Se no início do cinema os primeiros gêneros de sucesso que alavancaram a nascente indústria cinematográfica foram pornografia e filmes sobre a Paixão de Cristo, na era do vídeo VHS dos anos 1980 foram os filmes slasher, horror gore, nazi exploitation e terror hardcore – os chamados “vídeos nasty” ou “vídeos nojentos”. Na Grã-Bretanha de Margaret Thatcher passaram a ser responsabilizados pelo aumento da criminalidade e ameaça à saúde mental. “Censor” (2021) acompanha Enid, uma censora da British Board of Censors que é responsabilizada pela opinião pública por um crime com requintes de canibalismo, supostamente inspirado por um filme slasher que ela liberou apenas com cortes. Será que os filmes teriam esse poder hipodérmico de influência? Ou seriam apenas “gatilhos cognitivos”? “Efeitos Copycat” de imitação que poderiam ser manipulados politicamente como bombas semióticas.
Quem não se lembra daquelas locadoras de vídeo esquecidas em um canto da rua com prateleiras, sempre próximas da porta que dava para uma sala de filmes pornográficos, com vídeos sobre canibais, demônios, bruxas, assassinos sangrentos e zumbis nazistas? Era um fenômeno cultural que cresceu com a popularização dos vídeos VHS nos anos 1980: os chamados “vídeos nasty” ou “vídeos nojentos”.
Nazi exploitation, slashes movies, gore movies eram subgêneros que levavam o terror ao paroxismo sangrento cheio de violência sexual, representações gráficas de assassinato e litros de xarope de glicose de milho Karo – Cannibal Holocaust, Death Trap, Blood Bath, The Boogey Man, The Faces of Dead, Carnival of Terror eram alguns dos títulos que embalaram os pesadelos de muitos adolescentes, torturados pelo impulso sexual culpado característico da idade.
Assim como no primeiro cinema, os filmes pornográficos (paradoxalmente, ao lado dos filmes sobre a Paixão de Cristo) impulsionaram a indústria cinematográfica, na era vídeo esses filmes de má reputação também impulsionaram essa nascente indústria da época.
Mas no Reino Unido dos anos 1980, de Margaret Thatcher, o “video nasty” alcançou outra dimensão: passaram a ser responsabilizados pelo crescimento das taxas de criminalidade e a degeneração mental das crianças. De repente, distribuidoras recém-fundadas que passaram a ter acesso a filmes que jamais chegaram à telas britânicas (e, portanto, sem certificados da British Board of Censors), passaram a ser vistas como ameaças à saúde mental da nação.
Tabloides sensacionalistas britânicos exigiam providências contra esses invasores do entretenimento doméstico. E elas vieram, com a formação de uma comissão de censura impiedosa.
Aqui entra o filme britânico Censor (2021), filme de estreia do cineasta Prano Baily-Bond, que retrocede até meados daquela década para narrar a estória de uma censora tímida e introvertida chamada Enid (Niamh Algar). Todos os dias ela assiste aos mais asquerosos filmes de terror gore, slasher e hardcore e cuidadosamente faz a minutagem, avalia e decide se o filme pode ser liberado com cortes ou simplesmente banido do mercado.
Para todos os colegas do escritório, ela é boa no que faz porque nada parece abalá-la. Até que ocorre um crime com grande repercussão midiática com detalhes de canibalismo. E o crime supostamente teria sido inspirado em um filme liberado por ela, que passa a ser culpada pela opinião pública.
Censor é um filme que tematiza um clichê clássico sobre os meios de comunicação de massa: a teoria da influência hipodérmica das mídias – teoria comportamental de que os espectadores, e principalmente crianças e jovens, seriam vulneráveis a estímulos externos do meio ambiente, mas, principalmente, dos meios de comunicação. Como uma agulha hipodérmica, as mídias injetariam rapidamente mensagens cujos efeitos sociais seriam rápidos.
Toda a propaganda política, institutos de opinião e as comissões de censura se basearam nesse modelo simplista behaviorista de causa-efeito formulado na década de 1930 por acadêmicos dos EUA como Harold Laswell (1902-1978). Que repercute até hoje no senso comum de uma suposta relação imediata entre games ou filmes violentos com comportamentos criminógenos.
Porém, esse senso comum behaviorista da influência e persuasão facilmente se presta ao álibi da censura e controle político de conteúdos.
O drama de Enid que acompanhamos em Censor, contrapõe a esse modelo uma outra realidade que o pesquisador Loren Coleman chama de “efeito copycat” no seu livro “The Copycat Effect - How the Media and Popular Culture Trigger the Mayhem in Tomorrow’s Headlines”: um efeito não mais comportamental, mas situado no campo cognitivo da imitação. Certos conteúdos serviriam de gatilhos cognitivos que funcionariam como álibis ou pretextos para a tentativa de resolução de problemas internos ou psíquicos pessoais.
Portanto, certos produtos midiáticos funcionariam como perfeitas bombas semióticas, cuja raiz dos efeitos não está no conteúdo em si do produto de comunicação. Mas em como problemas sociais repercutem no psiquismo que vê em certos conteúdos de comunicação gatilhos cognitivos (álibis) para a resolução de dramas pessoais.
O Filme
Estamos na Grã-Bretanha de 1985 no auge dos conflitos políticos e sociais desencadeados pelas medidas neoliberais da Primeira-Ministra Margaret Thatcher. Ao mesmo tempo em que a opinião pública espera o desfecho da greve dos mineiros a imprensa sensacionalista entra em pânicos com a proliferação dos “vídeos nasty” nas locadoras VHS.
Enid é uma mulher tímida e deprimida que, com muito profissionalismo estoico, trabalha como censora da British Boards of Films Censor.
Ela tem a tarefa desagradável de assistir a filmes horríveis, com infinitas cenas de estupro, ao lado de seu insuportável colega Sanderson (Nicholas Burns). Enid reclama com sua colega Anne (Clare Perkins) o machismo de seus colegas de trabalho que parecem se divertir bastante com as cenas de violência masculina contra as mulheres.
O chefe dela, Fraser (Vincent Franklin), é um burocrata enfadonho que tem uma relação amigável duvidosa com o assustador produtor de filmes de terror chamado Doug (Michael Smiley), que aparece para almoçar com Fraser e faz comentários sexistas odiosos para Enid.
Enid acaba se envolvendo involuntariamente na polêmica de um crime envolvendo canibalismo, cuja motivação teria sido um filme de 1974 chamado Deranged, liberado por ela com alguns cortes.
Mas Enid tem ainda um segredo terrível: ela é assombrada por um trauma infantil de perda (o desaparecimento da sua irmã chamada Nina, do qual sente-se culpada), agora um “caso arquivado” do qual a polícia há muito desistiu. Ao assistir a um estranho filme chamado Don't Go into the Church, de um misterioso diretor exploitation chamado Frederick North (Adrian Schiller), ela percebe assustada que as cenas da floresta são como os horríveis flashbacks de sua própria infância que continuam voltando para sua mente. Será que esse Frederick North saberia algo sobre o caso dela - ele tem a resposta para o mistério que seus pais e a polícia não conseguiram resolver? Ele é, de fato, o culpado?
Enid torna-se obcecada pelo filme, pelo diretor e pela atriz protagonista chamada Alice Lee – ela começa a achá-la muito parecida com Nina, criando uma suspeita de que Frederick North a raptou e a mantém prisioneira em uma indústria de abusos e sevícias.
A ironia do filme é que o fascínio mórbido de Enid pelo diretor a fará entrar em uma versão slasher de um filme na própria vida real. Essa é a parte do charme de Censor: ninguém chega a lugar nenhum as revolver esses filmes violentos, chegando ao paroxismo da própria protagonista fazer uma metalinguagem, na realidade, dos “vídeos nasty” que assistia diariamente.
Efeito Copycat
Essa diluição das fronteiras entre ficção e realidade traz à discussão do “efeito copycat”, um conceito bem diferente da abordagem “hipodérmica” dos meios de comunicação.
Loren Coleman é um pesquisador com uma curiosa formação multidisciplinar: sociologia, psicologia, além de transitar pelos campos da parapsicologia, parapolítica e, de quebra, é um notório criptozoologista. A partir do livro “The Copycat Effect” onde estuda os comportamentos suicidas e homicidas a partir do contágio pelo sensacionalismo noticioso das mídias, Coleman não se limitou ao clássico diagnóstico sobre o poder hipordérmico dos meios de comunicação manipular e influenciar como uma estratégia de lavagem cerebral.
Personagens, palavras ou narrativas podem adquirir força ao transformarem-se em verdadeiros arquétipos que, quando repercutidos pelas mídias, adquirem poder de contágio rápido como memes.
Para Coleman, esses “memes” ou arquétipos que passam a povoar esse contínuo atmosférico midiático atrai todo um subconjunto de pessoas vulneráveis, homicidas e suicidas em um nível inconsciente. Esses doentes psíquicos estariam entre o mundo racional da causa e efeito e o mundo crepuscular dos sinais e dos símbolos. A diferença é que são atormentados por essa realidade sincromística que, então, pode infectar a população em geral.
Censor apresenta bem o pano de fundo do conservadorismo e das tensões sócio-trabalhistas da Era Thatcher. Esse contexto conservador transformam os “vídeos nasty” no álibi (ou bode expiatório) para as tensões sociais e individuais. No caso de Enid, Don't Go into the Church vira o gatilho cognitivo para direcionar seu sentimento de culpa em relação ao desaparecimento de Nina.
Essa é a grande virtude do filme Censor: há uma diferença muito grande entre discutir os efeitos “hipodérmicos” e “copycat” sobre conteúdos dos meios de comunicação – enquanto o primeiro facilmente pode se transformar em justificativa para o controle e censura, ao contrário, discutir o efeito copycat das mídias coloca em perspectiva como o imaginário social, combinado com a narrativa ficcional, pode ser o gatilho para a imitação: Enid viu no filme a reencenação do próprio trauma e transformou a própria vida num roteiro slasher.
Para um produto de comunicação transformar-se numa bomba semiótica direcionada para um objetivo político (p. ex., guerra híbrida) será apenas um passo.
Ficha Técnica |
Título: Censor |
Diretor: Prano Bailey-Bond |
Roteiro: Prano Bailey-Bond |
Elenco: Niamh Algar, Michaek Smiley, Nicholas Burns, Vincent Franklin, Adrian Schiller |
Produção: Silver Salt Films, BFI Film Fund |
Distribuição: Magnolia Pictures |
Ano: 2021 |
País: Reino Unido |