domingo, junho 14, 2020

Filme "1BR": quando a Ciência vira um pesadelo religioso totalitário


Se aprendemos alguma coisa com a História é que duas ideias não costumam terminar bem: primeiro, a ideia de um Deus demiúrgico, sempre presente por trás de religiões que estimularam cismas, guerras, genocídios e conquistas; e a outra, a propaganda dos valores da comunidade e da família que sempre desagua no totalitarismo. O thriller “1BR” (2019) transforma um condomínio de apartamentos em Los Angeles no microcosmo dessa trágica recorrência histórica: uma jovem solitária vai morar num condomínio de apartamentos que é uma comunidade incrivelmente perfeita – multicultural, inclusiva e acolhedora Mas aos poucos descobrirá que essa pequena utopia é de fato uma prisão – um brutal sistema de condicionamento que busca a conformidade absoluta. Outra seita de malucos ao estilo Charles Mason? Ou um sofisticado experimento de psicologia comportamental na qual Deus baixa à Terra sob a forma de Ciência? Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.


Deus é uma ideia nefasta. Pelo menos aquela ideia demiúrgica de deus partilhada pelas religiões monoteístas que, historicamente, sempre se envolveram em cismas, lideraram guerras, justificaram genocídios e conquistas de outros povos e culturas – sempre considerados “pagãos”, “infiéis” ou “selvagens” por eventualmente não terem aceitado Ele. 

Seria a ideia de Deus mal compreendida ou apenas apropriada como álibi para interesses escusos políticos de governos ou igrejas corruptas? Ou então a ideia demiúrgica de Deus (Criador, Julgador, Punidor, ao mesmo tempo que é Amor, perdoa e tem compaixão) está intrinsecamente ligada como dominação e violência?

O Deus demiúrgico é intrinsecamente totalitário: Ele é a Verdade porque foi o artífice da Criação... mas quem criou Deus? Ele não possui uma Teogonia (ao contrário dos deuses “pagãos”), Deus sempre existiu. Por isso, é a Verdade única.

 A Ciência surge prometendo jogar as luzes do racionalismo sobre essas obscuras discussões teológicas que sempre acabaram mal na História. A Ciência prometia a Paz e o Progresso. Mas em pouco tempo também flertaria com o mito demiúrgico: Deus baixaria à Terra agora sob a forma de Razão.

Em pouco tempo o totalitarismo tecnocientífico entraria em cena. Por exemplo, toda a tradição da psicologia comportamental (de Watson e Thorndike a Pavlov e Skinner) criou as ferramentas necessárias para as técnicas de manipulação comportamental a partir da ideia do condicionamento animal – que hoje se materializa nas operações psicológicas de engenharia social e a tecnologia panótica de vigilância.

Mas assim como a religiosa ideia de Deus, a Ciência vai incorrer na mesma contradição teogônica: se o homem é o resultado de condicionamentos do meio ambiente social, quem condicionou Pavlov e Skinner? Quem condicionou a elite tecnocientífica que pretende condicionar o comportamento social, em nome da verdade descoberta pela Razão?

Essas reflexões sobre como a Ciência pode dar continuidade ao totalitarismo e obscurantismo religiosos (paradoxalmente através da Razão) são provocadas pelo filme indie 1BR (2019), longa-metragem de estreia do diretor David Marmor. 


Um thriller em cujo centro está uma jovem carente e insegura que chega em Los Angeles depois de abandonar um pai super protetor e hipócrita. Uma jovem estudante de arquitetura sozinha e assustada, vinda de uma família que se partiu em pedaços, numa grande metrópole, claro que vai alimentar a utopia de encontrar uma comunidade unida, inclusiva, na qual todos preocupam-se com o próximo.

Para sua surpresa, eis que em meio a uma grande cidade anônima encontra essa comunidade idealizada em um condomínio, cujo síndico a aceita como nova moradora. 

Mas aos poucos ela descobrirá como essa pequena utopia é de fato uma prisão – como um processo comunitário de acolhimento e inclusão pode se tornar em um brutal sistema de condicionamento que busca a conformidade absoluta. 

Será que são membros de algum culto ou sociedade secreta cruel? Claro que essa será a primeira coisa que virá a cabeça do espectador ao ver as imagens ensolaradas de uma Los Angeles habitada por aspirantes a uma carreira em Hollywood ou atrizes aposentadas. Virá à memória, por exemplo, o culto sangrento de Charles Mason, cujos bastidores foram narrados em Era Uma Vez em Hollywood, de Quantin Tarantino.

Porém, 1BR vai muito além desses clichês sobre Hollywood e satanismo: como no interior de uma metrópole anônima de solitários pode crescer uma utopia comunitária que facilmente se converte num bizarro mix de religião, fascismo e tecnociência. Quando Ciência e Razão se convertem em mais uma forma de totalitarismo religioso. 


O Filme

As primeiras cenas de 1BR são uma montagem em câmera lenta, sem diálogos, como fosse alguma campanha publicitária brega, de cenas de uma comunidade idílica, inclusiva e multicultural – uma garotinha branca correndo atrás de uma bola, uma mulher grávida mantém uma conversa com um acolhedor homem mais velho, um casal do mesmo sexo lava juntos suas roupas, enquanto uma mulher negra rega suas plantas.

Essa será a pequena comunidade que vive em um aconchegante condomínio de apartamentos com piscina e churrasqueira, que receberá Sarah (Nicole Brydon Bloom) de braços abertos. 

Ela chegou há pouco tempo em Los Angeles, trabalha como uma estagiária mal remunerada em um escritório sonhando com uma carreira em arquitetura. Candidata-se a alugar um apartamento naquele conjunto e é entrevista pelo síndico com ares paternos Jerry (Taylor Nichols). Duas perguntas básicas para Sarah: se ela tem contatos em LA ou animais de estimação. Perguntas que farão todo sentido após a primeira meia hora do filme.

Os vizinhos são amáveis e afetuosos: a atriz aposentada Miss Stanhope (Susan Davis), um homem chamado Lester que recomenda a Sarah ler um livro chamado “O Poder da Comunidade” escrito por um Ph.D. em Psicologia, e um jovem chamado Brian que logo acena com um interesse amoroso. 

Tudo parece ser bom demais para ser verdade. Principalmente para alguém solitário que fugiu de um pai autoritário e só tem como companhia Giles, um gato doméstico. Sarah está carente e estilhaçada: distanciou-se de um pai a quem ela culpa pela morte recente da mãe por câncer. Tenta provar que poderá lidar com a sua independência e carreira universitária e profissional. Aquela pequena comunidade acolhedora é perfeita para resolver seus problemas de autoconfiança.



Mas Sarah descobrirá por que também ela é a candidata perfeita para ser aceita naquele condomínio de “luxos acessíveis” – logo descobrirão que ela esconde um animal doméstico da política estrita de proibição. Esse será o gatilho que fará tudo mudar drasticamente e a utopia transformar-se num pesadelo.

“É para o seu bem, é tudo Ciência” - Alerta de sopilers à frente

Esqueça a “Família” de Charles Mason, o grupo Synanon de Charles Dederich de Santa Mônica ou qualquer culto hippie-satanista da Costa Oeste dos EUA, desses que volta e meia aparecem nos noticiários. 

Sarah descobre que inadvertidamente entrou na fase crucial de uma experiência de condicionamento que tanto Lester queria lhe alertar ao recomendar o livro “O Poder da Comunidade” em um dos idílicos churrascos daquele condomínio.

 A narrativa muda abruptamente para encontrarmos Sarah prisioneira em um processo de tortura mental para quebra das resistências psicológicas – que começam com estranhos sons nas paredes do apartamento (encanamentos velhos?) que a tornam insone e mentalmente confusa.

Os vizinhos de Sarah vivem essencialmente em um panótico de autopoliciamento, uma metáfora central que é explicitada em uma cena posterior em que seus vizinhos se observam através de câmeras de circuito fechado. Existem também algumas câmeras montadas de maneira conspícua ao longo da rua do bairro. 



Assim como Brian, na cena inicial, que diz a Sarah para não se preocupar com as câmeras postadas acima das caixas de correio daquele complexo de apartamentos. Tudo em 1BR está superexposto, literalmente graças às configurações básicas da câmera do filme e à ênfase geral em close-ups naturalmente ou fortemente iluminados pela frente e com planos médios das paredes de estuque marrom.

Como sempre, aquela mistura de culto com experimento de psicologia comportamental é bem-intencionado: eles querem livrar o mundo da solidão, dos conflitos, da pobreza. Criar a comunidade perfeita regida por quatro princípios básicos: Generosidade, Transparência, Acolhimento e Segurança.

Partindo dos pressupostos behavioristas de Pavlov e Skinner, todos fomos mal condicionados pela sociedade. Tornamo-nos egoístas, mesquinhos e mentirosos. Sarah precisa ser “salva” desse mundo – e a maneira como tentou esconder seu gato de todos é a evidência da sua personalidade egoísta e mentirosa, mal condicionada pela sociedade.

Enquanto Sarah é submetida a torturas físicas e psicológicas para o “bom” condicionamento, ela ouve do líder Jerry: “é para o seu bem, é tudo Ciência”.

Já vimos esse filme antes, na História: nunca termina bem esse mix de resgate dos valores básicos da comunidade, do sangue, da terra etc. Por exemplo, isso deu no Nazismo, sob a égide da criação de uma suposta nova Ciência não-judaica.



É quando a Ciência se torna religião totalitária, regida por uma divindade demiúrgica: dessa vez uma elite científica – no filme, o idealizador do experimento comportamental-comunitário. Um psicólogo Ph.D. chamado Charles Ellerby – ele deu os quatro princípios para a comunidade se tornar autossustentável, mesmo depois da sua morte.

O elemento totalitário aqui é o paradoxo teogônico que invade a Ciência ao ser aplicada na sociedade: se todos somos resultantes dos mal condicionamentos da sociedade, quem condicionou positivamente Charles Elleby? Quem o libertou do egoísmo e da mentira, para virar o portador da Verdade científica? 

Quem criou o Deus criador?

Charles Elleby é Deus e o seu livro “O Poder da Comunidade” a Bíblia. São ex-machina, vieram de fora desse mundo de mal condicionamentos, trazendo a Verdade. Sempre existiram, são o “não-criado”, e nós a Criação – por isso, imperfeitos. Devemos ser corrigidos, agora pela Ciência.

A grande virtude de 1BR é mostrar essa “Dialética do Esclarecimento”, como definiam Adorno e Horkheimer – quando a Ciência se torna Mito e a Razão um pesadelo totalitário. 

É um filme oportuno, principalmente para o momento atual em que as sociedades estão sobressaltadas e inseguras com as consequências da pandemia COVID-19. 

Por exemplo, o filósofo esloveno Slavoj Zizek alerta para o “o sonho erótico totalitário” no rescaldo da pandemia: monitoramento, vigilância e controle de largas populações pelos mesmos princípios daquela comunidade skinneriana retratada pelo filme.

Em troca de segurança podemos entregar a nossa própria liberdade.



 

Ficha Técnica 

Título: 1BR

Diretor: David Marmor

Roteiro: David Marmor

Elenco: Nicole Brydon Bloom, Taylor Nichols, Celeste Sully, Susan Davis

Produção: Malevolent Films, Epicenter

Distribuição:  Dark Sky Films

Ano: 2019

País: EUA

 

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