As impressões digitais de Ridley Scott estão espalhadas por toda a primeira temporada da série HBO Max Raised By Wolves (2020-): a paleta azul cinzenta coberta por vapor e névoas ondulantes, ambiência atmosférica, temperamental, inquietante e instigante, habitada por androides, um planeta alienígena e monstros à espreita em cantos escuros.
Embora Scott seja o produtor executivo da série criada Aaron Guzilowski, ele dirigiu os dois primeiros episódios. O suficiente para encontrarmos em todos os episódios referências a Alien, Blade Runner, Prometheus e Alien: Covenant.
Como já abordamos em postagens anteriores em torno dessa filmografia, Scott criou uma sólida mitologia sci-fi cujo ponto de partida é o confessado ateísmo do cineasta, tendendo para uma reflexão gnóstica sobre a condição humana diante de um Universo indiferente à presença humana. E mais: cujos supostos “deuses” (Tyrrel, em Blade Runner; os “engenheiros” da saga Alien etc.) são na verdade demiurgos que não nos amam. Pelo contrário, querem nos matar ou mesmo exterminar a nossa raça.
Mais uma vez em Raised By Wolves temos um planeta desolado e hostil que é a metáfora da condição humana nesse Universo, androides que parecem ter sentimentos mais humanos do que os próprios humanos e, até aqui, a suspeita de um demiurgo querendo dar cabo da raça humana.
Porém, Aaron Guzilowski acrescenta mais um elemento a essa mitologia: o mitraísmo, a religião dos mistérios surgida no Império romano no século II a.C. Religião disseminada entre os soldados romanos, tornou-se um forte concorrente do cristianismo. Até a religião oficial do Império, o Catolicismo Romano, incorpora vários elementos mitraicos: refeição ritual do pão e do vinho (transformado em simbolismo católico do sangue e corpo de Cristo), o “Sol Invictus” glorificado pelos mitraicos foi associado a Jesus, além de deliberadamente assumir o aniversário de Jesus em 25 de dezembro para convenientemente se aproximar do festival romano da Saturnália (17-23 de dezembro), além de incorporar do mitraísmo a salvação pessoal nessa vida e pós-morte.
Como o culto religioso ao deus Mitras (com origens ainda mais antigas, na Pérsia, adorado junto com o deus Sol) é incorporado na mitologia de Ridley Scott? Para demonstrar a arbitrariedade e artificialismo da religião, na série transformado em causa de guerra que destruirá a Terra na origem do argumento da série.
Na série, o mitraísmo se transforma numa vertente do cristianismo: de politeísta se transforma em monoteísta (o deus Sol se funda com Mitras), de culto iniciático, transforma-se em religião baseada em “escrituras”, como a Bíblia; além das vestimentas dos clérigos e imagens dos altares tomarem emprestados do catolicismo.
Na série, todos os personagens fugiram da Terra em busca de um exoplaneta distante chamado Kepler-22b: a Terra transformou-se em um planeta moribundo onde fanáticos religiosos mitraicos lideraram uma cruzada não tão bem-sucedida de livrar a humanidade dos ateus. De alguma forma não explicada, tornaram o planeta não-habitável: sobreviventes mitraicos tiveram que fugir através de uma nave espacial chamada “Arca”. Ao mesmo tempo, um cientista mitraico trai a religião e cria dois androides que são enviados secretamente para o mesmo exoplaneta com alguns embriões humanos e baldes de fluidos reprodutivos para criar uma nova colônia humana que comece do zero, livre da religião e inspirado apenas pela Ciência.
Dentro da mitologia Ridley Scott, esse é o personagem do demiurgo (assim como Tyrrel ou os engenheiros da saga Alien), cujo papel começa a ser delineado no final da temporada. Projetando para a segunda temporada a realização da sua verdadeira missão demiúrgica.
A Série
Acompanhamos a história que envolve dois androides servindo como Mãe (Amanda Collin) e Pai (Abubakar Salim), figuras em um estranho planeta até então desconhecido, Kepler-22b (um planeta extra solar que foi considerado o mais favorável à vida humana), depois que a Terra foi destruída pela eclosão de uma guerra religiosa. Eles são programados para incubar, dar à luz e criar filhos humanos para reconstruir a população e estabelecer uma civilização ateísta para impedir a extinção da raça humana. É um ambiente hostil e perigoso, mesmo para androides. Por isso, apenas um de seus seis filhos originais sobrevive: Campion (Winta McGrath).
Logo depois descobrimos que os remanescentes da seita religiosa dos mitraicos encontram o caminho para o mesmo planeta a bordo de uma nave espacial, ou “Arca”, chamada “Céu” .
A equipe de reconhecimento tenta abduzir Campion e matar a Mãe. É quando descobrimos que Mãe tem habilidades especiais: ela é na verdade um androide reprogramado como arma chamado “O Necromante”, que uma vez massacrou ateus na Terra. Agora seus gritos sônicos mortais - que podem desintegrar humanos em segundos – vira uma arma mortal contra os mitraicos, fazendo a Arca cair no planeta. Seus novos instintos maternais a levam a trazer os filhos sobreviventes dos mitraicos para formar um novo rebanho de filhos, ao lado de Campion.
Para complicar ainda mais as coisas, entre os sobreviventes Mitraicos estão secretamente um soldado ateu, Marcus (que finge ser Caleb, interpretado por Travis Fimmel) e sua parceira, Sue (fingindo ser Mary, interpretada por Niamh Algar), que se infiltraram na seita para escapar de uma Terra condenada. Eles estão determinados a resgatar seu filho (tecnicamente adotado) Paul (Felix Jamieson) dos androides Mãe e Pai, contra as ordens do líder mitraico, Ambrose (Awissi Lakou). Os vários conflitos aumentam inevitavelmente, e o próprio planeta tem seus próprios segredos misteriosos e perigos ocultos, com o destino da raça humana em jogo.
As digitais de Ridley Scott – Alerta de Spoilers à frente
As coisas começam a ficar sombrias e com uma atmosfera Alien (as digitais mais claras de Ridley Scott na série) quando começamos a conhecer a história de quem reprogramou os androides - um ex-cientista mitraico que se tornou ateu chamado Campion Sturges (Cosmo Jarvis), que então se apaixonou por ela, assim como Pigmalião na mitologia grega - o escultor que se apaixonou pela própria imagem que esculpira.
Do sombrio passamos ao bizarro quando Mãe acaba fazendo sexo com uma versão de Sturges numa Realidade Virtual em um console encontrado nos escombros da nave mitraica e acaba inexplicavelmente grávida. Ela diz posteriormente ao Pai que "baixou" as informações necessárias para construir uma nova forma de vida. Que tipo de forma de vida ela está gestando tão rapidamente? Havia algumas possibilidades intrigantes: algo meio humano, meio androide, talvez?
E então, chega a hora do parto, e mamãe literalmente vomita uma cobra assustadora com ventosas que, além de tudo, é voadora, sem nenhum meio óbvio de gerar sustentação.
Este é um grande golpe para a mãe, que percebe que ela não baixou as instruções de Sturges, mas foi infectada por algum esperma alienígena enquanto estava aplicando na simulação VR. Ou alguma coisa que não está totalmente clara, projetando as consequências dessa conclusão bizarra para a segunda temporada. Ela e Pai tentam destruir a criatura - que anseia por sangue humano e ameaça seus filhos à medida que cresce - em uma missão suicida, mas de alguma forma a criatura frustra esse plano e foge para uma selva no planeta.
O confronto entre Ciência versus Religião ou Ateísmo versus Fé é o fio condutor da primeira parte da temporada de Raised By Wolves. Certamente, um reflexo da tensão política que a Era Trump trouxe aos EUA com a ascensão do fundamentalismo religioso e o negacionismo – cuja série The Handmaid’s Tale também reflete.
“Quando simplesmente temos apenas sorte e não sabemos explicar, então inventamos um deus”, diz a certa altura Sue, a ateísta infiltrada no meio dos mitraicos. Sabemos que Ridley Scott (e quem sabe o criador da série também) é um ateísta confesso, cujo niilismo é explícito em toda a sua filmografia sci-fi. Talvez até sejamos criações de algum “Deus”. Mas Ele não passaria de um demiurgo enlouquecido, cujo propósito é o extermínio da sua própria criação.
O final bizarro e abrupto da primeira temporada talvez até aponte para uma continuação nesse sentido: Sturges comunica para Mãe sua “verdadeira missão” que sucederia após ela fertilizar e criar as crianças humanas. Da forma como termina a temporada, essa verdadeira missão assume um caráter sombrio, assim como em Prometheus e Alien: Covenant.
Também os aplicantes de Blade Runner ecoam na série. Assim como no clássico de 1982, aos poucos Mãe e Pai vão desenvolvendo sentimentos mais humanos do que os próprios humanos. Como Inteligências Artificiais que funcionam como machine learning, as relações parentais com seus “filhos” tornam-se cada vez mais carinhosas pungentes, envolvendo até renúncia e sacrifício. Como em Blade Runner onde os replicantes passam a desejar a vida mais do que os seus próprios criadores, da mesma forma no meio da loucura dos conflitos mortais entre ateístas e mitraicos desponta o amor de Mãe pela sua prole.
Será que a série está propondo que a única esperança que resta para a humanidade seria a “pureza” dos androides e sua IA? Uma nova “religião das máquinas”?
Talvez, na mitologia de Ridley Scott isso seria otimista demais. Os acontecimentos que fecham a temporada talvez apontem para o demiurgo sombrio por trás da “verdadeira missão” que levaram os androides Pai e Mãe para Kepler-22b.
Ficha Técnica |
Título: Raised By Wolves |
Criador: Aaron Guzikowski |
Roteiro: Aaron Guzikowski |
Elenco: Amanda Collin, Abubakar Salim, Winta McGrath, Niamh Algar, Travis Fimmel |
Produção: Film Afrika Studios, Scott Free Productions |
Distribuição: HBO Max |
Ano: 2020 |
País: França |