O mundo das criptomoedas é, ao mesmo tempo, sedutor e misterioso: promete que “o dinheiro trabalhará por você” e lhe dará ganhos rápidos através de ferramentas esotéricas como “blockchain”, “criptografia”, “faucets”, “tokens” etc. Ao lado de aplicativos e plataformas, tudo exala positividade, appeal jovem e progressista. Emulando seitas e religiões. E ocultando o clássico esquema ponzi das pirâmides financeiras. Além de destruir da noite para o dia relações familiares e de amizade que levaram anos para se consolidarem. Esse é o tema da produção Netflix “Crypto Boy” (2023) do premiado cineasta holandês-egípcio Shady El-Hamus: um jovem entregador de burritos de um velho restaurante mexicano do seu pai sonha com um futuro melhor. Até que acaba seduzido pelos sonhos ambiciosos de uma startup de criptomoedas que está em rápida ascensão no capitalismo cassino.
Em um episódio da animação O Incrível Mundo de Gumball, Darwin e Gumball perguntam para o seu pai, o coelho Ricardo, de onde vem o dinheiro com o qual a família se sustenta. Poderíamos esperar alguma lição moral sobre a nobreza do trabalho do pai aos filhos. Mas Ricardo é mais prático: leva os filhos para um caixa eletrônico bancário e mostra: “a mamãe me dá esse cartão e o dinheiro sai dessa máquina...”.
Mais do que uma irresponsabilidade feliz do coelho Ricardo, ele tem uma relação fetichista com o dinheiro: assim como alguns acreditam que achocolatado sai diretamente das tetas da vaca, outros creem em coisas como “dinheiro atrai dinheiro” ou “não trabalhe por dinheiro, deixe o dinheiro trabalhar por você”.
Essa é a relação básica que a fantasmagoria do capitalismo criou com o dinheiro. Marx falava em “fetichismo” ou uma relação invertida com o mundo: trabalho produz dinheiro e dinheiro gera lucro. Não há relações sociais de produção e exploração em que muitos perdem e poucos ganham... apenas alguns ganham dinheiro e outros não.
O mundo das bitcoins é a potencialização dessa fantasmagoria, agora com o feitiço tecnológico das telas, aplicativos, plataformas e cripto empresas que colocam na linha de frente CEOs jovens, arrojados, otimistas. No fundo, excelentes vendedores de si mesmos. Atrai principalmente jovens pelo appeal “antissistema” que as criptomoedas possuem – um sistema descentralizado, enigmático e misterioso. Uma verdadeira nova religião na qual, se tiver fé cega, verá o milagre da multiplicação do dinheiro nas telas do seu aplicativo.
A produção Netflix do premiado cineasta holandês-egípcio Shady El-Hamus, Crypto Boy (2023) é um filme que descreve o atrito dessa imaterialidade financeira com o mundo real das relações humanas em um pequeno bairro ao leste de Amsterdã.
Um bairro que está ameaçado pela outra faceta desse novo capitalismo imaterial e especulativo: a gentrificação urbana – pequenas lojas de conveniências de famílias de imigrantes há décadas estabelecidas no local estão sendo substituídas por cafés da moda, lojas de sushis e estúdios de fitness. E para serem expulsos do bairro, a especulação imobiliária faz os aluguéis dobrarem.
Cripto Boy é um conto moderno sobre um jovem chamado Amir (Shahine El-Hamus) entregador de burritos de um velho restaurante mexicano do seu pai, Omar (Sabri Saad El-Hamus), e que sonha com um futuro melhor. Até que acaba seduzido pelos sonhos ambiciosos de uma startup de criptomoedas que está em rápida ascensão.
É um conto sobre como relações quase familiares locais de antigos comerciantes e moradores, está sendo cercada pela acelerada especulação imobiliária e pelas sedutoras ofertas de indenizações para que caiam fora do bairro. E de como o jovem Amir, insatisfeito com a teimosia do pai em não querer modernizar o seu negócio, é seduzido pelo canto da sereia do lucro fácil e rápido.
Um jovem CEO que arregimenta novos vendedores e cliente investidores como um líder de uma seita com palavras mágicas como “deixe o dinheiro trabalhar por você” ou “o trabalho é tributado, o capital não” – e o pior é que é verdade!
Ao final, Crypto Boy é um conto otimista ao estilo dos filmes do clássico diretor norte-americano Frank Capra -Do mundo nada se leva (1938), O galante Mr. Deeds (1936), Aconteceu naquela noite (1934) e A felicidade não se compra (1946). Filmes otimistas, quase propagandas dos ideais e valores do sonho americano feitos para se contrapor ao pessimismo da Grande Depressão dos anos 1930. Como o idealismo, o caráter e a união dos justos podem vencer os poderosos corruptos que levaram os EUA à lona.
Tal como os filmes de Capra, Shady El-Hamus não pretende fazer uma crítica ao sistema especulativo do capitalismo do Reset Global. Limita-se ao alerta dos esquemas Ponzi de pirâmides financeiras – como se, em si, o capitalismo financeiro não funcionasse como um gigantesco cassino no qual fraudes em sites de apostas ou escândalos sobre “marajás das bitcoins” são apenas pontas do iceberg de um mesmo modus operandi.
O Filme
Crypto Boy nos leva a Amsterdã e, como em todos os contos sobre imigrantes, vemos o pai de Amir em seu restaurante mexicano, cercado por amigos da vizinhança, assistindo ao futebol na TV e discutindo uma questão muito importante: eles deveriam pegar o dinheiro que a incorporadora imobiliária está oferecendo como indenização e se mudar para um novo lugar? Se renderem à gentrificação?
Enquanto isso, seu filho Amir, de 20 anos, tenta ganhar algum dinheiro por fora, vendendo um produto chinês de contrabando nas ruas, atrasando as entregas de burrito do restaurante do pai.
Pai e filho compartilham uma relação de amor e ódio. O pai tenta ensinar ao filho o valor do trabalho duro e como ele, do nada, como imigrante egípcio, construiu aquele restaurante com sua mãe, já falecida. Amir está cansado daquela vida dura e pela teimosia do pai que não aceita as suas sugestões para modernizar o negócio da família.
Com o pai não há conversa: Omar ainda está de luto e raramente tem uma palavra gentil para o filho - acha Amir um irresponsável e que é incapaz de assumir o restaurante.
Desesperado para mostrar ao pai que ele não é apenas um desperdício de espaço na família, Amir entra em um trabalho de vendas em uma startup de blockchain em ascensão administrada por carismático CEO chamado Roy (Minne Koole).
Roy oferece a Amir o sonho de segurança financeira através do lucro rápido e fácil. O convida para festas regadas a drogas, bebidas e mulheres, além de passeios em aviões particulares, em momentos que nos fazem lembrar Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street.
À medida que o jovem vai se enredando pelo mundo criptográfico de Roy, a tensão entre ele e o pai Omar só se aprofunda.
Crypto Boy é previsível. Desde o início sabemos como e porque tudo vai dar errado. Amir é usado por Roy como uma mula de dinheiro. Ele recebe uma ligação do banco perguntando por que depositou quarenta e cinco mil euros e depois tirou com a mesma rapidez. Amir é um jovem ingênuo. Ele não percebe que o número da conta bancária que compartilhou com a empresa Crypto está sendo usado para fazer o dinheiro desaparecer. Mas ele tem certeza de que tudo está bem e que a desconfiança do banco não passa de preconceito do sistema contra as criptomoedas.
Amir começa a levar a poupança de familiares e amigos também para o seu negócio: vizinha Berta, que está igualmente farta de ser pobre e investiu suas economias de vida no mesmo aplicativo Crypto.
E ainda, sem o conhecimento de todos, Amir investe todo o dinheiro do seu pai na Crypto, enquanto o seu pai está hospitalizado. Somente quando o esquema ponzi explode na mídia é que Amir e Berta percebem que foram fraudados. Os policiais começam a questionar Amir e percebem que ele também foi vítima do esquema da pirâmide.
Crypto Boy não gasta muito tempo com os meandros dos criptonegócios. A relação entre Amir e Omar está no centro desse drama. Principalmente, o desespero de Amir de provar a si mesmo e ao pai de que é capaz.
Como nos contos de otimismo moral de Frank Capra na Grande Depressão, Crypto Boy é uma história de resistência de familiares e amigos diante dos poderes dos gananciosos corruptos – os vizinhos juntam dinheiro para Omar se recuperar e abrir um novo restaurante, enquanto o filho aprende o valor do trabalho da pior maneira possível.
A questão é que figuras como Roy e os escândalos dos “marajás das bitcoins” que eventualmente aparecem na mídia são apenas a faceta mais sensacionalista da natureza do atual capitalismo cassino no qual fraude e jogo substituem a produção de riqueza real – forma de produção abandonada pelo Capitalismo Tardio pela tendência da queda da taxa de mais-valia devido a contradição entre a crescente automatização da produção e a decrescente necessidade do trabalho real. De onde se originava a mais-valia dentro do capitalismo clássico.
Por enquanto, as explosões dessas bolhas financeiras são pontuais. Como, por exemplo, o súbito e infame colapso da FTX em 2022, uma das maiores plataformas mundiais de troca de criptomoedas, que provocou ondas de choque significativas através do altamente especulativo e volátil mundo dos bens digitais. O fundador da corretora de criptomoedas FTX, Sam Bankman-Fried, acabou sendo preso nas Bahamas.
Veículos como o “The Guardian” alertam para a hipótese de colapsos como esse contaminarem o resto da economia global – a suspeita de que esse sistema de trocas criptográficas ser construído “sobre areia” – clique aqui.
Seja como for, uma crise global que nunca é deflagrada. Porque, no frigir dos ovos, os lucros sempre são privatizados e os prejuízos socializados através dos sucessivos socorros de liquidez dos bancos centrais ao sistema financeiro.
Ficha Técnica |
Título: Crypto Boy |
Diretor: Shady El-Hamus |
Roteiro: Shady El-Hamus, Jeroen Scholten van Aschat |
Elenco: Sabri Saad El-Hamus, Shahine El-Hamus, Minne Koole, Manoushka Breeveld |
Produção: Caviar Films, Ficction Valley |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2023 |
País: Países Baixos |