Nos dias recentes uma foto por câmera de
telefone celular viralizou na Internet e redes sociais: no salão da Câmara dos
Deputados alegres convivas entre comes e bebes, aparentemente indiferentes ao
que estava acontecendo para além da ampla vidraça: do outro lado do espelho d’água a
violenta repressão aos manifestantes contrários à PEC 55, em meio à fumaça das
bombas de gás. Sua autora, proprietária de uma empresa de comunicação
acostumada ao meio corporativo e relações com autoridades, não tinha a menor
intenção de fazer uma foto de denúncia. Mas, involuntariamente, atingiu aquilo que o fotógrafo Cartier-Bresson
chamava de “momento decisivo” e o semiólogo Roland Barthes de “punctum” - produtos visuais ou audiovisuais podem, dadas
certas condições, ganhar vida própria, tornarem-se autônomos e se desvencilhar
das pretensões informativas ou propagandísticas dos seus emissores. E no Cinema e na Pintura também há vários exemplos disso.
Até agora a jornalista Gisele Arthur está
tentando entender o efeito viral produzido nas redes sociais e Internet por uma
fotografia que fez em um evento na Câmara dos Deputados no exato momento em que
manifestantes contra a votação da PEC 55, do lado de fora do Congresso, eram
violentamente reprimidos com bombas de gás lacrimogêneo.
De um lado, elegeram a foto como o símbolo da
aprovação da PEC 55 e do retrocesso nas conquistas sociais dos últimos anos. E
do outro, uma foto que “não é bem o que parece” - na verdade as pessoas perceberam a
“quebradeira no jardim” e ficaram assustadas. Ou seja, não era exatamente uma
imagem sobre “descaso”, como sugere o
flagrante.
Gisele Arthur (proprietária de uma empresa de
comunicação e larga experiência em relações governamentais e assessoria
parlamentar na Câmara dos Deputados e serviços a ONGs e empresas privadas na
área de imprensa) se diz “vítima da Internet” com a viralização da fotografia –
recebeu inúmeras mensagens e ligações de pessoas elogiando a foto.
Gisele observou que fez a foto ao ir ao
cafezinho da Câmara. Ela desceu uma escada que dá no Salão Nobre da Casa e se
deparou com as pessoas no evento.
"Estavam entregando troféu, aí começou
aquele negócio do gás lacrimogêneo. Eu tinha ido para tirar uma foto da
manifestação. Aí, quando eu voltei, eu subi a escada e vi aquelas pessoas. Dei
dois cliques com o celular. A foto nem é boa", afirmou.
Como dá para se perceber, a jornalista não é
exatamente uma ativista “de esquerda” (atua em um meio “chapa branca” e
corporativo) e nem pretendia fazer uma denuncia sobre a atual crise política e
social brasileira.
A fotografia que atualmente circula o mundo
sugerindo que Brasília é a Versailles brasileira, é mais uma prova de como
produtos visuais e audiovisuais podem, dadas certas condições, ganharem vida
própria, tornarem-se autônomas ao se desvencilharem das pretensões informativas
ou propagandísticas dos seus emissores.
Um fenômeno parecido com o que ocorre com os
filmes religiosos no cinema: os melhores filmes sobre temas espiritualistas e
religiosos foram, paradoxalmente, feitos por diretores ateus. Nessas condições,
parece que a isenção ou neutralidade do diretor criaram a objetividade
necessária para libertar as narrativas visuais das armadilhas da propaganda e
apologia.
A força simbólica e a viralização da
fotografia de Gisele Arthur seria mais um exemplo desse paradoxo das imagens?
Seria justamente a condição “chapa branca” da jornalista responsável por criar
a objetividade necessária para capturar uma cena no “momento decisivo”? – como
se referia o famoso fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson.
A foto e a profundidade de campo
O primeiro elemento que se destaca na
composição da foto é a profundidade de campo. Em primeiro plano vemos homens de
terno, mulheres de vestido, bandejas vazias, taças na mão, alguns seguram salgadinhos.
Todos absortos pelo ambiente interno do salão. Alguns parecem ter a atenção
deslocada para o exterior e, com seus celulares, fotografam ou filmam o
conflito lá fora.
No segundo plano, os limites interpostos ao
primeiro: o vidro, os seguranças atentos e de braços cruzados e o espelho
d’água fazendo o papel de fosso como naqueles castos medievais.
E no terceiro plano, a polícia em ação,
conflito, confronto e a fumaça das bombas.
A profundidade de campo é aquilo que tira o
caráter unitário da imagem, exatamente por romper a bidimensionalidade da
imagem e do próprio suporte. Paradoxalmente, cria o realismo a partir da ilusão
tridimensional.
Roland Barthes (1915-1980) na sua obra
derradeira A Câmara Clara (Nova
Fronteira, 2000) diz-nos que a fotografia realiza todo o seu potencial de médium quando apresenta dois elementos estruturais.
Primeiro, quando desperta um interesse geral
determinado por aspectos culturais, políticos ou ideológicos do receptor.
Barthes denominava esse elemento como “studium”.
É o interesse geral no aspecto informativo da
fotografia, o caráter unitário: despertam interesse sem no entanto atingir
profundamente – são fotos aditivas ou acumulativas a um saber pré-existente no
receptor. “A foto tem tudo para ser banal, sendo a unidade a primeira regra da
retórica vulgar”, escrevia Barthes.
A foto e o “punctum”
Mas também a foto pode atingir profundamente
o espectador através do “punctum”, ser transpassado pelo acaso, por um
pormenor, um detalhe que muitas vezes a composição geral da cena registrada
pela fotografia pode favorecer. Com isso, rompe com a composição unitária pela
co-presença de elementos descontínuos.
Diferente do “choque” – uma foto pode ser
chocante e não perturbar, pode gritar e não ferir. Como a maioria de fotos
sobre guerras ou conflitos onde o conjunto formado (agentes repressivos,
manifestantes, luta, correria, fumaça, gritos etc.) são previsíveis.
A profundidade de campo cria a condição para
esses elementos descontínuos como Barthes exemplifica nessa foto da Nicarágua
onde no primeiro plano vemos soldados patrulhando as ruas enquanto no segundo
plano duas freiras passam.
Exemplos da força do “punctum” (aquilo que
faz a própria imagem transcender a si mesma) não faltam na pintura e no cinema.
Por exemplo, na pintura o artista plástico
Eric Fischl explorou bastante esse elemento em quadros como na sua obra-prima The Old Man’s Boat and Old Man’s Dog
(1982) – no primeiro plano vemos na
tela jovens nus refastelados no convés de uma embarcação em pleno alto mar.
Estão bebendo, deitados, relaxados como se estivessem em um calmo dia de sol,
enquanto no segundo e terceiro planos percebemos o mar agitado e o céu escuro
prenunciando uma tormenta. Todos parecem estar completamente alheios ao perigo
futuro.
A indiferença e apatia representadas pelos
corpos nus é o punctum – há
intensidade na aparente passividade.
Ou a profundidade de campo nos filmes Bastardos Inglórios (2009) de Quantin
Tarantino ou no western clássico de John Ford O Homem Que Matou o Facínora (1962) com John Wayne. Em Tarantino, a
sequência inicial onde de dentro de uma casa a câmera enquadra o nazista
“caçador de judeus” na soleira da porta observando a menina judia correndo em
um campo aberto – a descontinuidade entre a proteção do lar e o carrasco
nazista se interpondo entre o interior e o exterior aberto e iluminado onde
corre a pequena menina.
Ou a chegada de Tom (John Wayne) na casa de
Ranson, parado na soleira da porta: lá fora, em terceiro plano o terreno
desértico, inóspito e selvagem; e dentro, em primeiro plano, a civilização.
Filme "Bastardos Inglórios" - profundidade de campo |
“Punctum” e “momento decisivo”
Em meio a tantas fotos encenadas e posadas
(como as das grandes manifestações de rua em 2013-14 onde black blocs posavam com paus e pedras nas mãos para ansiosos
fotógrafos em busca do clique que lhes garantissem a notoriedade) que
atualmente dominam o Jornalismo, o involuntário “momento decisivo” de Gisele Arthur
cria impacto.
Cada lado do espectro político-ideológico
viu na fotografia o seu studium, a
mera confirmação das suas próprias convicções: a esquerda viu na foto bombas
explodindo na senzala enquanto na Casa Grande todos tomam champanhe. Para os
mais conservadores, uma foto que mostra perigosos baderneiros armados com
coquetéis molotov fazendo barricadas com banheiros químicos.
Porém, não importa a posição do espectador
dentro do espectro político-ideológico: todos foram transpassados pelo punctum. Tal como no quadro de Eric
Fischl, o contraste entre apatia e indiferença e um horizonte que revela o
perigoso porvir nos tira do conforto da informação meramente aditiva.
Será que todos na foto, na verdade, estavam assustados
e atentos ao que ocorria lá fora? Talvez um vídeo mostrasse isso. Mas as
imagens em movimento são ilusórias. Não passam de sucessões de frames. Sempre a
fotografia é mais verdadeira por revelar o “momento decisivo”, o espaço
existente entre a sucessão dos frames. O punctum.
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