Considerado o filme mais assustador já feito, “O Exorcista” (1973) completou 50 anos. E está envelhecendo muito bem, principalmente pela sua atemporalidade. Embora baseado em um caso real estudado pelo laboratório de parapsicologia da Universidade Duke financiado pela CIA e Fundação Rockefeller (o oculto e a parapsicologia como ferramentas de espionagem na Guerra Fria), sua atemporalidade vem do horror metafísico que ele desperta: como Deus pode permitir uma legião de demônios soltos entre os homens e possuir o corpo de uma jovem inocente? Apesar de ter inspirado todos os clichês dos filmes de terror repetidos ad nauseam ao longo das décadas, suas cenas são assustadoras porque inspiram uma desconfiança gnóstica: será que Deus não nos ama? Além do filme ter um subtexto secreto: será que a mídia estaria criando a forma contemporânea de possessão demoníaca?
Em outubro a obra-prima do terror O Exorcista, de William Friedkin, completou 50 anos, sendo ainda considerado “o filme mais assustador já feito”.
O clássico vem envelhecendo muito bem. Principalmente porque ele ainda é considerando o melhor filme de terror não só porque é assustador, mas também é um filme trágico e dominado por um horror metafísico gnóstico – será que realmente esse mundo é de Deus? Ou ainda, será que Deus ama mesmo seus filhos?
Mas também cabe lembrar nesse aniversário uma conexão muito pouco lembrada envolvendo o filme, ou, mais precisamente, o livro no qual a produção fílmica foi baseada: o livro homônimo de William Peter Blatty, de 1971.
A conexão com o Laboratório de Estudos Parapsicológicos da Universidade de Duke, EUA, liderado pelo casal J.B. e Louisa Rhine, envolvendo telepatia, psicocinese, clarividência e pré-cognição. Estudos iniciados na década de 1930 e que, principalmente com o início da Guerra Fria, passou a ser apoiado pela CIA, Fundação Rockefeller e Inteligência militar – clique aqui.
Os principais estudos de casos foram episódios de poltergeist em New Jersey, quando os pesquisadores acabaram entrando em contato com o padre responsável pelo exorcismo de um jovem chamado Roland Doe, de Cottage City, Maryland, que na década de 1940 supostamente passou por uma posse demoníaca e o ritual de exorcismo muito parecidos com narrado em O Exorcista.
O livro de William Peter Blatty foi inspirado no relatório dos estudos da Universidade de Duke lido pelo autor.
Mas se tanto o livro quanto o filme foram inspirados em relatórios de um departamento universitário financiado por interesses geopolíticos (durante a Guerra Fria a CIA sempre esteve fortemente interessada em pesquisas cujas descobertas poderiam transformar o parapsicológico e o oculto em armas de espionagem – clique aqui), o filme O Exorcista acabou se inserindo no específico zeitgeist do cinema americano dos anos 1970: o “cinema esquizo”.
Filmes como Perdidos na Noite, Easy Rider, Um Estranho no Ninho etc. começam a trazer um novo realismo misturado com desespero, cinismo e paranoia política, dando ao cinema americano uma maturidade crítica. Os próprios protagonistas desse período são retratados não mais como heróis convencionais, mas, agora, potencialmente psicopatas, esquizoides, alienados e revoltados.
Protagonistas instáveis, obsessivos e paranoicos indicam um processo de maturidade do diagnóstico da sociedade norte-americana: a origem de todo mal-estar da sociedade americana só pode ser encontrada na própria sociedade, nas suas próprias instituições constitutivas. Da desilusão e rebeldia sem causa da geração anterior de Marlon Brando e James Dean, a paranoia e psicopatia passam a ser respostas válidas e adequadas do herói dos novos tempos – Leia HORSLEY, Jason, The Secret Life of Cinema: Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema. London: McFarland, 2009.
A verdadeira história de O Exorcista está na dualidade entre os dois padres exorcistas: o padre Merrin (Max Von Sydow) e o padre Damien Karras (Jason Miller) – o primeiro, um estudioso em arqueologia que na abertura do filme o acompanhamos encontrando em um sítio no Iraque estátuas da divindade demoníaca Pazuzu. Um padre movido por uma fé estoica, sugerindo (e esta é uma leitura particular desse humilde blogueiro) que Pazuzu o acompanhou de volta aos EUA determinado a revê-lo no exorcismo futuro para tentar a sua fé.
Enquanto o padre Karras é o oposto do estoicismo de Merrin: após a morte da sua mãe vive corroído pela culpa. Um padre formado em psiquiatria que luta contra sua própria fé. Tanto no livro quanto no filme, o personagem mereceu uma profundidade rara. Porque ele é a essência da história: como Deus pode permitir uma legião de demônios soltos entre os homens, ao ponto de possuir o corpo de uma inocente jovem adolescente impingindo horror e sofrimento?
Karras se depara com o próprio horror metafísico que corrói suas certezas teológicas: será que Deus é indiferente com seus próprios filhos? Ou, ainda pior, Ele não nos ama?
O Filme
O Exorcista começa no Iraque, durante um esforço de escavação em um sítio arqueológico liderado pelo padre arqueólogo Merrin. A abertura do filme é assustadora, já que o demônio Pazuzu está sendo desenterrado, mas nunca estritamente visto. Uma estátua de Pazuzu é vista duas vezes rapidamente. Mas é a atmosfera conjurada por Friedkin que torna a sequência assustadora.
O design sonoro é atmosférico e sombrio e as paisagens desérticas do Iraque são utilizadas para sugerir um vazio, uma falta de segurança de qualquer ajuda próxima. Dois cães lutando é a imagem mais direta de violência na seção de abertura do filme. Um evento relativamente mundano. Mas a maneira como Friedkin apresenta essa imagem e o contexto ao redor a torna um presságio assustador do que está à espera do espectador.
Essa atmosfera inicial é carregada para todo o filme. Nunca há um alívio cômico. O Exorcista é realmente constantemente pesado, sobrecarregado, puro desconforto.
Aos poucos, o demônio começa a tomar conta do corpo e mente da menina Regan (Linda Blair). Sua mãe Chris (Ellen Burstyn) é uma atriz divorciada que recentemente mudou-se com sua filha para Georgetown para uma filmagem.
Entre sets de filmagem e festas na sua casa com a trupe da produção cinematográfica, Regan se submete a uma bateria de exames neurológicos em um hospital. Agulhas longas esguichando sangue e o som mecânico pesado e alto das chapas fotográficas cranianas são intimidantes e assustadoras, mantendo a tensão num crescendo.
A junta médica não consegue determinar o porquê da crescente alteração de comportamento de Regan: de uma doce menina a uma jovem desbocada e desafiadora.
Além desses horrores psicológicos, o filme também se torna fisicamente intenso à medida que continua. A contorção corporal semelhante à de uma aranha de Regan descendo a escadaria é, claro, uma das sequências mais famosas do filme — por uma boa razão também. É totalmente petrificante. Sua cabeça girando para trás, como uma coruja satânica, além de uma sequência em que vemos Pazuzu no controle do corpo de Regan, repetidamente golpeando com um crucifixo as genitais de Regan é uma das imagens mais horríveis da história do cinema. Esses horrores físicos, embora intensos por si só, têm impactos mais duradouros por causa do interesse de Friedkin e Blatty em seus personagens.
O que torna O Exorcista atemporal é que todas essas cenas (depois repetidas nas próximas décadas em infinitas variações como clichês) são jogadas na cara tanto do espectador como dos padres Karras e Merrin como se o demônio quisesse questionar, através desse show ostensivo, algo que a fé cristã quer evitar: por que Deus permite tamanhas atrocidades? De guerras ao sofrimento atroz de uma menina inocente.
Esse é o horror metafísico do Padre Karras, desde que sua mãe morreu. Que põe em dúvida a sua fé, ameaçando a segurança do próprio ritual de exorcismo.
Karras está fazendo um questionamento gnóstico: se Deus permite que tudo isso aconteça para provar a nossa fé, então ele é um manipulador sádico. No mínimo, não nos ama. Lembrando o advogado Milton (Al Pacino) em O Advogado do Diabo (1997), quando personifica o próprio Satanás em pessoa: “Deus somente gosta de observar, é um brincalhão (...) Ele apenas rola de tanto rir (...) Adorar aquilo? Nunca! Melhor reinar no Inferno do que servir ao Céu”.
Mídia e possessão demoníaca
Um ponto ignorado por muitas análises de O Exorcista é o personagem Chris, mãe de Regan. Por que uma personagem atriz, ligada a indústria cinematográfica e fazendo gravações de um filme no momento da possessão da filha? Ela é divorciada e, naquele momento, Regan vive em uma família desfeita, acompanhada em suas necessidades cotidianas por uma secretária, enquanto Chris atua nos sets de gravações.
No auge da crise, Chris tenta contatar o ex-marido, naquele momento na Itália, em busca de apoio. Mas não consegue encontrá-lo.
O Exorcista também trata do colapso da família tradicional. E um simbolismo mais profundo: sem a devida proteção parental, Regan está vulnerável ao ataque do Mal. Como sempre, o Mal entra na casa de Regan convidado, se passando como um amigo imaginário do jogo de tabuleiro espiritualista Ouija.
Muitos estudos sobre a crise da família tradicional (para começar, os estudos sobre a personalidade autoritária de Theodor Adorno) apontam para o esvaziamento da autoridade parental, tanto pela ausência física quanto pelo enfraquecimento simbólico. E a substituição dos pais ausentes pelos meios de comunicação e a indústria do entretenimento – os modelos de ideais do ego deixam de ser os pais para serem substituídos pelas celebridades midiáticas.
A influência e manipulação midiáticas seriam as novas entidades demoníacas capazes de aumentar exponencialmente sua capacidade de possessão de corpos e mentes? Seria esse um subtexto no clássico O Exorcista?
Ficha Técnica |
Título: O Exorcista |
Diretor: William Friedkin |
Roteiro: William Peter Blatty |
Elenco: Ellen Burstyn, Linda Blair, Max von Sydow, Jason Miller |
Produção: Warner Bros. |
Distribuição: HBO Max |
Ano: 1973 |
País: EUA |