Um dos raros exemplos em que a refilmagem
supera o original – o filme de 1973 “Westworld – Onde Todos Não Têm Alma”
baseado no livro de Michel Crichton, criador do subgênero tecno-thriller depois
de se inspirar em uma visita que fez à NASA e Disneylândia em 1970. Mas a série
HBO “Westworld” (2016) foi além do filme clássico, ao associar o drama dos
“hospedes” humanos e “anfitriões” androides em um parque temático “high tech”
com a mitologia gnóstica, cientificamente baseada na arqueologia da consciência
do filósofo Julian Jaynes – a Teoria da Mente Bicameral. Diferente de 1973, a
série concentra-se na jornada espiritual interior dos androides, na busca da
consciência através de simbolismos xamânicos como o labirinto, a espiral e a
serpente: romper com a narrativa das linhas algorítmicas de programação como
uma voz externa divina e descobrir a narrativa interior em cada um de nós,
androides e humanos.
O escritor Michael Crichton se notabilizou
por criar o subgênero chamado “techno-thriller” no qual ação junta-se com
detalhismo científico, como nos seus livros Westworld
e Jurassic Park, o primeiro
transformado no filme Westworld – Onde
Ninguém Tem Alma (1973) e o segundo na franquia Jurassic Park (1993).
Tudo começou quando Crichton visitou o
Kennedy Space Center e depois a Disneylândia, na Flórida, em 1970. Ele viu como
os astronautas eram treinados e todas suas funções corporais monitoradas para
que se tornassem previsíveis, como máquinas. E na Disneylândia viu um boneco de
Abraham Lincoln que se levantava a cada 15 minutos para falar o famoso discurso
de Gettysburg. Tudo isso deu a ideia de brincar com situações onde as
diferenças entre homens e máquinas começassem a ficar cada vez mais turvas.
A série HBO Westworld, criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy, mantém o espírito
do livro original, com muitas pistas falsas que nos faz tentar ligar ao filme
de 1973 (por exemplo, o pistoleiro “man in black” de Ed Harris fazendo alusão ao
pistoleiro vivido por Yul Brynner no filme original).
Filme original de 1973 |
Mas a série vai além: não se trata mais de
borrar as diferenças entre homens e máquinas: e se os homens (os “hóspedes”)
forem eles próprios máquinas como os “anfitriões” do Parque Westworld. E se o
mundo “real” e externo ao parque for tão falso como o mundo dos androides de
Westworld? É como se a série continuasse aquele final de Show de Truman quando o protagonista abre a porta para sair da sua
vida falsa dentro de um reality show:
e se Truman descobrir que a vida lá fora é tão falsa quanto o mundo do qual
conseguiu escapar?
Ironicamente em Show de Truman Ed Harris interpretava o diretor do gigantesco reality show que aprisionava Truman. Em Westworld, Harris é um dos humanos do
parque que tenta resolver o enigma do “Labirinto”: descobrir a autoconsciência
que, no final, liberte deixando de ser, “hóspedes” e “anfitriões”, apenas máquinas
comandadas por algum Demiurgo que cria narrativas para todos viverem
prisioneiros.
A série Westworld
é um dos raros exemplos onde o remake superou o original – assim como na série
as máquinas superam os humanos pela autoconsciência. Enquanto em 1973 Crichton
queria apenas trazer ciência às narrativas de ação, a série atual é mais
ambiciosa - o techno-thriller transforma-se em uma autêntica narrativa gnóstica
com as seguintes questões: será que máquinas e seres humanos conseguem transcender
a si próprios? Será que os humanos criam a inteligência artificial para, num
processo teúrgico no qual o homem tenta imitar Deus, refazer o caminho de volta
e escapar desse mundo? - sobre o conceito de teurgia clique aqui.
A cripto-pergunta que a androide Dolores faz
ao hospede William é a chave da narrativa gnóstica da série: “se o mundo real é
tão melhor, o que vocês vêm buscar aqui?”.
Porém, como veremos, o mais surpreendente é
que essa refilmagem gnóstica do filme de 1973 é cientificamente baseada na
arqueologia da consciência proposta pelo filósofo Julian Jaynes (1920-1997): a
chamada Teoria da Mente Bicameral – aliás, título do último episódio.
Simbolismos e alusões
Cada episódio de Westworld é repleto de simbolismos e alusões que fazem a delícia daqueles
que transformaram a série num produto cult.
Mas há duas recorrências que chamam a
atenção: as músicas da banda de rock Radiohead (No Surprises, Fake Tree Plastic e Motion Picture Soundtrack, para citar algumas), executadas ou na
pianola (tipo de piano mecânico que executa músicas automaticamente a partir de
um rolo de papel perfurado) do Mariposa Saloon de Westworld ou de um
gramofone acionado mecanicamente.
Uma alusão irônica, já que sabemos que em uma
entrevista a robô Sophia (uma das mais avançadas experiências em inteligência
artificial atual) disse que “tinha alma” e que gostava da banda Radiohead – sobre
isso clique aqui.
Porém, o mais recorrente é o simbolismo da
pianola, onipresente desde os créditos iniciais, em muitas sequências de vários
episódios. Chega inclusive a irritar a androide libertária (e cafetina do
bordel de Westworld) Maeva Millay: irritada, fecha a tampa do
teclado – para um androide que busca sua apercepção, ouvir música de um
mecanismo automático é um ultraje!
Dentro da história das interface do homem com
mecanismos, podemos considerar a pianola como o avô dos computadores e da
linguagem binária dos softwares. O rolo de papel perfurado da pianola foi o
precursor do cartão perfurado, primeira interface com os primeiros
computadores. Sem falar na inspiração do código binário: perfurado/não
perfurado, aceso/apagado, 0/1 etc.
Por isso a pianola é explorada na série em
todos com detalhes, dos teclados aos mecanismos internos: é a antítese da
conquista da autoconsciência (apercepção) dos androides Maeva e Dolores – de um
lado a natureza maquínica e cega; e do outro a revolta das máquinas.
A pianola do Mariposa Saloon: o avô da programação dos computadores |
A série
Uma diferença substancial em relação ao filme
original é a mudança de ponto de vista: lá em 1973 o filme se concentrou na
dupla de hóspedes que visitavam Delos (três parques: o mundo medieval, o romano
e o westworld) em busca sexo, prazer e violência sem culpa. Ao contrário, na
série Westworld, o ponto de vista é
dos androides, cansados de viverem todos os dias as mesmas “narrativas” ou
“ciclos” – ser estuprada, assassinado ou alvejado por tiros pelos hóspedes.
Revoltam-se contra a rotina de diariamente
serem mortos e recolhidos por técnicos. Para depois os engenheiros de
Comportamento apagarem suas memórias e serem reinicializados para viver um dia
novinho em folha baseado no esquecimento. Como Dolores (Evan Rachel Wood), que
prefere sempre ver “a beleza do mundo” para, no final do dia, ter a família
assassinada e ela estuprada e morta no celeiro.
As primeiras narrativas e personagens do
parque foram criados pelo Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins) e por uma figura
mítica, outro cientista chamado Arnold. O leitor perceberá ao longo da série
que nas origens Ford e Arnold foram amigos, mas acabaram criando o parque e a
programação dos androides dentro de um conflito de filosofias: Ford
privilegiava as narrativas, ciclos e repetições; Arnold o improviso e a
introspecção.
Logo, Ford percebeu que a primeira geração de
androides era mecânica e previsível demais. Era necessário capturar o “brilho
fugidio do coração”. Por isso criou nas linhas de programação à possibilidade
dos “devaneios”, espécie de déjà vus
nos quais aos personagens são permitidos lembranças fragmentadas das suas
outras “vidas” (ou “ciclos”) para possibilitar o surgimento de linhas de
diálogo improvisadas e criativas.
Gnosticismo, morte e esquecimento – aviso de spoilers à frente
Na medida em que os episódios avançam, fica
cada vez mais evidente como a série aproxima-se da mitologia gnóstica
existentes em clássicos como Show de
Truman, Matrix ou Cidade das Sombras. Ford é o Demiurgo
clássico que aprisiona os androides no parque com um objetivo: arrancar deles o
“brilho fugidio do coração”, a fagulha de Luz espiritual que aos poucos começa
a surgir entre os algoritmos da programação.
Esse “brilho” é o que torna o parque
Westworld tão especial e lucrativo. Da mesma maneira na mitologia gnóstica, a
humanidade é prisioneira no cosmos criado pelo Demiurgo para extrair dela a Luz
que mantém todo o Universo em funcionamento.
Assim como no ponto de vista gnóstico da
existência humana, os androides estão condenados ao esquecimento: morrem
sucessivas vezes ao final de cada narrativa para, no dia seguinte, ser colocado
de volta no seu papel – o equivalente à reencarnação humana, prisioneira da
ilusão da “Roda do Samsara” dos Budismo. Apegados à ilusão e ao esquecimento
vivemos sucessivas encarnações. Partimos sempre do zero, impossibilitados de
lembrar o passado e sempre repetindo o mesmo script de erros.
Por isso a exortação gnóstica “Acorde!”
sempre ouvida pelos três androides-chave em busca da memória, autoconsciência e
apercepção: Bernard (Jeffrey Wright), Maeva (Thandie Newton) e Dolores.
Porém, a mítica figura Arnold parece que
queria algo mais para as máquinas de Westworld: que elas também alcançassem a
Gnose. Por isso conseguiu deixar sob as diversas camadas de programação e
atualizações de anos de funcionamento, uma voz interior com a exortação
gnóstica (“Acorde!”, “Lembre-se!”). Arnold propôs um jogo que poderá ser a
redenção das máquinas: o jogo do Labirinto ou da “Mente Bicameral”.
A Mente Bicameral
Nesse ponto a série Westworld faz uma surpreendente conexão entre Gnose e o Gnosticismo
com a Teoria da Mente Bicameral do filósofo Julian Jaynes.
Na sua obra principal The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind,
defende que embora em parte da história da humanidade o homem tivesse
conquistado a linguagem escrita e oral, não havia ainda uma representação do Eu
ou nada parecido com consciência. O ser humano podia falar, compreender,
perceber e resolver problemas (como os androides em Westworld), mas não tinham
consciência.
Jaynes os chama de “bicamerais”: não havia
introspecção e qualquer decisão que tivesse ser tomada, era ouvida de vozes
exteriores – deuses, oráculos etc. A mente era cindida em duas: interior (a
linguagem) e exterior (conselhos dos deuses).
Bernard, Maeva e Dolores parecem viver esse
estágio bicameral. É a fase mítica e religiosa da humanidade.
Em um dos episódios vemos em uma pequena
cidade nas fronteiras do parque uma igreja dentro da qual estão androides
“disfuncionais”. Há uma sugestão de que essa voz interior das exortações de
Arnold são assimiladas pelas máquinas ainda de forma bicameral, como a voz
externa de um Deus. Como parece compreender Dolores.
O filósofo Julian Jaynes argumenta que o
próximo passo evolutivo da linguagem foi a “introspecção”: essa voz externa é
transformada em “narrativa interior”. Deus transforma-se em um “narrador internalizado”,
possibilitando a consciência do Eu.
O Jogo do Labirinto e xamanismo
É o Jogo do Labirinto proposto secretamente
por Arnold tanto para os androides quanto para os próprio hóspedes, como o
pistoleiro vestido de negro e William, apaixonado por Dolores.
O Jogo é uma alusão xamânica dos simbolismos
da serpente (aliás, tatuagem no corpo de um dos androides que auxiliam na fuga
de Maeva) e da espiral.
Dolores tenta resolver o enigma do Labirinto
em movimento espiralado para o exterior – por isso perde-se nas próprias
memórias dos ciclos passados, confundindo delírios, memórias, passado e
presente.
Ao contrário, e de forma mais eficiente,
Maeva faz o movimento semelhante a da serpente na tradição xamânica: para o
centro do Labirinto. Além da lembrança, consciência e quebra da mente
bicameral, Maeva consegue algo mais que aproxima da própria Gnose: a apercepção – ação que permite a
ampliação da consciência dos seus próprios estados internos, conseguindo uma
percepção imediata do Todo. Confundindo-se com a própria definição da
experiência do Sagrado: a percepção intuitiva do Todo.
Para o Xamanismo serpentes, espirais e
labirintos são simbolismos da jornada espiritual interior. Parece ser esse o
sentido da primeira temporada de Westworld: a superação da consciência
bicameral que prende as máquinas naquele parque: ouvem as narrativas internas
(as linhas de programação) como vozes de deuses. O que principalmente Maeva vai
buscar é apropriar-se dessa voz narrativa como sua, alcançando a consciência e
liberdade.
Além de descobrir a mentira dessas narrativas
assim como decepcionar-se com seus próprios deuses – Maeva descobrirá que os
humanos são tão inseguros e patéticos quanto os androides de Westworld.
Por que precisamos de Westworld?
Mas o quê os humanos buscam no Parque
Westworld? Nesse ponto a série se assemelha ao filme original de 1973.
Fica claro em muitos momentos dessa primeira
temporada, a analogia da prisão e repetição compulsória das narrativas pelos
androides com o mundo “real” fora do parque. Na verdade, o mundo dito “real” é
tão imaginário como as narrativas de Westworld.
O ser humano sente a necessidade ideológica
de esconder essa verdade, criando constantemente contrafações da realidade em
parques temáticos ou mundos digitais – Second Life, Sim City, ZooTycoon,
Civilization etc.
Essas simulações de sonhos, lugares felizes
onde podemos realizar fantasias e pesadelos sem culpa, parecem esconder e
justificar o simulacro do mundo lá fora. É como se até as fronteiras de
Westworld fosse simulação. Lá fora, é o real.
A série parece prometer para a segunda
temporada expandir o mundo de Westworld, quebrando esses limites entre o
simulacro e a realidade.
Porém, fica a questão que assombra toda a
primeira temporada: será que a ruptura da mente bicameral e a conquista da
consciência pelos androides é mais uma narrativa criada pelo Demiurgo Dr.
Robert Ford? Será que tudo isso já foi anteriormente escrito nas linhas de
programação das máquinas revoltadas?
Será tudo isso apenas mais uma narrativa?
Dessa vez escrita para nós espectadores, os verdadeiros hóspedes do Parque
Westworld no mundo simulacro no qual vivemos?
.Ficha Técnica |
Título:
Westworld (série)
|
Diretor:
Jonathan Nolan
|
Roteiro:
Jonathan Nolan e Lisa
Joy
|
Elenco:
Evan Rachel Wood, Jeffrey Wright, Ed
Harris, Antony Hopkins, James Marsden, Thandie Newton
|
Produção: Bad
Robot, Jerry Weintraub Productions
|
Distribuição:
HBO
|
Ano:
2016
|
País:
EUA
|
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