sábado, maio 09, 2015
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Depois
do favelão e lixo nos quais o futuro se transformou em “Distrito 9” e “Elysium”,
dessa vez com o filme “Chappie” (2015) Neil Blomkamp visita a pedra filosofal do
gênero ficção científica: a Inteligência Artificial. O subtexto político dos
filmes anteriores continua (África do Sul, Globalização e apartheid), mas dessa
vez parece que Blomkamp cedeu ao “product placement” (inserção subliminar de
produtos e marcas) e à agenda que orienta as produções do gênero pelos grandes
estúdios: o tecnognosticismo - a ambição pós-humana de nos livrarmos da carne e
do orgânico através de uma suposta transcendência espiritual possibilitada pelo
escaneamento da consciência e a sua conversão em bytes. Ao contrário do filme
“AI” (2001), também uma alusão à fábula de Pinóquio (uma máquina que quer se
transformar em ser humano), aqui Chappie tenta emular sentimentos humanos, mas
dessa vez através de uma consciência que se assemelha à metáfora da “agulha hipodérmica”.
Se em “A.I.” a máquina queria acreditar naquilo que não podia ser visto ou sentido,
em Chappie a máquina não tem sonhos – ela quer apenas imitar - filme sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho.
Chappie,
do diretor Neil Blomkamp (Distrito 9
e Elysium), é um filme dentro de um
subgênero do sci fi que os pesquisadores chamam de “ficção científica do Sul”:
filmes em estilo realista monckmentary
(feitos em estilo documentário mas em tom paródico) com atores e empresas de
países considerados periféricos e com temas ligados às mazelas da globalização
sócio econômica – privatização, imigrantes ilegais, favelização, exclusão,
máfias internacionais etc.
O tom mais marcante desse subgênero é mostrar como
a alta tecnologia (robótica, nanotecnologia etc.) convive de forma conflitiva
com favelas, deterioração urbana, lixo, precarização do trabalho e sucateamento
do Estado. O que torna os filmes desse subgênero potencialmente críticos em
relação ao atual status quo da
Globalização.
Ao
contrário do que foi Distrito 9 (uma
crítica ácida dos temas como racismo, exclusão e apartheid), Chappie decepciona os admiradores desse
subgênero sci fi ao perceber que
Blomkamp parece ter cedido primeiro, e de forma descarada, ao product placement (inserção subliminar
de marcas e produtos na narrativa) e, numa discussão mais filosófica, ao
tecnognosticismo – a ambição pós-humana de nos livrarmos da carne e do orgânico
através de uma suposta transcendência espiritual possibilitada pelo
escaneamento da consciência e a sua conversão em bytes.
O
tecnognosticismo é a motivação mística por trás da atual agenda
tecnocientífica: o esforço multidisciplinar envolvendo a confluência das
neurociências, ciências cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e
Teoria da Informação. A procura de um modelo computacional que possibilite não
só compreender a dinâmica dos processos mentais, mas principalmente resolver o
enigma da consciência com finalidades de manipulação e controle - sobre esse conceito clique aqui.
O Filme
Trabalhando
com um roteiro escrito em conjunto com sua esposa Terri Tatchell, Neil Blomkamp
demonstra ter uma sensação real por distopias e cenas caóticas. Por isso ele
retorna para a sua Johanesburgo natal, África do Sul, para narrar uma história
passada em futuro próximo onde as forças policiais passam a depender de uma
empresa paramilitar que fabricas robôs armados (os “scouts”) que ajudarão a
impor a lei e a ordem numa cidade dominada pelo crime organizado por máfias que
combinam ritos tribais com alta tecnologia.
Após as
cenas introdutórias com imagens da CNN e telejornais locais que mostram os
choques policiais nas ruas e imagens aéreas de grandes áreas de favelas e
pobreza, entram em ação os robôs com seus revestimentos foscos cinzentos,
orelhas de coelho, cabeças giratórias e membros articulados – cujo layout lembra
muito os “camarões” aliens de Distrito 9.
Aos poucos
surgem os protagonistas: o jovem Deon (Dev Patel), o engenheiro responsável
pelo projeto dos scouts, e seus
únicos colegas – a sua chefe Michelle (Sigourney Weaver) e um suspeitíssimo
ex-soldado que virou engenheiro chamado Vincent (Hugh Jackman). Vincent
desenvolve um projeto alternativo de robô militar e ao mesmo tempo desfila constantemente
pelo escritório rangendo agressivamente os dentes com uma arma na cintura. Ele inveja
o sucesso dos scouts e estuda uma
forma de sabotá-los para que o seu monstruoso robô seja o substituto.
Embora o projeto
dos scouts seja bem sucedido e o
preferido pela empresa Tetravaal (o nome é uma alusão ao curta de 2004 do
diretor que deu origem ao argumento do filme), Deon quer algo mais: criar um
robô consciente que sinta, de forma real, emoções humanas. Dada a eficácia dos robôs
originais, Michelle acha o projeto uma perda de tempo – que empresa paramilitar
gostaria de ver robôs pensando por sua própria conta em situações de conflito?
A cena em
que Dave resolve o problema fundamental da Cibernética, a Inteligência
Artificial, é um dos mais explícitos exemplos do chamado product placement (inserção de marcas e produtos em um filme) dos
últimos tempos: chegando em casa à noite, senta-se em frente à tela do
computador e pede a um pequeno robô doméstico que pegue o energético Red Bull
na geladeira. Após um gole do produto, Dave por fim chega à linha de códigos
que resolve o problema da IA e salva em uma pen drive o arquivo “consciousceness.dat”.
É como se o filme confirmasse aquele anúncio: “Red Bull te dá asas...”.
Dave
rouba um robô defeituoso da linha de montagem da Transvaal. Mas, na fuga Dave e
o robô caem nas mãos de um trio de ladrões, Ninja, Yolandi (na vida real membros
do grupo musical raper-punk Die Antwoord, interpretando eles próprios) e
Amerika (Jose Pablo Castillo), que desejam usar o robô para um assalto a banco
para se livrarem de uma dívida com uma grande organização mafiosa.
Nessas
condições adversas, Dave espeta a pen drive com a consciência virtual no robô.
Assim nasce Chappie com um comportamento que, a princípio, assemelha-se a um
bebê assustado.
Mas
Vincent suspeita de que algo de estranho ocorre com Dave e o desaparecimento do
robô. Vincent pressente uma oportunidade de encontrar um ponto fraco para rackear
o projeto dos scouts e destruí-lo
para que o seu projeto seja o próximo escolhido pela Transvaal.
Consciência e a agulha hipodérmica
Para a
crítica especializada, o grande problema com o roteiro do filme diz respeito ao
amadurecimento de Chappie, retratado de modo atropelado: num momento inicial a
máquina só diz papai e mamãe; no outro já começa a demonstrar senso comparativo
e filosófico.
Mas,
olhando com mais cuidado as cenas do aprendizado de Chappie onde o seu
amadurecimento parece evoluir de acordo com a mudança do tom de cada cena
(maternal, violento, irônico, infantil etc.), talvez o problema não esteja no
roteiro mas no conceito de consciência com o qual trabalha Neil Blomkamp – uma
consciência, por assim dizer, “hipodérmica”.
A metáfora
da agulha hipodérmica vem da chamada Teoria Hipodérmica do teórico da
comunicação Harold Laswell (1902-1978) onde, baseado a psicologia
comportamental, acreditava que a mídia funcionasse como uma agulha que injetava
estímulos em receptores passivos cujos comportamentos seriam imediatamente moldados.
Essa teoria baseia-se na tese da psicologia comportamental de que a consciência
humana nada mais é do que uma massa moldável a partir de estímulos externos.
Uma massa disforme (ou um “golem”) que apenas ganha vida e significado a partir
de estímulos repetitivos ou códigos.
A cena
chave do filme é quando Chappie está diante de um aparelho de TV e vê a
animação do He-Man. O robô tenta imitar os gestos e falas do personagem, assim
como mais tarde tentará imitar os trejeitos do trio de bandidos e andar como um
gangsta ou rapper.
O
amadurecimento de Chappie dá-se por sobressaltos não por um problema de
roteiro, mas pela filosofia hipodérmica (e por extensão cibernética) de
consciência – Chappie é a resultante de cada meio em que está: absorve
estímulos e se molda mimeticamente a eles.
Blomkamp
nos ajuda a revelar a noção de consciência que está por trás do atual projeto
tecnognóstico da agenda científica – uma consciência descorporificada, reduzida
apenas a bites que se organizariam a partir de estímulos provenientes de fontes
externas. Não é à toa que Chappie finalmente toma consciência de si mesmo
quando se vê a em uma representação gráfica da própria mente em uma tela de
computador – não há mais Fase do Espelho no sentido lacaniano, porque em
Chappie não existe inconsciente ou corpo. O espelho foi substituído pela
interface gráfica.
Uma consciência sem sonhos
É nesse ponto que a noção de Inteligência
Artificial de Blomkamp é inconsistente por ser fruto dessa visão hipodérmica e
tecnognóstica da consciência. Como bem demonstrou o filme A.I. (2001), para que haja consciência é necessário a inconsciência
(o mundo dos sonhos e da fantasia): a Inteligência Artificial só existirá no
dia em que uma máquina acreditar naquilo que não pode ser visto ou medido –
acreditar no mundo de onde nascem os sonhos: o inconsciente.
Embora Chappie
e A.I. explorem a mesma fábula (assim
como Pinóquio, uma máquina que também quer se tornar um ser humano), no filme
de Blomkamp a consciência artificial é plana e unidimensional, sem a
reversibilidade simbólica necessária para que a consciência de algo possa
existir: para que haja realidade é necessária a fantasia; para que haja vida é
necessária a morte; para que haja o consciente é necessária a inconsciência, e
assim por diante.
Por isso Chappie não sonha: ele apenas crê naquilo
que vê. Jamais será como o robô David do filme AI que acreditava numa fada azul
que um dia o transformaria em um menino de verdade.
Chappie apenas se molda mimeticamente ao entorno e,
no final, quer apenas que o seu criador (o engenheiro Dave) torne-se tão
imortal quanto ele ao transferir sua consciência para outro robô. Por isso a
consciência de Chappie é hipodérmica e não psicanalítica: falta a ele o
inconsciente e os sonhos. Por que? Porque a consciência de Chappie se restringe
apenas aos bytes representados numa tela, e não numa imagem que una corpo e
consciência, como na fase lacaniana do espelho.
Chappie é a consciência cartesiana. Assim como o
filósofo francês René Descartes acreditava no século XVII que a consciência
estaria localizada na glândula pineal no cérebro, Chappie crê que sua identidade
está em uma representação gráfica numa tela.
Chappie é tão “realista” e pragmático quanto o product placement do Red Bull e da dupla
rapper-punk Die Antwoord no filme – é apenas uma linha de comando no arquivo
“consciousceness.dat” em uma pen drive.
Ficha
Técnica
Título: Chappie
Diretor:
Niel Blomkamp
Roteiro:
Niel Blomkamp, Terri Tatchell
Elenco: Dev Patel,
Hugh Jackman, Sigourney Weaver, Sharlto Copley (voz de Chappie)
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"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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