A vitória de Donald Trump pegou de surpresa a
mídia internacional. Mas para jornalistas, comentaristas e colunistas da Globo
foi devastador. Colocou em xeque o tautismo (autismo + tautologia) da emissora
– a maneira pela qual a Globo interpreta a realidade que está além dos seus muros a
partir da descrição que ela faz de si mesma. O triunfo de Trump parece que
desmentiu o que a emissora entende como o seu destino manifesto: cobrir como a
História cria fatos exclusivamente para a Globo transmitir. Mas o que acontece
quando a História contraria as apostas da emissora? Tenta encaixar aquilo que é
dissonante no seu roteiro, projetando nos outros países as mazelas
brasileiras que a própria Globo ajuda a criar. Torce para que o roteiro
pré-fabricado pela emissora também dê certo nos outros países. Um roteiro dividido em
três atos: o “clima de incertezas”; o “caos”; e a “virada de mesa”. Com direito
a um ato adicional: a vidente que disse que Trump “será o fim”.
A TV Globo é tautista. Isso quer dizer, entre
outras coisas (metalinguagem, auto-referência etc.), que a Globo interpreta a
realidade exterior de acordo com a descrição que a emissora faz de si mesma –
sobre o conceito de “tautismo” clique aqui. E como a Globo descreve a
si mesma? Com uma espécie de destino manifesto no qual os fatos Históricos
acontecem apenas para que a emissora possa transmiti-los.
Era a secreta convicção do falecido
proprietário do Grupo Globo, Roberto Marinho. O que lembrava a resposta dada
por Napoleão ao seu general que insistia em alertar sobre as circunstâncias
desfavoráveis para uma campanha determinada: “Bah! Eu faço as circunstâncias”.
Marinho sempre teve o timing correto para apostar no cavalo certo e criar as próprias
circunstâncias mediante a chantagem midiática. Isso acabou contaminando os seus
jornalistas, comentaristas e colunistas que sempre (excetuando-se a saia justa
do desembarque tardio da ditadura militar e do governo Collor) viveram
situações confortáveis de apenas justificar ou racionalizar aquilo que o seu
patrão já havia anteriormente decidido e jogado no xadrez da política.
Assim como, com o cast de atores, artistas e jornalistas que a Globo possui, facilita
o trabalho da produção de arrumar todo dia convidados para os programas
matinais de entretenimento.
Mas o que acontece quando os fatos históricos
teimam em contrariar uma aposta feita anteriormente? É nesses momentos que os
atos falhos tautistas afloram ao vivo e em cores.
Roberto Marinho sempre apostou no cavalo certo? |
Rostos perplexos e lívidos
Como ocorre nesse momento com o episódio da
vitória “inesperada” do empresário midiático Donald Trump nas eleições
presidenciais dos EUA.
Os rostos “passados” e perplexos dos
correspondentes da Globo News nos EUA foram merecedores, no mínimo, de uma
curiosidade antropológica - principalmente a lívida Carolina Cimenti (aquela que
nas convenções do Partido Democrata mais parecia uma turista na Disneylândia
sem conseguir fazer uma consideração mais objetiva sobre o evento), ao saber os
resultados das eleições norte-americanas.
As primeiras reações foram acachapantes,
entre pânico e preocupação, mostrando o modus
operandi de uma emissora acostumada à criação napoleônica das próprias
circunstâncias: “mercados pegos de surpresa” (sim! Sempre o mercado, esta
entidade senciente com humores imprevisíveis) e “dólar sobe em consequência da
vitória de Trump”.
Após retomarem o fôlego e se recomporem, a
Globo pôs em ação um roteiro bem conhecido entre nós aqui no Brasil: primeiro
ato: o “clima de incertezas”; segundo ato: caos! As ruas são tomadas por ondas
de protestos que começam pacíficos e depois viram quebradeira; terceiro ato:
denúncias de interferências externas e especulações em torno de possível virada
de mesa através de alguma brecha, sempre “constitucional”.
Previsível reação tautista: embora a
realidade externa ao sistema seja mutante, qualquer dissonância será sempre
encaixada dentro de um modelo padrão de input,
que, afinal, torna o sistema coeso e fechado em si mesmo.
Porém, essa vitória parece ter sido tão
acintosa à auto imagem que a Globo criou atos adicionais para criar mais
impacto, chegando às raias da paranormalidade e esoterismo, como veremos
adiante.
Fátima Bernardes: "É um pesadelo... o mundo está com dois pés atrás" |
Pauta da geopolítica antiterror
O jornalismo internacional da Globo sempre
foi fiel às pautas das agências internacionais. Mas, principalmente após os
atentados do 11/09, alinhou-se cegamente à geopolítica antiterror imposta pelo
governos norte-americanos, reproduzindo acriticamente as versões oficiais e
torcendo pela captura e morte dos terroristas islâmicos feios, sujos e
malvados. Algo parecido quando Hilary Clinton e Obama assistiram ansiosos,
através de um telão numa sala de guerra, as imagens do estouro de um
esconderijo de terroristas no Paquistão e a suposta morte de Osama Bin Laden em
um quarto escuro e imundo, em 2011.
Por exemplo, poucos dias após os atentados de
2001 nos EUA, a Globo já fazia matérias “investigativas” sobre células
terroristas na Tríplice Fronteira – Brasil, Argentina e Paraguai. Supostamente,
as mesmas que mais tarde ameaçariam a vida de todos nas Olimpíadas Rio/2016,
segundo o ministro da Justiça Alexandre de Moraes. Prontamente repercutido pelo
jornalismo Global.
Mas o tautismo faz da Globo mais realista do
que o próprio rei, no caso atual da vitória de Donald Trump. Vamos detalhar o
roteiro tautista que a emissora quer projetar para o mundo. Afinal, se esse
roteiro foi tão bem sucedido na política brasileira, pode se tornar um ótimo
filtro para traduzir qualquer realidade que a desafie.
(a) Primeiro ato: clima de incertezas
A política norte americana é previsível,
binária. Criou um sistema eleitoral complexo, indireto, sólido e
incompreensível para nós brasileiros – e principalmente para o tautismo da
Globo. Um sistema de alternância entre Republicanos e Democratas (em média, a
cada dois mandatos de um, entra o outro), apesar da existências de outros
partidos que concorrem às eleições como o Partido Verde, o Partido Libertário,
Partido da Constituição, entre inúmeros.
Como o Cinegnose
vem apontando desde o ano passado, o momento atual é de desvalorização dos
político e da política e o crescimento de candidatos supostamente apolíticos e
midiatizados, com o discurso da gestão e meritocracia. As bravatas de Trump na
campanha eleitoral foram marqueteiras e previsíveis, assim como seus muxoxos na
TV no reality O Aprendiz.
Levaram
tão à sério da ideia da construção de um muro entre EUA e México que
provavelmente devem esperar até hoje a realização das profecias de Nostradamus.
Não sabem brincar...
Mas para os atônitos comentaristas e
correspondentes internacionais da Globo, Trump é “um aventureiro”, o
“retrocesso”, responsável pelas “incertezas” que deixam “apreensivos” essa
entidade etérea chamada mercado.
Se o dólar subia e a Bolsa de Valores caia em
tempos recentes, era porque a economia brasileira era inconsistente e criava
insegurança para, de novo, o mercado.
Agora, sobe e cai pelas incertezas criadas
por um “retrocesso” externo. Outros comentaristas repetem como papagaios
afirmações fora de contexto de líderes europeus de que Trump é o “novo Brexit”,
fazendo temer o futuro até da União Europeia.
E o encontro de Nigel Farage, líder do Brexit
no Reino Unido, com Trump só assanhou ainda mais os arautos do caos do
jornalismo global.
E para completar, uma perplexa Fátima Bernardes abandonou o otimismo matinal e sentenciou em seu programa: "o mundo está com os dois pés atrás...".
À esquerda: protestos anti-Trump segundo o Portal G1; à direita foto da Agência O Globo de 7/10/2014 |
(b) Segundo ato: o caos
Nos dias que sucederam o anúncio da
vitória de Trump, os telejornais globais, principalmente Globo News, começaram
a repercutir e repetir insistentemente imagens de protestos isolados: “Vitória
de Trump gera protestos nos Estados Unidos”, era a manchete repetida na TV e
Internet, com a indefectível foto de um manifestante em contra luz com um carro
tombado e incendiando ao fundo.
E com previsível narrativa: era uma vez uma
manifestação que começou pacífica, mas baderneiros surgiram e começaram a jogar
pedras, quebrar vitrinas e incendiar...
Já vimos esse tipo de retórica jornalística
na cobertura da grande mídia nos protestos nas ruas brasileiras em 2013 e 2014.
Centenas pareciam virar milhares. Protestos isolados em campi universitários
(Califórnia e Oregon) viravam protestos nacionais. E logo na Califórnia, Estado
que foi capaz de eleger o ator republicano Arnold Schwarzenegger...
(c) Terceiro Ato: Virada de Mesa
O caos nas ruas e a insegurança econômica
poderiam fazer mudar de ideia delegados republicanos que formam o Colégio
Eleitoral que formalizará a vitória de Trump?
Matérias “investigativas” do Globo
News desde a semana passada começaram a especular o possibilidade de “delegados
dissidentes” mudarem de ideia e o Colégio Eleitoral não fazer a ratificação
definitiva da vitória de Trump.
Desmentida ontem por uma jovem correspondente
nos EUA que anunciou, em tom de monótono desapontamento, o anúncio da ratificação da vitória de Trump pelos delegados. Para depois ressaltar conformada que nunca na história
do país um colégio eleitoral deixou de ratificar a vitória de um candidato.
De repente, o modelo de Democracia e Justiça
para o mundo (como sempre defenderam os comentaristas da Globo, principalmente
depois dos sucessivos reveses dos candidatos à presidência apoiados pela
emissora) transformou-se em “obsoleto” e “anti-democrático” pela “distorção”
entre o voto popular e o voto do Colégio Eleitoral.
E, claro, entram na cena os russos. Sempre
eles. O presidente da Rússia Vladimir Putin, em pessoa, teria comandado a ação
de hackers para roubar e-mails do Partido Democrata para usá-los contra a
candidata Hillary Clinton. Quem acusa é a CIA e o FBI. E o chamado “Pizzagate” (suposto
envolvimento de Hillary com uma rede de pedofilia cujo centro seria uma
pizzaria em Washington) que, claro, teriam as digitais russas.
O verdadeiro muro (esse sim, verdadeiro) que
a Globo criou em torno de si através do tautismo é tão alto e espesso que seus
jornalistas tentam a ver em outros países as mesmas fragilidades das
instituições democráticas brasileiras. Torcem para que o roteiro pré-fabricado
pela emissora dê certo nos outros países.
(d) Ato adicional – Trump é o “fim”, diz vidente!
E agora para o povão. Afinal, não apenas
assinantes de um canal pago devem entender que aquele que ganhou e a Globo não
gosta, não pode levar!
O jornal popular carioca Extra, do Grupo Globo, deu notícia em 11/11 sobre uma vidente
búlgara chamada Baba Vanga, morta em 1996 e que teria previsto os atentados de
2001 e o tsunami de 2004. A “Nostradamus dos Balcãs” teria também previsto que
o quadragésimo quarto presidente dos EUA não só seria afro-americano como
também seria o último antes do “fim”: o próximo presidente fatalmente levaria o
país para conflitos “entre Norte e Sul” até o “fim” – clique aqui.
E o pior é que essas coisas começam a
incendiar a imaginação da Internet.
Agora falam que outro vidente (um tal de “T Chase”
no seu canal no YouTube) teria previsto uma invasão alienígena para 2017 que
começaria a Terceira Guerra Mundial. Culpa de quem? Claro, Vladimir Putin e os
russos que aproveitaram o ensejo para criar uma guerra! – clique aqui.
Em síntese: o jornalismo da Globo não
consegue falar sobre nenhuma realidade internacional, a não ser projetar nos
outros países as mazelas brasileiras que a própria Globo ajuda a criar.
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