sexta-feira, novembro 03, 2023

'Tetris': o vídeo game destruiu a União Soviética


Será que o vídeo game destruiu a União Soviética? Enquanto o Capitalismo estava dando um novo salto mortal para se reinventar, a URSS era o último subproduto vintage do racionalismo cartesiano: a economia planificada socialista. Se a URSS via a cibernética como a ferramenta decisiva para a planificação, o Ocidente estava iniciando a sensibilidade neobarroca dos vídeos games: o declínio da racionalidade pela celebração do fragmentário, da instabilidade, do lúdico e do jogo – o que seria o futuro capitalismo cassino da globalização. O paradoxo é que o game mais viciante do mercado surgiu no Centro de Computação da URSS. Esse é o debate que suscita o filme “Tetris” (2023) no qual acompanhamos a história daquele joguinho dos game boys. Mas, principalmente, a guerra política pelos direitos de comercialização do jogo em plena Guerra Fria. “Tetris” também é uma peça de propaganda: como os malvados comunistas vilões russos tentaram impedir a liberdade de iniciativa e diversão no Ocidente.

 

Muito já se falou e escreveu sobre os motivos do fim da União Soviética, cujo símbolo emblemático foi a queda do Muro de Berlim, imortalizado pelas imagens de TV nas quais víamos alemães atônitos olhando para o outro lado através dos entulhos. A abertura política e econômica do governo Gorbachev? Desgaste político? Má administração e corrupção das lideranças do Partido Comunista? Esgotamento da experiência dos sovietes diante da expansão do capitalismo global? A inerente ineficiência de uma economia planificada frente ao sucesso do mercado e livre iniciativa no Ocidente?

Causas culturais às vezes são também listas: o solapamento da cultura oficial pela invasão subterrânea da música ocidental como o jazz e o rock n’roll, além da furtiva entrada de produtos icônicos como Coca-Cola. Atiçando a imaginário de como o capitalismo seria um paraíso de consumo e prazer.

Mas nada foi dito sobre vídeo games. Principalmente quando sabemos que o jogo mais famoso e viciante da era dos game boys foi criado por um engenheiro de informática russo e depois espalhado pelas repúblicas socialistas por meio de cópias secretas em disquetes. Até chegar nas pessoas interessadas em comercializá-lo no Ocidente. Dando início a uma guerra comercial pelo direito de explorar o jogo em múltiplos consoles

O jogo se chama Tetris, do gênero quebra-cabeça com aqueles icônicos bloquinhos coloridos que descem enquanto tentamos encaixá-los e alinhá-los horizontalmente. Quando uma linha se forma, ela se desintegra e o jogador ganha pontos. Tão viciante que o próprio criador não conseguia parar de jogar mesmo antes de terminar a programação.

O criador, Alexey Pajitnov, era um engenheiro do Centro de Computadores da Academia Russa de Ciências numa situação paradoxal: como especialista, era um funcionário da máquina administrativa na qual o computador era uma ferramenta de controle e planejamento racional; mas, nas horas vagas, divertia-se com o potencial estético e lúdico do computador.

É claro que a produção original Apple TV +, Tetris (2023), não chega a desenvolver esse tema – concentra-se no thriller da guerra comercial, espionagem e fraude num cenário de Guerra Fria. 



Porém, há duas linhas de diálogo no filme que são verdadeiros insights. Maravilhado depois de ter jogado pela primeira vez Tetris, Henk Rogers (Taron Egerton), fundador de uma empresa chamada Bullet-Proof Software, tenta convencer um banqueiro a ser um investidor dos direitos de Tetris: “Ele não é apenas viciante, ele fica com você... poesia, arte e matemática trabalhando em sincronicidade mágica”.

E quando Valentin Trifonov (Igor Grabuzov), líder do Comitê central do Partido Comunista, intimida o engenheiro Alexey: “Eu queria conhecer o homem que quase destruiu a União Soviética”, referindo-se a funcionários públicos que estavam deixando de trabalhar para jogar Tetris, obrigando o Comitê Central a criar um programa para bloquear o jogo nos computadores dos locais de trabalho.

Para além da aporia econômica e política na Guerra Fria, URSS e Ocidente tinham paradigmas totalmente opostos em relação à cibernética e ciências da informação – enquanto o approach soviético era cartesiano (o computador como ferramenta para a planificação econômica – velocidade operativa, arquivação de dados etc.) o Ocidente já vivia o pós-cartesianismo pós-moderno: experimentar o mesmo prazer de Alice caindo na toca do coelho, o prazer da ofuscação e do enigma, dos nós e labirintos potenciais nos computadores. O prazer lúdico de perder-se em labirintos sem ter o mapa global dos percursos. O prazer da matemática se encontrando com a estética, o jogo e o lúdico. 

Aliás, a preparação para o que se tornaria o capitalismo cassino global: economia e política incorporados à lógica do jogo, do risco e do aleatório – a total ausência de diferença entre o usuário jogando em um game boy e um operador do mercado financeiro nas múltiplas telas em uma corretora de títulos.

O filósofo italiano Omar Calabrese chamava isso de “Idade Neobarroca”.



O Filme


Tetris narra uma história complicada em torno de um jogo tão simples. Acompanha a perigosa jornada de Henk Rogers, uma sardinha que tenta sobreviver num oceano de tubarões dos negócios de mídia em torno das batalhas por direitos legais em torno do jogo mais viciante da história – o problema é que foi criado do outro lado da Cortina de Ferro. Portanto, Egerton terá que lutar grandes figuras de poder nos negócios e na política da Guerra Fria.

Tudo que Rogers tem ao seu lado é o seu espírito ingênuo (no final, ele é apenas um programador e jogador se arriscando nos negócios) é uma fé inquebrantável na positividade da livre iniciativa, empreendedorismo e liberdade – prepare-se para um verdadeiro conto de fadas propagandístico sobre as virtudes da livre concorrência e como a boa fé e a crença nos valores fundadores do Ocidente no final acaba derrotando os corruptos e poderosos totalitários.

Aliás, um filme que daria inveja ao clássico diretor Frank Capra – autor de filmes e documentários que elevaram o moral dos americanos na Grande Depressão dos anos 1930 constituindo um imaginário de protagonistas idealistas e crentes nos valores do sonho americano que, no final, sempre vencia os poderosos e corruptos.

A propósito, nesses últimos anos uma série de produções estão aparecendo narrando histórias de altos e baixo de personagens dentro desse velho espírito propagandístico de Fank Capra. Produções sobre Uber, WeWork e, o mais recente, Crypto Boy (clique aqui). Já foi anunciada produções futuras sobre BlackBerry, Nike e Cheetos. Tetris é a bola da vez.

Mas voltando ao filme, depois de uma sequência hiperativa de abertura como fosse um jogo em gráficos de 8 bits explicando o início da jornada do jogo Tetris, o filme realmente começa quando Rogers chega na Rússia – com toda a sua positividade ingênua, chega com visto de turista para visitar o Centro de Computação e propor a compra dos direitos do jogo para “console portátil” – aquilo que se tornaria o Game Boy. O que ele está fazendo é crime na Rússia, mas Egerton é um otimista imbuído pela fé nos valores do mercado.

A essa altura do filme, ele apostou o futuro financeiro de sua família nessa perspectiva (o apartamento em que mora com esposa e filha é garantia para o vultoso empréstimo bancário).




Rogers cada vez mais confiante, além de ser incapaz de aceitar um não como resposta, mesmo quando a KGB está envolvida – ele está sendo vigiado e intimidado por um agente (Valentin Trifonov) que na verdade quer que Tetris seja vendido para a britânica Mirrorsoft. O magnata proprietário do grupo de mídia Daily Mirror, Robert Maxwell (Roger Allan) ofereceu uma polpuda propina para o agente que também trabalha no Comércio Exterior soviético.

Enquanto Rogers está tentando obter os direitos de vender Tetris para a Nintendo para que eles possam empacotar com seu novo portátil, o Game Boy, ele se depara com o cientista que realmente inventou o jogo, Alexey Pajitnov (Nikita Yefremov): não satisfeito com os problemas com a KGB, ele torna como parte da sua missão recompensar financeiramente o criador do jogo. 

Quando Rogers sugere a Alexey um jantar no apartamento do cientista para discutir detalhes do jogo Petris, surpreso ouve que isso não é permitido na Rússia: é crime receber convidados estrangeiros em casa. É nesse tipo de mundo que Rogers está tentando navegar. Ele não sabe o idioma. Ele não conhece as leis. Mas ele não se importa porque nada vai impedi-lo. Estamos na clássica narrativa do otimismo estoico de Frank Capra.

Rogers entra em conflito com as autoridades russas a cada passo, incluindo uma figura imponente na empresa de Alexei chamada Nikolai (Oleg Shtefanko), capanga de Valentin, que literalmente ameaça jogar uma criança pela janela a certa altura do filme – assim como caem os blocos de Tetris!

Mas nada é páreo contra a fé de Rogers nos valores que fundamentam o Ocidente. Nem mesmo os estereotipados vilões ao estilo RAVs (Russos, Árabes e vilões em geral), com a maldade bem distinta dos comunistas: frios e com um prazer sádico em aterrorizar. 



Moscou é apresentada com uma paleta de cores esverdeado escuro, com becos escuros assustadores, enquanto nas ruas se arrastam russos que passam fome em filas intermináveis nos poucos mercados existentes. Tudo é pobre e precário, enquanto os vilões vivem em palácios czaristas. 

O filme Tetris é uma típica peça de propaganda para incutir nos espectadores o suposto porquê de o Capitalismo ter vencido a URSS. Do lado do Capitalismo também há vilões. Mas eles são apenas traidores que corromperam os valores mais verdadeiros do Ocidente. Enquanto do lado de lá, temos vilões orgânicos, isto é, produtos naturais de uma ideologia tão maligna quanto o comunismo.


Idade Neobarroca


Mas também pela sua reconstituição do final dos anos 1980, Tetris é um filme ótimo para ilustrar as origens daquilo que o filósofo Omar Calabrese conceituava como “Idade Neobarroca”. Uma analogia ao que foi a sensibilidade barroca no século XVI: o declínio de certas formas de racionalidade pela celebração do fragmentário, do labirinto, do nó, pelas instabilidades, metamorfoses, desordem, caos, o lúdico e o jogo – leia CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca, Martins Fontes, 1987.

Uma nova sensibilidade “neo” que coincide com a posse de Alan Greenspan no Federal Reserve, o fim das rédeas que seguravam Wall Street, Consenso de Washington e o início da Globalização e do capitalismo cassino – a interligação em tempo real de todas as praças financeiras.

Não é por menos que os jogos de computador acompanham esse novo salto mortal do Capitalismo: é a celebração estética do curto prazo, do fragmento, do prazer de andar às cegas em um território sem ter o mapa do todo. 

Afinal, o prazer do vídeo game é o mesmo dos operadores e investidores das roletas do capitalismo cassino.

Isso foi fatal para a URSS: não conseguiu dar o mesmo salto mortal do Capitalismo. Afinal, a planificação econômica socialista foi o último subproduto vintage do racionalismo cartesiano clássico.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Tetris

Diretor: John S. Baird

Roteiro:  Noah Pink

Elenco: Taron Egerton, Nikita Efremov, Toby Jones, Ayano Yamamoto, Roger Allan

Produção: Al-Film, Marv Films

Distribuição: Apple TV +

Ano: 2023

País: EUA/Reino Unido

 

   

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