domingo, janeiro 30, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O Filme “O Terceiro Olho” (The I Inside, 2004) talvez seja um dos primeiros filmes a representar a experiência pós-morte de uma forma gnóstica. Ao abandonar as representações demoníacas e grotescas do sobrenatural, a dimensão pós-morte é apresentada não somente como uma oportunidade da gnose, mas, também, como a continuidade da ilusão da realidade terrena: o esquecimento da dimensão espiritual, aqui simbolizada pela perda da memória do protagonista. (alerta: esse post tem spoilers)
Perda da memória, paranoia, incerteza dos limites entre a realidade e a fantasia/ilusão/delírio e a procura do protagonista de alguma coisa perdida dentro dele mesmo (identidade, memória, certeza, verdade, iluminação etc.). Essas são algumas características do filme gnóstico. É claro que poderíamos encontrar tais características em muitos filmes de diversos gêneros como Thriller, terror, drama e assim por diante.
Mas uma diferença fundamental é encontrada, o que torna o filme gnóstico uma abordagem distinta dos demais filmes: a diferença entre daimon e demon.
Daimon, palavra grega para designar o intermediário entre o divino e o humano, uma consciência não humana, mas cósmica e, ao mesmo tempo, uma “voz interior” que não se confunde com o cogito cartesiano.
É a parte espiritual que habita cada um de nós. Ao ser apropriada pelos romanos converte-se na palavra “demônio” que, mais tarde, será apropriada pelo Cristianismo para caracterizar o mundo sobrenatural como grotesco, maléfico e demoníaco.
Conhecer a si mesmo, encontrar seu daimon, é um processo de gnose como salientam os gnósticos cristãos. Contra essa visão neutra do daimon, o Cristianismo e, mais tarde, o racionalismo ocidental, vão investir toda uma carga de significados grotescos e maléficos: os mundos sobrenaturais são habitados por demônios, escuridão, seres bizarros, perdição. Não há luz, mas apenas desorientação e perda.
No cinema o sobrenatural vai manifestar-se em porões, cavernas, becos, metrôs, profundezas oceânicas como força maléfica.
No filme “O Terceiro Olho” temos uma interessante reversão ao apresentar o sobrenatural ou a experiência pós-morte como o encontro do daimon do protagonista, a gnose.
Simon Cable ( Ryan Phillippe) acorda em uma cama de hospital é informado pelo médico (Stephen Rea) que ele apresenta um quadro de perda de memórias recentes. O fio condutor do filme é a luta de Simon em compreender e lembrar o que há nessa lacuna de dois anos de memória. Pela sua complexidade narrativa, lembra muito o filme “Amnésia” de Christopher Nolan pela sua narrativa cíclica (em loop), pois, apesar do fim, sabemos que a estória vai continuar a se repetir.
O filme possui três linhas narrativas: os acontecimentos do presente (ano 2002), os acontecimentos de dois anos atrás e as próprias lembranças fragmentadas de Cable. Progressivamente, essas linhas narrativas vão se juntando como peças de um quebra-cabeça na medida em que Cable descobre que ele não está apenas relembrando eventos, mas que, de fato, está se teletransportando no tempo, saltando entre os anos 2000 e 2002. Mais ainda, descobre que pode agir no ano 2000 e causar reflexos no presente (como um ferimento que impinge a um personagem no passado para as marcas aparecerem no presente).
Ao descobrir que ele teria matado seu irmão Peter Cable (Robert Sean Leonard) dentro do conflito de um triângulo amoroso, Simon tenta reverter isso ao tentar criar futuros alternativos. Aqui lembramos muito do filme “O Efeito Borboleta” (The Butterfly Effect, 2004), lançado naquele mesmo ano.
[spoilers a partir daqui] A atmosfera de um filme gnóstico vai aos poucos sendo construída: de uma realidade plana, aos poucos vai tornando-se multifacetada pela suposta capacidade do personagem viajar no tempo entre os anos 2000 e 2002. A perda da memória aparentemente vai se diluindo com a junção das peças do quebra-cabeça e a possibilidade de criar um futuro/presente alternativo e reverter a morte do irmão: ao invés de jogá-lo do penhasco ele pode levá-lo ao hospital e salvar-lhe a vida.
Mas, a sequência final reserva a descoberta da última peça do quebra-cabeça que vai, paradoxalmente, desmontar tudo que ele havia imaginariamente montado. Cable descobrirá que ele já está morto e que tudo que está vivendo (as supostas viagens pelo tempo) é um loop mental do qual ele está prisioneiro, sempre sedento por uma segunda chance para desfazer o mal que havia feito.
Radical visão gnóstica: o real é uma ilusão. No diálogo final com o irmão, Peter o exorta a despertar (simbolizada com a inserção de diversos takes, ao longo do filme, com a imagem de um olho que se abre), “deixar tudo para trás para continuar em frente”.
Todos os personagens que habitam suas memórias e “viagens no tempo” são as pessoas reais que o socorreram após o acidente de carro (o paramédico, a enfermeira do pronto-socorro, o enfermeiro que lhe aplicou o desfibrilador etc.). Um ano depois, o filme “A Passagem” (Stay, 2005) iria usar esses mesmos elementos: um homem que recusa a aceitar a morte preso em uma realidade ilusória, construído pela consciência culpada pela morte da sua família.
A existência pós-morte não é aqui apresentada de forma demonizada ou grotesca. O Mal é o esquecimento e a busca interior pela reminiscência daquilo que nos unirá ao Divino para que possamos “seguir em frente”. É a busca desse conhecimento, o daimon, por meio da gnose (no filme, o estado alterado de consciência produzido pela paranoia de Simon Cable que desconfia de uma conspiração dos médicos e enfermeiros do hospital).
Ao longo do filme, o espectador vai criando o perfil materialista do protagonista: de família rica, frequentador do colunismo social, presos a valores egocêntricos. Por isso, inconformado com o desfecho, tenta sempre “uma segunda chance” tornando prisioneiro de uma realidade em loop. A perda da memória do protagonista é simbólica: é o esquecimento da consciência espiritual (o daimon) tanto em vida quanto após a morte.
Comparando com os filmes gnósticos da década de 90 onde o protagonista é prisioneiro de realidades artificiais em vida (“Show de Truman”, “Matrix”, “Cidade das Sombras” etc.), em “O Terceiro Olho” temos a mutação do gnosticismo no cinema: agora o protagonista não só está prisioneiro em uma realidade interior (a mente) como isso está ocorrendo após a morte.
Morte não significa libertação da realidade física: ela pode ser uma continuação da ilusão. Se para as narrativas míticas gnósticas o cosmos físico é uma prisão garantida por formas de ilusão como o esquecimento e o apego ao materialismo (poder, sedução e conhecimento cartesiano), o esquecimento após a morte só pode ser a reencarnação: condenados ao esquecimento, recomeçamos sempre do zero, prisioneiros de um eterno loop cósmico.
Ficha Técnica:
Título: O Terceiro Olho (The I Inside)
Diretor: Roland Suso Richter
Roteirista: Michael Cooney
Elenco: Ray Phillippe, Sarah Pooley, Stephen Rea, Robert Sean Leonard, Piper Peralbo
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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