quarta-feira, novembro 22, 2023

"Ele não é um líder, é um sintoma"... ironias e lições na vitória de Javier 'El Loco' Milei


O ex-ministro da Economia Argentina Domingo Cavallo foi direto referindo-se a Javier Milei: “Ele não é um líder, é um sintoma da sociedade argentina”. Uma observação repleta de ironias, a começar por quem cometeu esse sincericídio. Se Milei é um sintoma social, tudo começa com Cavallo, passando pelo grupo de comunicação que ele beneficiou e que construiu o personagem “El Loco”: a Corporación América. Um personagem que, como sempre na estratégia alt-right de comunicação, borrou as fronteiras entre ficção e realidade (canastrice política). Paradoxalmente, ocultou a agenda neoliberal com um anarcocapitalismo com uma embalagem rock n’roll, antissistema e revolucionária. Como sintoma, reflete o psiquismo coletivo da cismogênese - o nacionalismo mesclado de prepotência e melancolia de um país que se sente como um pedaço da Europa perdida na América do Sul.

“Ele não é um líder, é um sintoma da sociedade argentina”, declarou o ex-ministro da Economia Domingo Cavallo sobre o presidente eleito da Argentina. A opinião de Cavallo se aproxima análise de Juan Luis Gozález, autor de uma biografia crítica de Javier “El Loco” Milei ao jornal La Nacion: “ele é um grande comunicador que serviu como canalizador para todos aqueles insatisfeitos com a democracia”. 

O diagnóstico crítico de Cavallo a respeito do fenômeno Milei guarda uma grande ironia. Principalmente, quando sabemos que a ascensão de “El Loco” (principalmente a construção do personagem) está associado ao bilionário argentino de origem armênia Eduardo Eurnakian, dono do conglomerado de mídia e concessão de aeroportos chamado Corporación América, para o qual Milei trabalhou por mais de uma década como economista-chefe.

Ele começou a ganhar progressiva notoriedade a partir de 2016 como comentarista em TV locais do grupo nas quais começou a vociferar suas teorias econômicas “libertárias” com seu estilo intempestivo e visual que lembrava uma espécie de avatar roqueiro messiânico.

Demorou pouco tempo para que fosse convidado por outros programas, dessa vez de alcance nacional – programas de entrevistas e debates. 

Mas também nos programas de infotenimentos matinais e vespertinos nos quais cimentou sua imagem, por assim dizer, “exótica”:  ver o destino através das cartas de tarot da irmã, autodenominar-se professor de sexo tântrico e descrever suas capacidades mediúnicas em comunicar-se com o espírito de um cachorro morto que, quando vivo, era a reencarnação de um gladiador da Roma antiga.

A ironia está no fato de a fortuna do empresário Eduardo Eurnekian ter se consolidado na Lei de Conversibilidade sacada da cartola de Cavallo nos anos 1990, quando Ministro da Economia do governo peronista Carlos Menem – a equivalência artificial entre dólar e peso criou a estabilidade financeira e de preços na Argentina necessária para que seus investimentos se tornassem ainda mais lucrativos. Em 1994, ele vendeu uma participação de 51% na Cablevision S.A. (na época a segunda maior operadora de cabo da Argentina) para a Tele-Communications Inc. por US$350 milhões e, em 1997, arrecadou US$320 milhões vendendo a maioria de suas ações restantes para a gigante de investimentos local CEI Citicorp Holdings SA.


Eurnekian e Milei: criador e criatura


O fim da ficção da conversibilidade, agravada ainda com o “Corralito” em 2003, gerou a explosão inflacionária e a pobreza das décadas seguintes – exatamente as condições que resultaram no “sintoma” Milei. E a fortuna do bilionário que sustentou financeira e logisticamente a mitologia do “El Loco”.

Curiosa a sinceridade do ex-ministro Cavallo: ele, ao lado do bilionário argentino, são os co-reponsáveis por “El Loco”.

“Ele não é líder”

A segunda parte do sincericídio de Cavallo (“Ele não é um líder”) é mais uma confissão: de que uma agenda neoliberal “puro sangue” jamais ganhou uma eleição. Nenhuma liderança seja empresarial, seja política ligada diretamente a lideranças patronais, conseguiu ganhar eleições majoritárias – destruir, acabar, vender, privatizar, isto é, vender o projeto de que o eleitor terá um futuro melhor se cortar um pedaço da própria carne nunca foi um discurso bom de voto. Se qualquer candidato expusesse objetivamente para o eleitorado o que representa o saco neoliberal de maldades, certamente seria vaiado e todos virariam as costas. Sempre foi historicamente assim.

Por exemplo, veja caro leitor o caso brasileiro no qual a agenda neoliberal somente chegou ao poder quando embalada e ocultada por camadas de marketing político, comunicação e retórica: a presença midiática do personagem “caçador de marajás” de Fernando Collor de Mello, ajudado pela teledramaturgia da TV Globo coma novela Que Rei Sou Eu; e, de forma mais explícita, o capitão da reserva Bolsonaro, tirado do obscurantismo do “baixo clero” do Congresso para a ribalta dos programas de entretenimento da TV, deixando qualquer tema econômico para o ainda mais obscuro Paulo Guedes – que propositalmente se escondia do debate eleitoral.


Ocultar a agenda neoliberal com o storytelling da Jornada do Herói


Disso decorre que a agenda neoliberal (e a burguesia) necessita visceralmente do extremismo de direita. Porque vê nela seu “exército psíquico de reserva”, um repositório de “sintomas” possuídos pela indignação messiânica dos loucos e profetas. Um repositório de personagens prontos para receberam uma tradução política, uma agenda ou, mais precisamente, um storytelling para performar alguma figura arquetípica dentro da Jornada do Herói.

No Brasil, Bolsonaro viveu o arquétipo do Herói (o “Mito”). Enquanto Javier Milei encarnou o Trickstero Trapaceiro, o Palhaço, o Coringa. Um arquétipo que parece ser uma comédia de opostos: “A loucura é a saída de emergência da nossa sanidade”, é como se dissesse o tempo inteiro. Serve como uma espécie de alívio cômico para as mitologias religiosas como as do sebastianismo (encarnadas por Lula) ou das lutas trágicas do Herói.

O paradoxo é que Milei teve que executar esse storytelling num país mergulhado na hiperinflação, no qual os temas econômicos estão na ordem do dia. Por isso, seu papel não foi tão fácil quanto o de Bolsonaro, bastando empurrar as questões de economia para o seu “Posto Ipiranga”. 

Milei não poderia usar a mesma estratégia alt-right de Bolsonaro: esconder-se por trás da pauta de costumes e da guerra cultural. Ao contrário, “El Loco” teve que confrontar a pauta econômica, sem procurações.

Anarcocapitalismo rock n’roll

A ironia é que ele tratou a economia dentro do campo utópico à direita do espectro político: o Anarcocapitalismo. Como evitar a agenda neoliberal que assusta tanto os eleitores? Ora, indo para além do neoliberalismo, para a sua extrema-direita. Tão utópica que soa para os incautos eleitores (principalmente os jovens desiludidos e sem futuro – o niilismo, característica da cultura hiperinflacionária) como algo realmente anárquico, revolucionário, antissistema... ou “libertário”, como denominou a cobertura “fofa” da grande mídia.

“Sou o primeiro presidente Anarcocapitalista da História!”, bradou Milei no discurso da vitória. É inegável que o prefixo “Anarco” soa muito “rock n’roll”, excitante, sedutor, jovem e revolucionário.

A cunhagem “Anarcocapitalista” está lá nos anos 1940, termo usado por Murray Rothbard, misturando Escola Austríaca, liberalismo clássico, com anarquistas e mutualistas americanos do século XIX. Para ele, seria a evolução natural em relação ao Capitalismo de Estado – a eliminação da ineficiência do Estado pela racionalidade dos mecanismos de preços e a “troca pacífica e voluntária” do mercado. Livrar a sociedade do “monopólio coercitivo da força” do Estado.




Este humilde blogueiro não sabe o que Rothbard pensava sobre a práxis real da sua teoria. Mas na Argentina, um dia depois da vitória de Milei, o valor das ações das estatais na mira da privatização a toque de caixa disparou. A patranha da temporada das privatizações vai começar, com muito lucro especulativo no mercado financeiro e propinas e comissões no sistema político.

O que essa ingênua utopia à extrema-direita no neoliberalismo não consegue enxergar é que há muito o Estado foi privatizado: com as emissões de títulos da dívida no mercado financeiro rendendo polpudos juros para a especulação financeira, com seus subsídios, suas isenções fiscais e pela regulação de monopólios e cartéis que criam as condições de um capitalismo delicioso, sem concorrência e com lucros garantidos.

E as privatizações, a última parte do osso ainda com carne para o mercado. Sem Estado e dinheiro público, o que será do Capitalismo? Quem injetará liquidez nos mercados ameaçados por crash sistêmicos a cada crise?

Quem sabe Rothbard estava sendo irônico, e ele nada mais imaginava do que uma superação paradoxal do Capitalismo através da sua própria autodestruição... começando pelo fim do Estado.

Mas o El Loco não é tão louco assim, e os argentinos descobrirão da pior forma: por trás dele estão o ex-presidente Macri e os políticos profissionais (a “casta”) que Milei tanto execrava – e se for confirmada a escolha de Federico Sturzenegger para assumir o Ministério da Economia, apenas confirmará o fortalecimento do grupo Macri dentro do novo governo. 

Cismogênese

E para terminar, a última ironia. A guerra híbrida brasileira que conseguiu emplacar o golpe militar híbrido com a vitória de Bolsonaro, explorou duas feridas psíquicas nacionais para criar a cismogênese: a questão militar e a escravidão.



Na Argentina, a guerra híbrida (lembre-se, o movimento alt-right é internacional, coordenado pelo Departamento de Estado dos EUA e necessário para a geopolítica norte-americana) contou com outra ferida psíquica bem diversa: o nacionalismo melancólico de um país que se sente como um pedaço da Europa perdida na América do Sul. 

Talvez essa crise de identidade explique o porquê de um movimento psicanalítico tão forte como na Argentina – a partir de 1955 a psicanálise deixou de ser uma prática privada reservada às elites da capital. A ampliação dessa clínica foi favorecida tanto pela abertura de novos espaços institucionais públicos como por transformações ocorridas nos já existentes, onde alguns passaram a adotar técnicas de "inspiração psicanalítica". 

Milei jogou com a xenofobia ao chamar Lula de “bandido comunista” e menosprezar o Mercosul. Definitivamente, Milei explora essa fraca identidade regional, como descrita pelo psicanalista argentino José Eduardo Abadi:

Os argentinos, especialmente os portenhos, consideram que são os europeus da América do Sul. Existia uma ideia de que isto era como uma sucursal da Europa. Diziam que Buenos Aires era como Paris. Diziam que o Jardim Botânico daqui era como o Bois de Boulogne. Não é bem assim. Na Europa nem sabem quem somos. E além disso, a realidade econômica demonstrou que isto não é Europa - clique aqui.

Como salienta José Abadi, a crise econômica crônica coloca em choque a ficção e a realidade, resultando num misto de prepotência e melancolia. E, por fim, a raiva. Mas ele destaca que essa característica é principalmente do argentino portenho, os habitantes da cidade de Buenos Aires. “Mas agora também existem os "portenhos" de cada província, ou seja, segmentos que, por imitação dos portenhos de Buenos Aires, surgiram nos últimos anos no interior”, observa Abadi.

Para Abadi, essa prepotência leva ao “pensamento mágico” – a ideia de que as mudanças podem ser imediatas, como em um passe de mágica. "Saídas mágicas", como a blindagem financeira, a mega-troca de bônus, a cesta de moedas, o ajuste fiscal, e todas acabaram decepcionando. 

Portanto, usando uma expressão bem portenha, Milei seria apenas “mais do mesmo”.

 

 

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