O brinquedo Roma Tático Blindado (réplica perfeita dos “caveirões” do BOPE no Rio de Janeiro) escandaliza educadores e psicólogos que o acusam de induzir as crianças à violência. Mas se Walter Benjamin estiver correto, a imitação é a grande característica do jogo infantil: reproduzir o mundo adulto no espaço lúdico para subvertê-lo. O problema não só do “caveirão”, mas de todos os brinquedos industrializados, é que esse impulso espontâneo é desviado do jogo para o brinquedo-réplica. O problema não está na violência, mas para onde o impulso pela imitação da violência é conduzido.
Início de ano, começo de ano letivo para os meus filhos. Hora dos pais irem às compras com as listas de material escolar nas mãos numa peregrinação em busca dos melhores preços. No meio de uma busca entre as gôndolas de imensas papelarias em um largo em Pinheiros, São Paulo, dou de cara com um brinquedo, para mim, inusitado: um carro blindado todo negro, com riqueza de detalhes, uma réplica quase perfeita do famoso “Caveirão” – veículo usado pelo BOPE (Batalhão de Operações Especiais) no Rio de Janeiro para combater os traficantes nos morros. Só não é uma miniatura perfeita porque os fabricantes modificaram o nome para ROTB (Roma Tático Blindado).
O veículo está acompanhado de dois soldados fardados (boinas e coletes à prova de bala) e duas armas de brinquedo.
Segundo as notícias, esse brinquedo foi um sucesso de vendas no Rio de Janeiro, esgotando o estoque previsto para durar até o final do ano passado. Os “caveirões” sumiram das prateleiras já no Dias das Crianças.
É claro que os fabricantes aproveitaram o sucesso de bilheteria do filme “Tropa de Elite 2”: “Mas o que é isso? Um carro da polícia igualzinho ao do filme Tropa de Elite? Vou levar uns cinco”, como afirmou entusiasmada uma comerciante em uma distribuidora de brinquedos de Sorocaba.
Como não poderia deixar de ser, psicólogos e educadores se ergueram moralmente escandalizados com um velho discurso pronto: brinquedos com armas ou temas agressivos induzem a criança à violência. Velha crítica de fundo behaviorista que parece desprezar a inteligência ou espontaneidade da criança em nome de um modelo comportamental que a vê como um ser amorfo, sempre passivamente induzido e condicionado.
Sabemos que uma das características da espontaneidade infantil é a imitação, como lembra o fundamental ensaísta e crítico literário alemão Walter Benjamin (1892-1940). As crianças incorporam e traduzem o realismo do mundo adulto para o universo dos jogos, onde tudo é livremente subvertido.
Essa crítica behaviorista moralmente conservadora dos educadores e psicólogos esquece que o problema do brinquedo não está no seu conteúdo temático (violência), mas na sua forma (o de ser réplica perfeita da realidade). O cruel, o grotesco e o selvagem fazem parte da natureza e do imaginário infantil, na medida em que imitam o mundo circundante trazendo-o para a dimensão do lúdico e do jogo.
“Se as crianças devem transformar-se em homens completos, então não podemos esconder delas nada que seja humano. (...) O fato que os pequeninos riem de tudo, mesmo dos reversos da vida, é consequência de uma esplendida expansão de uma alegria que irradia sobre tudo, até sobre as zonas mais sombrias e tristes. Pequenos atentados terroristas maravilhosamente executados, com príncipes que se despedaçam, mas que voltam a se recompor; incêndios que irrompem automaticamente em grandes lojas, invasões e assaltos. Bonecas-vítimas que podem ser assassinadas de diversas formas e seus correspondentes assassinos (...)” (BENJAMIN, Walter. “Velhos Brinquedos” IN: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984, p. 65).
Como aponta Walter Benjamin, o problema está em deslocar essa capacidade mimética infantil do jogo para o brinquedo. No texto “História Cultural do Brinquedo” de 1928, Benjamin acompanha o processo de industrialização dos brinquedos infantis. De pequenos objetos de madeira sem muita verossimilhança com a realidade, com o processo de industrialização do setor no século XIX os brinquedos vão ganhando dimensões maiores e realismo. Parece que os adultos compreendem esse impulso por imitação infantil, mas acertam no alvo errado. A capacidade mimética não está no brinquedo, mas no jogo.
“Ninguém é mais sóbrio em relação aos materiais [dos brinquedos] do que as crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúne sua solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras” (BENJAMIN, Walter. “História Cultural do Brinquedo”, IN: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984, p.69)
Assis Cavalcante/Agência BOM DIA |
No jogo, a criança imita todas as mazelas do mundo adulto circundante para, no interior desse espaço de dramatização lúdica, desafiar e subverter a ordem. Transferir essa capacidade para brinquedos que se tornam réplicas perfeitas da realidade significa congelar a imaginação infantil.
Com o sucesso do filme “Tropa de Elite” é comum ver crianças em rodas de brincadeiras repetindo os bordões do filme (“pede prá sair!”, por exemplo). Mas é flagrante que nessas dramatizações as crianças imitam para, nas regras errantes dos jogos, o sentido original adulto dos bordões ser subvertido e até ridicularizado. As reproduções da realidade em escala menor em que se tornam os brinquedos industrializados tentam suspender essa espontaneidade infantil: o jogo é suspenso diante dos brinquedos-réplica, embotando a espontaneidade, o grande tesouro infantil. O brinquedo caro e carregado de grande valor agregado graças à Publicidade atrai toda a atenção dos pequenos. Já contem dentro de si verdadeiros scripts de brincadeiras já estabelecidos, bastando apenas executá-los numa repetição sem jogo ou criatividade.
Jogo, Espontaneidade e o Mal
Capitão Nascimento: fórmulas prontas que prometem resolver as desgraças da vida |
Através da linha de raciocínio proposta por Walter Benjamin sobre o jogo e o brinquedo, o problema do “caveirão” não está na sua indução à violência (esta já está presente no universo infantil que imita a realidade adulta), mas no seu caráter de réplica perfeita que suspende a dimensão do jogo e da espontaneidade que subvertem a realidade violenta.
Em postagens anteriores (veja links abaixo) exploramos essa natureza gnóstica do Mal presente no universo dos jogos infantis. Se a imitação (o chamado “impulso mimético”) é o primeiro princípio do jogo, podemos acrescentar que o Mal é o princípio estruturante. Como forma de conhecimento do mundo pela criança, o jogo é reminiscência. Isto é, é uma forma de a criança relembrar de uma coisa que o adulto vai esquecer: de que o princípio do Mal define a realidade.
Não estamos aqui tomando o Mal no sentido moral, mas ontológico: a realidade é imperfeita, aprisionante, cruel, imprevisível e sem sentido. Como vimos na citação acima de Walter Benjamin, “as crianças riem de tudo, mesmo dos reversos da vida”. No jogo, as crianças experimentam o prazer de se perder em labirintos, ficarem tontas em gira-giras de playgrounds, vendarem seus olhos em cabra-cegas, cometerem “pequenos atentados terroristas”, destruírem coisas para reconstituírem depois os pedaços (e como os velhos desenhos animados do Pica-Pau e Tom & Jerry refletem essa dimensão perversa infantil!). Tudo isso porque as crianças imitam uma natureza que, mais tarde, quando adultos, vão esquecer: de que o Mal é o princípio da realidade.
Dos brinquedos-réplicas da infância (que vão procurar reprimir essa percepção infantil do Mal) aos discursos consoladores da vida adulta (religião, autoajuda etc.) todos acompanham o princípio ideológico geral da racionalização do Mal, a ilusão de que no final há fórmulas prontas para as desgraças da vida (do capitão Nascimento que nos salvará até as receitas de felicidade e auto-estima dos livros de autoajuda).
Em suma, o problema do “caveirão” de brinquedo não está em “induzir à violência”, mas, pelo contrário, em dar esperanças de que esse problema será resolvido pelos heróis-soldados que acompanham o brinquedo-réplica. Paradoxalmente, o “caveirão” quer esconder a violência por trás da solução final fácil: tiros e a morte dos vilões. Deixemos as crianças imitarem a violência adulta nos seus jogos e não através de brinquedos realistas: talvez ali ela seja ridicularizada e subvertida porque, no jogo e não no brinquedo, a criança deixa de levar a realidade tão a sério.
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