Nascemos pelados, sem nenhum pelo no corpo, desdentados, descoordenados, meio cegos, pensamentos confusos e nos sentindo afogados até os pulmões começarem a funcionar através do nosso próprio grito de terror. Chegamos a esse mundo com medo e vamos embora também com medo. Tudo isso é descompactado nas três horas do humor negro surreal de “Beau Tem Medo” (Beau is Afraid, 2023) do diretor/roteirista Ari Aster (“Hereditário”, “Midsommar”). Joaquim Phoenix faz uma odisseia épica de seu apartamento solitário (em um bairro assustador com crimes à luz do dia) para uma visita a sua mãe no dia do aniversário da morte de seu pai. É o gatilho que faz disparar medo e ansiedade, além da culpa edipiana de um homem na meia idade. Ameaças e perigos pulam por todos os lados. Metáforas de uma consequência freudiana: o adulto não passa de uma criança crescida, carregando medos e culpas de um Édipo arrasado.
O leitor deve lembrar (se não, assista!) do filme Contos de Nova York (1989), filme que juntou diretores do quilate de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e Woody Allen, em três segmentos, cada um dirigido por um deles. Todos os contos tendo Nova York como palco.
O conto de Woody Allen, “Édipo Arrasado”, é o mais hilário dos três. Allen interpreta um advogado que não consegue se libertar da sua mãe dominadora. Até que um dia ela morre. Feliz por finalmente ter se libertado da tirania de uma típica “mama” judia, um dia toma um susto – descobre que ela literalmente foi para o céu, quer dizer, uma figura que domina o céu da cidade, vigiando o filho e dando ordens do tipo “agasalhe-se bem antes de sair de casa”. Humilhado e arrasado pela culpa, tornou-se alvo de gozações por toda a cidade que repete as ordens maternas por onde quer que ele passe.
Esse típico humor judaico novaiorquino de um conto curto é expandido para um longa-metragem de três horas em Beau Tem Medo (Beau is Afraid, 2023) do diretor e roteirista Ari Aster - Hereditário e Midsommar.
Nesses dois filmes anteriores, Aster descasca meticulosamente a pátina de normalidade que encobre ostensivamente o mundo, para revelar a malevolência que existe abaixo. Em Hereditário, a estória de uma família que é destruída (e revivida) graças ao seu passado envolvido em bruxaria; e em Midsommar um jovem casal tolo viaja com amigos para um recanto pastoral e idílico na Suécia, onde se tornam joguetes em um culto messiânico assassino.
Mas em Beau Tem Medo, todas as coisas nojentas e desagradáveis estão expostas, à céu aberto, num mundo que parece comprovar todas as fantasias regressivas de medo e ansiedades do protagonista, vítima de uma trama edipiana tóxica vivida com sua mãe na juventude.
Todos esses perigos e fantasmas estarão no caminho do herói (os horrores da cidade, um asilo suburbano, uma floresta sombria de contos de fadas etc.) em sua viagem épica de lutas para visitar a sua mãe rica, bem-sucedida, mas uma verdadeira gárgula pop freudiana.
Beau, interpretado por Joaquim Phoenix, é um borrão de um homem, que não se assemelha com nenhum típico herói do cinema americano. Com seu tom de voz monocórdio ele não é interessante ou atraente, é chato, lhe faltam interesses, ambição ou propósito profundo. Vive solitário em um bairro caótico com cafetões, brigas e tiros à luz do dia, com assassinos pelados andando com faca na mão pelas calçadas.
Seu único relacionamento íntimo parecer ser com seu terapeuta (Stephen McKinley Henderson), a quem ele visita logo na abertura do filme. Quando observamos o terapeuta escrever a palavra “culpa” após uma reposta de Beau.
Antes disso o filme abre com uma sequência de nascimento de um bebê com efeitos de áudio de batimento cardíaco e gritos do bebê abafados. Uma sequência rápida com imagens em contraluz e ofuscadas. A mensagem é clara: chegamos a esse mundo com medo e vamos embora com medo do que há depois da morte.
Nascemos pelados, sem nenhum pelo no corpo, desdentados, descoordenados, meio cegos, pensamentos confusos e nos sentindo afogados até os pulmões começarem a funcionar através do nosso próprio grito de terror.
Numa perspectiva freudiana, construímos nossas primeiras relações simbólicas com esse mundo através das sensações de carinho, proteção e satisfação da fome com a única pessoa próxima a nós nos primeiros momentos: a mãe.
Para logo em seguida sermos enredados por uma trama psíquico-cultural chamada de complexo de Édipo: o mundo quer que nos afastemos do “sentimento oceânico” materno e nos tornemos adultos; enquanto a mãe faz, na maioria das vezes inconscientemente, o movimento contrário: tenta nos manter por perto através da chantagem emocional.
Culpa, medo e ansiedade é o tema das três horas do filme, uma desconstrução de humor negro surreal do pobre herói Beau, em sua estoica viagem de retorna à casa de sua mãe.
O Filme
Os laços familiares de Beau Wassermann, um solitário na meia-idade, são sua própria fonte de estresse.
Na visita ao seu terapeuta, Beau comenta que fará uma viagem para visitar sua mãe Mona Wassermann (Patti LuPone). Gentilmente ele pergunta: “já fantasiou sobre se livrar de sua mãe?”.
O filme não desenvolve imediatamente essa tensão. O primeiro ato concentra-se na personalidade e no cotidiano de Beau, claramente emocionalmente sobrecarregado, muitas vezes encavado e emaranhado. Suas posturas patéticas são sombriamente hilárias – entre gritar ou manter o tom monocórdio como se o tempo inteiro pedisse ajuda.
Apoiado pelo seu terapeuta e pelos remédios receitados, Beau vive em um apartamento sombrio em meio a uma paisagem urbana distópica infernal, atormentado por problemas de encanamento, crimes na rua em plena luz do dia e nudez pública violenta.
Ele comprou uma passagem aérea para visitar sua mãe no aniversário da morte de seu pai - uma perspectiva que aumenta ainda mais seus níveis de ansiedade. Mas quando ele foge do maníaco com uma faca que corre pelado pelas ruas, e atropelado por um carro. O que, associado ao roubo das chaves do seu apartamento, só conspira para fazer Beau perder seu avião.
Ele então embarca em um longo dia de jornada de perigos, sustos, medo e ansiedade, tão surreais e inverossímeis que suspeitamos ser fruto das alucinações de um psiquismo dominado pela culpa. Mas funcionam como manifestações metafóricas absurdas de sua vida miserável.
Sua odisseia começa na luta com um casal suburbano (interpretado por Nathan Lane e Amy Ryan) que parecem ter a intenção de mantê-lo em sua casa para sempre – como o substituto do filho que morreu no Exército. Para depois fugir e encontrar em uma floresta uma trupe de teatro itinerante que representam uma peça com uma visão gloriosa de como a vida de Beau poderia ter sido se ele tivesse assumido um papel mais ativo nela.
É o segundo ato, quase um filme dentro do filme com visuais e animações impressionistas.
E o terceiro ato é a chegada de Beau para o velório da própria mãe (sim! Ela morreu nesse meio tempo) onde viverá todo o teatro da angústia do Édipo freudiano.
Com direito a um final que faz uma alegoria da mitologia egípcia da Barca de Rá – tratado no “Livro dos Mortos” como o veículo pelo qual a alma do morto é levada para a vida eterna. Claro, não sem antes um julgamento no qual passagens da vida de Beau são discutidas por advogados de defesa e acusação. Tendo a mãe Mona Wassermann como o impiedoso fiel da balança.
Nem Woody Allen imaginaria um inferno interior tão esmagador.
Ficha Técnica |
Título: Beau Tem Medo |
Diretor: Ari Aster |
Roteiro: Ari Aster |
Elenco: Joaquim Phoenix, Patti LuPone, Amy Ryan, Nathan Lane |
Produção: A24, Access Entertainment |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2023 |
País: EUA |