgimento da vida? Por que Musk nos oferece o sonho de colonizar planetas desolados, enquanto temos aqui na Terra uma incrível variedade de biomas que nos oferecem tudo do que precisamos? Busca por isolamento auto-infligido?

Esse é o tema de fundo de O Astronauta (Spaceman, 2024), baseado no livro “Spaceman of Bohemia”, de Jaroslav Kalfar. O filme acompanha Adam Sandler interpretando o astronauta Jakub, que está há seis meses em uma missão de pesquisa solitária na periferia de Júpiter para examinar a misteriosa nuvem de poeira que remonta as origens do Universo conhecida como “Nuvem Chopra”.



Jakub está deprimido, abatido e barbudo, tomando remédios para conseguir dormir; na verdade sua mente está na Terra, mais precisamente em sua esposa, com uma gravidez avançada e que, de repente, deixou de se comunicar com ele através de um dispositivo de comunicação quântico que permite, apesar da distância, uma conversação em tempo real. Principalmente porque ele sabe que deixou na Terra um relacionamento conjugal abalado.

A estória se passa numa espécie de mundo alternativo em que a república comunista da Tchecoslováquia envia uma missão espacial para Júpiter (concorrendo com a Coreia do Sul) para resolver o enigma de quatro anos da Nuvem Chopra que passou a dominar os céus terrestres.

Uma estranha república comunista: a missão espacial foi bancada por patrocinadores que anunciam seus produtos nas transmissões de Jakub para a Terra – há até merchandising, com Jakub mostrando produtos dos patrocinadores que consome durante a vigem espacial. Inclusive os comprimidos para dormir, fornecido por uma Big Farma. 

Toda a nave espacial tem um design retro, fazendo referências a Solaris (1972) do soviético Tarkovski. 

Mas parece que quanto mais se aproxima do objetivo final da missão, menos interessado está nela: quer saber o porquê do silêncio da sua esposa, cujo segredo é guardado a sete chaves pela chefe do controle da missão interpretada por Isabelle Rosselini – desesperadamente tenta manter o cosmonauta focado na missão. Um possível fracasso da missão (serem ultrapassados pelos sul-coreanos) desagradaria terrivelmente os patrocinadores.

Tudo muda quando Jakub descobre que ele não está sozinho na nave. Uma forma alienígena falante na forma de uma grande aranha com seis olhos expressivos. E esta aranha, que se transforma numa espécie de terapeuta conjugal, que colocará em xeque as motivações que fazem a humanidade querer conquistar o espaço. 

Se o homem parece querer buscar algum tipo de milagre cósmico-epifânico que dê um sentido ou propósito a sua própria existência, no fundo tudo se resume a egoísmo e isolamento auto-infligido.



O Filme

Jakub Prochazka está no dia 189 da sua missão. O protagonista cosmonauta abatido e barbudo de O Astronauta está se aproximando de Júpiter para estudar a misteriosa nuvem de Chopra que inesperadamente passou a ser vista a olho nu na Terra, criando curiosidade e uma corrida espacial entre a Tchecoslováquia e a Coreia do Sul.

Ele está se aproximando de seu ponto de ruptura psíquica. Sem sono em uma nave espacial repleta de irritantes defeitos e que viu dias melhores, o que realmente está ocupando a mente do herói tcheco não é a missão - é o silêncio de sua esposa grávida Lenka (Carey Mulligan). Apesar dos esforços do médico espacial Peter (Kunal Nayyar) e da chefe Tuma (uma Isabella Rossellini subutilizada, assim como Carey Mulligan) no Controle da Missão para acalmar seus medos. 

Jakub sabe que algo está errado – ele a deixou em um momento em que o relacionamento estava abalado. Lenka gravou um vídeo anunciando que, apesar de grávida, estava o abandonando. Mas Tuma censura o vídeo e tenta a todo custo convencer Lenka a não fazer isso. Pelo menos não naquele momento em que o marido está na borda do sistema solar.

É quando Jakub descobre que não está sozinho. Aparece uma aranha gigante chamada Hanus (dublada por Paul Dano) no banheiro da nave, Jakub não sabe se a aracnídeo é real ou uma invenção de uma imaginação cansada e desesperada. Hanus existe desde o início dos tempos e trata amigavelmente Jakub como “pequeno humano”.

A aranha gigante tem um fascínio por humanos e passou uma quantidade indeterminada de tempo aprendendo nossa história, idioma e costumes. Mas ele é especialmente atraído por Jakub: como também um explorador solitário, Hanus se sente atraído pelo cosmonauta. E uma vez que Jakub supera o choque de ver uma enorme aranha falante fazendo uma aparição repentina em seu mundo vazio, os dois rapidamente se conectam - com a ajuda da aranha, Jakub pode apenas aprender os segredos do universo e de si mesmo.



Hanus tem a capacidade de olhar para os pensamentos e memórias de Jakub (observamos essas cenas através de uma lente grande angular ou “olho de peixe”), e ele usa isso para explorar seu passado, mas principalmente para entender sua deterioração do relacionamento com Lenka.

O Astronauta é uma esquisitice espacial. Principalmente quando temos Adam Sandler no espaço com uma aranha gigante falante que se transforma numa espécie de terapeuta de casal. O que rende até muitos momentos engraçados, naturalmente evoluindo da contradição entre a aparência ameaçadora da aranha e o trabalho discreto da voz de Dano.

Juntos, homem e aracnídeo, dois seres retraídos acabam encontrando a amizade um no outro até chegarmos à estranha e ao mesmo tempo engraçada cena do abraço fraterno entre os dois.

Mas Hanus é honesto, dizendo a ele que “sua solidão é auto-infligida”. Tudo o que Jakub busca no espaço, ele abandonou na Terra: sua esposa, a vida conjugal e o futuro filho. Algo se perdeu na relação: o brilho do encontro da primeira vez. 

Mas Jakub é retraído, triste e melancólico. Fechado em si mesmo é incapaz de admitir que sua vida solitária de cosmonauta é uma forma de fugir de qualquer confrontação que coloque em xeque a si próprio. Na verdade, elenunca fez um esforço real para conhecer sua esposa, Lenka.

Essa faceta humana é o que interessa ao aracnídeo alienígena. Para um ser que existe desde a origem dos tempos, essa atitude humana é o que mais intriga: o que o “pequeno humano” está fazendo no espaço se tudo o que ele busca está no seu próprio planeta?



O simbolismo da nuvem e da aranha – Alerta de Spoilers à frente

O Astronauta trabalha com dois simbolismos mitológicos e esotéricos evidentes: primeiro, a da “Nuvem Chopra”. E segundo, a forma inusitada de uma aranha terrestre para um alienígena de bilhões de anos de existência.

A misteriosa nuvem de estrelas nimbus em tons de pôr do sol funciona como uma espécie de grande “Biblioteca Akáshica” – noção teosófica sobre a existência de registros vibracionais no próprio tecido do tempo-espaço de todos os eventos, pensamentos, palavras, emoções e intenções universais que já ocorreram no passado, presente ou futuro. Como um mecanismo semelhante ao holograma.

No interior da nuvem, flutuando no vazio ao lado de Hanus, Jakub retorna à cena do primeiro encontro com Lenka. Ao mesmo tempo que Lenka vê uma partícula de poeira da nuvem na Terra, conectando-se com Jakub ao reimaginar o seu primeiro encontro.

Enquanto o simbolismo esotérico e mitológico da aranha fica evidente, principalmente quando está relacionada com a nuvem-biblioteca-akáshica.

Na cultura indo-europeia, a aranha está sujeita a inúmeras interpretações. Mas todas têm um ponto em comum: A aranha detém um simbolismo paradoxal de simultaneamente ser considerada a grande mãe cósmica (a teia, a tecelã do destino) e também o perigo, a ameaça como predador. 

É a tecelã da realidade e, portanto, a senhora do destino. O que explicaria a sua função divinatória em muitas culturas. Mas também, psicanaliticamente, é o símbolo da interioridade evocada pela aranha ameaçadora no centro da sua teia- símbolo da introversão e do narcisismo; a absorção do ser pelo seu próprio centro.

Como é a atitude de Jakub consigo mesmo. Tal como no filme Solaris de Tarkovski, não importa o quão distante o homem vá no universo: ele sempre projetará na tela do cosmos seus próprios desejos e fantasmas. Ele arrastará consigo todos os problemas que supostamente deixou na Terra.


 

Ficha Técnica

 

Título: Spaceman

Diretor:  Johan Renck

Roteiro:  Jaroslav Kalfar, Colby Day

Elenco: Adam Sandler, Carey Mulligan, Paul Dano, Isabella Rossellini, Kunal Navyar 

Produção: Free Association, Stillking Films

Distribuição: Netflix

Ano: 2024

País: EUA, República Tcheca

 

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