Oppenheimer acabou confirmando o favoritismo na noite da premiação do Oscar 2024: sete estatuetas para Melhor Filme, Melhor Ator (Cillian Murphy), Melhor Direção, Melhor Ator Coadjuvante (Robert Downey Jr.) Melhor Montagem, Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora Original.
Certamente servem de estímulo para encarar as três horas do filme.
Oppenheimer (2023), filme adaptado de “American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer” (biografia de 2005 de Kai Bird e Martin Sherwin), exige uma análise em camadas – das impressões imediatas ou fenomênicas até chegarmos ao tema em si: o Projeto Manhattan, Los Alamos, a explosão da primeira bomba atômica. E o papel chave do físico teórico J. Robert Oppenheimer, dos seus aspectos demasiado humanos ao cientista que roubou o fogo dos deuses.
De início, o que chama a atenção é a obsessão de Nolan por escalas e por protagonistas em busca da perfeição. Robert Angier queria realizar o truque perfeito em O Grande Truque (2006), Dom Cobb queria viver o sonho perfeito em A Origem (2010), o astronauta Joseph Cooper queria encontrar o planeta perfeito em Interestelar(2014). E agora Oppenheimer está em busca da bomba perfeita – aquela tão poderosa e assustadora que acabaria com todas as guerras.
Ao mesmo tempo, percebemos a paixão de Nolan pelas escalas: em O Grande Truque, o truque de um mágico conectado com assombrosas descobertas esotéricas no campo da Física por Nikola Tesla; em A Origem, em que ruas de cidades se dobram como papel sob a pressão da lógica onírica; em Interestelar, as distâncias cósmicas que se conectam pelo entrelaçamento quântico. E agora em Oppenheimer, os megatons de uma explosão nuclear no deserto do Novo México.
Uma segunda camada está na linguagem que sustenta as três horas de filme: uma linguagem que faz o filme parecer um gigantesco trailer ou teaser de três horas.
A crítica especializada e os produtores cinematográficos sabem que o trailer deixou de ser um mero instrumento promocional, para se tornar uma espécie de subgênero com uma ontologia, linguagem e cânones próprios. Uma autonomia tão grande que muitas vezes o trailer passa a ser melhor do que o próprio filme.
E parece que o diretor está atento a isso, transformando o filme num gigantesco trailer que dá uma sensação de que há algo muito além do que é mostrado na telona.
Oppenheimer é concentrado em rostos. Há muitos close-ups dos rostos das pessoas, que são interrompidos por cortes instantâneos de eventos que não aconteceram, ou já aconteceram. Há imagens recorrentes de chamas, detritos e explosões menores de reações nucleares em cadeia que se assemelham a cordas de fogos de artifício que servem como metáforas que pontuam as cenas-chaves da narrativa. São como imagens incendiárias que evocam outros desastres horríveis e pessoais - há muitos flashbacks em expansão gradual onde você vê um vislumbre de algo primeiro, depois um pouco mais e, finalmente, compreendemos a coisa toda.
O corte “físsil”, para emprestar uma palavra de física, também é uma metáfora para o efeito dominó causado por decisões individuais e a reação em cadeia que faz com que outras coisas aconteçam como resultado. Esse princípio também é visualizado por imagens repetidas de ondulações na água, começando com o close de abertura de gotas de chuva que detonam círculos em expansão na superfície que prenunciam tanto o fim da carreira de Oppenheimer como conselheiro do governo e figura pública quanto a explosão da primeira bomba nuclear em Los Alamos.
A sensação dessas sequências com cortes e idas e voltas em flashbacks e flashforwards (acompanhamos Oppenheimer em três momentos: na Europa conhecendo os grandes nomes -Bohr, Heisenberg etc. – da “Nova Física”; de volta aos EUA e comandando os experimentos do Projeto Manhattan em Los Alamos; e no pós-guerra, perseguido pelo macarthismo e caindo em desgraça) é que, apesar das três horas, há muito mais por de trás da narrativa vertiginosa.
De fato: segundo muitos críticos, se percorrermos as mais de seiscentas páginas do livro que dá origem ao filme, muito foi omitido na adaptação. Ao optar por essa vertiginosa linguagem em trailer, parece que Nolan quis mais jogar com a percepção do espectador para as principais cenas: com as idas e vindas no tempo, sempre descubramos que há algo mais além daquela mesma cena que vimos anteriormente.
Nada surpreendente: desde o filme Amnésia (Memento, 2000), Christopher Nolan adora brincar com a percepção do público com narrativas nada lineares e intrincadas. O Tempo parece ser sempre a eminência parda demiúrgica que sempre joga secretamente a favor ou contra os personagens.
Por isso, Oppenhaimer de Nolan é a síntese de toda a trajetória do diretor: protagonistas sempre em busca da perfeição, escala épica e o Tempo.
O Filme
E agora, a camada final: a história.
Oppenheimer narra a vida do físico teórico americano, que se tornou diretor do Laboratório Los Alamos durante a Segunda Guerra Mundial e inventou a primeira arma nuclear que acabaria com a guerra no Pacífico.
Com a ajuda de uma trilha sonora do compositor Ludwig Göransson que induz uma crescente ansiedade (ao lado do Tempo, outro recurso favorito de Nolan), do uso impressionante do diretor de fotografia Hoyte van Hoytema de um filme de 65 milímetros e dos quadros frenéticos da editora Jennifer Lame, Nolan no leva profundamente na mente do físico - e todas as suas trágicas maquinações.
Sua principal arma foi a escolha do ator Cillian Murphy. Um ator que ainda permanece estranhamente invisível ao mainstream, exceto no universo de Nolan.
Aqui, ele está magnético no papel do cientista que inclinou o mundo à sua vontade e capricho por décadas, até que finalmente parou de girar em torno dele. Usando a grande semelhança física com o Oppenhaimer real, Murphy captura o tumulto interno e a arrogância externa de dele com muita facilidade – seu olhar continuamente assombrado, enquanto o corpo sustenta a postura arrogante.
Desde seu início na década de 1920 como um estudante genial fascinado pela perspectiva de fazer avanços na mecânica quântica, até ensinar e colaborar com outras mentes prodigiosas em Berkeley e abraçar os ideais esquerdistas que mais tarde o revigorariam para desenvolver a bomba à frente dos nazistas, Nolan traça os primeiros dias de Oppenheimer de forma linear o suficiente.
Mas na maior parte da narrativa somos jogados de cabeça em diferentes linhas do tempo que alternam entre um colorido deslumbrante e preto e branco - representando tanto 'fissão' quanto 'fusão', dois termos que o diretor usa logo no início do filme, para indicar como a energia é criada e dissipada.
As coisas então esquentam. Oppenheimer rapidamente encontra várias pessoas que terão ramificações de longo alcance em sua vida, como o físico nuclear Ernest Lawrence (Josh Hartnett), o severo, mas solidário, Tenente-General Leslie Groves (Matt Damon); o eventual inventor da bomba de hidrogênio Edward Teller (Benny Safdie); o psiquiatra incendiário e membro do Partido Comunista e sua esposa Jean Tatlock (Florence Pugh) e sua esposa, com quem tem um tórrido romance, e sua futura esposa Kitty (Emily Blunt).
Mas é Robert Downey Jr. que emerge como o mais proeminente divisor de águas do filme ao oferecer o melhor desempenho de sua carreira como presidente da Comissão de Energia Atômica, Lewis Strauss, que faz de sua missão desmantelar a credibilidade e o serviço de Oppenheimer ao governo dos Estados Unidos. O que foi o vilão Salieri para Mozart, será o conspirador Strauss para Oppenheimer.
O desempenho de Downey Jr. é tão bom que chegamos a esquecer dele como o Homem de Ferro nas franquias da Marvel.
Para Strauss, Oppenheimer é nada mais do que um adúltero e simpatizante comunista – o filme sugere que Strauss vazou o arquivo do FBI sobre as associações progressistas e comunistas para um terceiro, que depois encaminhou para o diretor do departamento, o infame J. Edgard Hoover.
Mas o filme sugere mais. A certa altura, quando finalmente a bomba atômica está pronta para o teste final em Los Alamos, surge uma questão absurda: a bomba será jogada em quem? Afinal, Hitler estava morto e a Alemanha nazista derrotada pelos aliados, e o Japão de joelhos, com bombas incendiárias americanas já atingindo cidades do país.
Os seis bilhões de dólares gastos pelo Projeto Manhattan corria o bizarro risco de se tornar inútil – e criar um grave problema político pelo desperdício de recursos. Então, prevaleceu a narrativa de que a detonação da bomba atômica seria a única solução para o império do Sol Nascente finalmente se render.
Nessa altura, temos um momento digno de Stanley Kubrick no filme Dr. Fantástico: na cena em que os oficiais militares de alta patente decidem em quais cidades será jogada a bomba, um general diz: “em Kyoto não!... passei lá a lua de mel com minha esposa...”.
Guerra Total
Essa sugestão alimenta as principais dúvidas justificadas sobre o Projeto Manhattan: será que na verdade as detonações em Hiroshima e Nagasaki tinham como alvo a União Soviética? Será que foi uma linha demarcatória a fogo e radiação criada pelos EUA para impedir o avanço soviético no extremo da Ásia? Teria sido a bomba atômica na verdade uma bomba geopolítica? Milhares de japoneses teriam sido sacrificados por uma simples jogada no tabuleiro geopolítico?
Essa amoralidade não seria surpreendente. Apenas seria o desfecho de um Guerra Mundial que abriu a caixa de pandora da noção de “Guerra Total”.
A grande novidade da guerra deflagrada de 1939 a 1945 foi a intensa tecnologização de um conflito bélico: do conceito da guerra como blitzkrieg à corrida pela bomba atômica entre Hitler e Roosevelt, a Segunda Guerra Mundial representou o início de uma nova era – o fim de todos acordos e convenções sejam morais, jurídicas ou diplomáticas que limitam o alcance das guerras.
A nova era em que a Ciência se transforma em tecnociência. Oppenhaimer mostra como o gênio pragmática norte-americano transforma a Nova Física (os cientistas americanos achavam que as discussões quânticas e relativísticas na Europa eram meramente teóricas e filosóficas) em algo mais do que Ciência.
Nas mãos de Oppenheimer transforma-se em tecnociência, a ciência aplicada de forma imediata, sem mais travas éticas ou morais. As imagens de Oppenhaimer, montado em seu cavalo, no deserto do Novo México, são emblemáticas – o físico americano dizia que seu sonho era levar a Física para esse lugar que tanto amava: foi lá, numa fazenda da família, que se recuperou de um ataque de colite e desenvolveu um amor em andar a cavalo.
As imagens são metafóricas: todas as discussões teóricas e filosóficas dos centros de pesquisas do Velho Continente encontram sua aplicação pragmática na mentalidade “western” dos pioneiros americanos.
Ao citar o “Bhagavad Gita” (o livro sagrado indiano e favorito de Oppenhaimer), “Eu sou o deus da Morte, o destruidor de mundos”, após ver a primeira detonação da bomba atômica, o físico viu sangue em suas mãos pelos mortos no Japão. Porém, logo viu no confronto com o “Saliere” Strauss a chance da sua redenção – livrar-se da culpa derrotando a conspiração do seu rival político.
Ficha Técnica |
Título: Oppenhaimer |
Diretor: Christopher Nolan |
Roteiro: Christopher Nolan, Kai Bird,Martin Sherwin |
Elenco: Cillian Murphy, Emily Blunt, Matt Demon, Robert Downey Jr. |
Produção: Universal Pictures |
Distribuição: Universal Pictures International |
Ano: 2023 |
País: EUA |