O medo acompanha toda a história humana, seja como introspecção ou como instrumento social e político de organização e dominação.
Medo e horror certamente rondaram o homem primitivo diante da Natureza ameaçadora, a posição inferior na cadeia alimentar sujeito às investidas dos animais selvagens de maior porte, raios que cruzavam os céus espalhando terror e os mau humores geológicos-ambientais com terremotos, vulcões, secas e inundações.
O grito de horror diante de um cosmo aparentemente sem sentido ou propósito fez surgir o mito e a magia – a repetição dos ritos mágicos tentava imitar os padrões e repetições da Natureza, buscando esconjurar o mal e expiar o medo diante da Natureza incontrolável. O mito e a magia foram os primeiros instrumentos humanos para tentar expulsar o medo do cotidiano diante da promessa da magia de obter alguma forma de ação à distância: controlar as forças da Natureza e do Destino.
Complexos rituais mágicos e intrincadas cosmogonias mitológicas criaram um conhecimento hermético restrito a uma casta de sacerdotes e iniciados. Não demorou muito para essa elite hermética se transformar numa classe dominante, transformando a mitologia em religião e o sistema politeísta em um deus único inquisidor e punitivo.
Pela primeira vez, a religião associa o pecado ao medo: se um raio caiu na sua cabeça ou se um infortúnio se abateu na sua vida, o único culpado é você, um pecador que mereceu o castigo de Deus. A ideia religiosa do pecado associado ao medo fez surgir a esperança do resgate e da redenção que só a Igreja poderá manipular.
O “Deus Juiz” criado pelos católicos e protestantes, por exemplo, cria um macabro ecumenismo de manipulação do sentimento humano desde a preparação da morte até à última confissão. Deus, na sua “infinita clemência”, até poderia perdoar os pecados. Mas desde que o infeliz pecador se dispusesse a fazer penitência dolorosas e humilhantes. Pronto! Temos aqui as bases da dominação política através do medo, matriz que transcendeu a própria religião para se esgueirar na política secular ou nas estratégias midiáticas da propaganda e publicidade iniciadas no século XX.
O mais novo sucesso sul-coreano na plataforma Netflix (depois de Round 6), a série Profecia do Inferno (Hellbound, 2021- ) do diretor Yeon Sang-ho (baseado em um webtoon chamado The Hellbound), cria um futuro próximo distópico de uma nova religião ecumênica baseada não apenas no pecado e medo. Mas também em um fenômeno sobrenatural aparentemente aleatório, sem sentido ou propósito, mas que é rapidamente racionalizado por um suposto profeta como mais um sinal da ira de Deus.
Oportunistas, líderes de seitas e crentes cegos começam a girar em torno de um fenômeno inexplicável: de repente, um ser celestial visita uma pessoa para anunciar a data e hora da morte da vítima. No momento marcado surgem três imensas bestas peludas cinzentas como o Hulk que implacavelmente a perseguem até matá-la com crueldade, incinerá-la e levar embora a alma do infeliz.
Esses episódios criam uma histeria pública até que uma nova organização religiosa, apoiada por uma milícia fundamentalista, rouba a narrativa afirmando que tudo representa a ira divina contra a humanidade pecadora e que suas almas estão sendo levadas para queimarem no Inferno.
As vítimas são ressignificadas como pecadoras e suas famílias estigmatizadas. O medo toma conta da sociedade e essa nova religião vira um sistema totalitário de vigilância de pecaminosos, com ajuda da polícia e tolerância do Estado.
Como na série Round 6, Profecia do Inferno tem o mesmo pano de fundo sócio-econômica da Coréia do Sul atual: empobrecimento e endividamento da população – se em Round 6 jogar é a única alternativa para fugir da penúria, em Profecia do Inferno nem isso: jogos e dívidas cujos pecadores poderão ser arrastados para o Infernos pelas gigantescas bestas.
A Série
Com uma primeira temporada composta por seis episódios, acompanhamos as primeiras em cenas alta rotação: em plena luz do dia, no meio do trânsito congestionado da capital Seul, surgem três bestas cinzentas gigantes perseguindo um homem aterrorizado. As criaturas não poupam efeitos colaterais: começam a atirar pessoas que veem pela frente contra os carros, paredes, como fossem brinquedos. Depois de um rastro de sangue e destruição, finalmente capturam o alvo, para então queimá-lo com uma luz brilhante até virar um monte de ossos carbonizados. E voltam para o nada, carregando a alma da vítima.
A princípio, este episódio é investigado como um crime por um experiente policial chamado Jin Kyung-hoon (Yang Ik-june) que trata tudo como um crime comum. Porém, essa morte foi capturada em telefones com câmera, postadas nas redes sociais e se tornou sensação viral.
Isso seria apenas o começo de algo ainda mais demoníaco do que o ataque das bestas: o fanatismo religioso, o pânico público e o frenesi da mídia que se seguiriam. Essa é a premissa desta série assustadora e com uma narrativa em slow-burning – pelo menos nos primeiros episódios.
Profecia do Inferno mostra como a desinformação pode ser espalhada e amplificada na era da Internet para manipular pessoas.
O detetive da polícia Jin Kyung-hoon ainda está se recuperando do assassinato de sua esposa há seis anos e agora é o infeliz oficial encarregado de investigar essas mortes sobrenaturais. Enquanto isso, a advogada Min Hey-jin (Kim Hyun-joo) também está investigando o surgimento de uma seita chamada Nova Verdade, liderada por seu carismático líder, Presidente Jung Jinsu (Yoo Ah-in). Os “novos verdadeiros” proclamam os fenômenos demoníacos como uma revelação de Deus, ganhando poder por meio de suas legiões de seguidores recém-convertidos.
Para piorar as coisas, uma facção extremista da Nova Verdade, chamada Arrowhead, lança uma campanha para envergonhar publicamente esses chamados “pecadores”, estigmatizando seus familiares ao expô-los nas mídias sociais.
No episódio dois, revelam em um canal do YouTube que a próxima vítima será Jungja Park (Kim Shin-rok). Surpreendentemente, seu único “pecado” é ser mãe solteira de dois filhos com pais diferentes.
Um youtuber delirante até mesmo declara ser essa pobre mulher um sintoma da decadência moral da sociedade, antes de encorajar os espectadores xeretar a vida da vítima e impedir que seus dois filhos não possam fugir do país.
A Sra. Park recebe então um pagamento lucrativo da igreja Nova Verdade para transmitir sua “demonstração” (leia-se: execução demoníaca) ao vivo através das mídias sociais e de massas.
Monta-se um cenário distópico revoltante ao melhor estilo Black Mirror - centenas de espectadores, streamers e a mídia convencional se reúnem para assistir a morte de uma mulher pelas bestas supostamente vindas do Inferno.
Profecia do Inferno faz um ótimo trabalho ao retratar uma sociedade vulnerável neste novo status quo. Com transmissão ao vivo supostamente provando a existência de um inferno e a implicação da existência de um deus vingativo, os puritanos recebem palanques públicos para julgar e condenar qualquer um. A igreja Nova Verdade (com o apoio da milícia Arrowhead ao estilo da SA da Alemanha nazista) alimentam o medo, ganhando influência de lunáticos lançam teorias de conspiração infundadas online e turbas fanáticos de vigilantes vagam pelas ruas para punir céticos seculares, pecadores e heréticos - tudo isso enquanto a mídia de massa trata tudo na costumeira linguagem sensacionalista.
Uma religião sem pecado original – alerta de spoilers à frente.
Medo associado ao pecado, sob um cosmos regido por um Deus Juiz, são os ingredientes perfeitos para se instituir um sistema totalitário. Até que surge uma verdade inconveniente para a igreja Nova Verdade com sérias implicações teológicas (e políticas): dessa vez, um anjo anuncia a morte para um bebê recém-nascido em uma maternidade. Quê pecado um recém-nascido poderia ter praticado para merecer o terrível castigo?
O vídeo desse anúncio é o trunfo para os opositores desmascararem a Nova Verdade. Por razões doutrinárias, a igreja não aceita o pecado original e, muito menos, a redenção:
Apenas atos evitáveis são considerados pecados. Não há pecado original e redenção. Nem a luxúria nem a ganância são pecados. Se modificarem, acharão difícil entender e seguir a doutrina. Um mundo perfeito onde ninguém cometa atos perversos. Ao fazer esse objetivo irreal parecer possível, eles fazem as pessoas vigiarem umas às outras. O medo e a catarse das punições é o que dá força ao sistema deles. Por isso precisam de pecadores para servir de exemplo.
Essa linha de diálogo é um exemplo perfeito das manipulações teológicas com finalidades políticas, desde o Concílio de Niceia em 325 DC convocada pelo imperador romano Constantino I, que resolveu a questão cristológica da natureza de Jesus e sua relação com Deus Pai,
Aceitar o pecado original naquele bebê seria desmoronar toda a doutrina persecutória da Nova Verdade.
Medo, pecado, delação, confissão e punição são a base da matrix imaginária que sustenta todos os regimes políticos ocidentais, sejam seculares ou religiosos. Essa é a grande virtude da série Profecia do Inferno: descrever como essa matrix está atuante em pleno século XXI, na subcultura de cancelamentos e lacrações das mídias sociais.
Ficha Técnica |
Título: Profecia do Inferno (série) |
Diretor: Yeon Sang-ho |
Roteiro: Kyu-Seok Choi, Sang-ho Yeon |
Elenco: Yoo Ah-in, Kim Hyun-joo, Yang Ik-june |
Produção: Climax Studio |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2021 |
País: Coréia do Sul |