Um menino chamado Nicolas vive em uma pequena
comunidade à beira do mar onde só existem mulheres adultas, todas estranhamente
inexpressivas, que cuidam de seus filhos, todos masculinos e da mesma faixa
etária. Ele desenha em seu caderno esboços de experiências que jamais poderia
ter vivido naquela comunidade. Junto com essas memórias, cresce a suspeita de
que todas aquelas mães escondem um terrível segredo: a obsolescência
sacrificial dos jovens. É o filme “Évolution” (2015, co-produção França,
Bélgica, Espanha), uma produção europeia que reúne os cinco elementos básicos
de uma narrativa gnóstica: estranhamento, esquecimento, paranoia e conspiração
de um sistema que não ama aquelas crianças. Lembrando o famoso aviso na entrada do Inferno da "Divina Comédia" de Dante Alighieri: “Abandone toda a esperança aquele que por aqui entrar”.
Nesses sete anos de atividades do blog Cinema Secreto: Cinegnose, mapeamos até
aqui algo em torno de 70 filmes gnósticos – excetuando-se aqueles com “sabor”
gnóstico: filmes que exploram elementos alquímicos, cabalísticos ou esotéricos
e herméticos, mas que ainda não se configuram como uma narrativa gnóstica
completa.
Uma narrativa gnóstica necessariamente deve
abordar os temas da conspiração, amnésia, paranoia e a ambivalência entre
realidade e ficção. Sempre temos a ideia geral de um protagonista que vive em
uma realidade aparentemente familiar mas que progressivamente começa a inspirar
estranhamento e desconfiança.
Até a realidade ser desconstruída e
apresentar-se como uma ilusão ou um sistema metodicamente construído por alguém
que não o ama e que objetiva aprisiona-lo para roubar do protagonista alguma
propriedade especial ou qualidade.
Em nossa lista, 70% são produções norte-americanas.
As produções europeias em torno de gêneros próximos as narrativas gnósticas
(sci-fi, terror, thrillers ou dramas) sempre abordam o tema que denominamos
como “humano, demasiado humano”: narrativas que versam sobre as fragilidades
éticas, morais e existenciais do ser humano – seus dramas, erros e pecados.
Produções europeias como Évolution (2015, co-produção França, Bélgica e Espanha) são bem
vindas para o Cinegnose como um filme
gnóstico fora da curva do cinema daquele continente.
Lembra bastante o filme O Homem Que Incomoda (2006) – uma narrativa que pode se passar
tanto em um futuro distópico quanto em um presente situado num mundo
alternativo – sobre o filme clique aqui. Dos filmes distópicos e
opressivos dentro dos filmes gnósticos, Évolution é intrigante porque nunca
chega ao puro medo, transitando entre o pesadelo e o devaneio poético com
lindas imagens de uma ilha cercando por uma mar translúcido repleto de algas,
corais e estralas do mar multicoloridos.
Mais ainda intrigante é que toda a verdade a
respeito daquele lugar (habitado por mulheres estranhas e inexpressivas, uma
instalação hospitalar com enfermeiras sem sobrancelhas que entendem meninos
aparente filhos de mulheres numa ilha sem homens adultos) somente vem à tona
visualmente.
Isto é, todas as linhas de diálogo são
mentirosas. Somente através do olhar das crianças e do olhar do próprio
espectador para os belíssimos planos de câmera, é que se descobrirá uma
sinistra realidade por trás de um lugar tão paradisíaco.
O Filme
Évolution nos apresenta uma aldeia à beira-mar povoado
unicamente por meninos pré-adolescentes e suas mães, todas também na mesma
faixa etária, pálidas e com rostos inexpressivos que parecer ter sido dos
quadros do pintor holandês Vemeer – aliás, as referencias pictóricas são uma
constante no filme. Muitos planos de câmera do povoado nos faz lembrar do
surrealismo metafísico do pintor modernista Giorgio de Chirico, carregando os
locais com uma atmosfera espectral e irreal.
Há uma espécie de hospital, uma grande
instalação de concreto que domina a aldeia e para onde os meninos são enviados.
Supostamente há alguma doença e os meninos são regularmente enviados a essa
instalação para serem “curados”.
No meio da rotina no qual os meninos brincam
à beira do mar e retornam para suas casas onde suas mães estão à espera com uma
estranha refeição (um mingau escuro) acompanhado de um “remédio” dissolvido em
um copo, uma das crianças chamada Nicolas encontra o corpo de outra criança no
mar.
A partir daí começam a crescer a suspeita de
que todos os seus amigos são alimentados com mentiras e que todos as crianças
parecem estar sendo preparadas para algum destino não especificado e
misterioso.
A relação de estranhamento com aquele mundo
dominado por mães de uma beleza robótica cresce na medida em que Nicolas faz
desenhos em seu pequeno caderno – ele desenha objetos e situações, experiências
que Nicholas jamais poderia ter vivenciado naquela ilha: esboços de coisas como
carros, play grounds e uma mulher que talvez seja a sua verdadeira mãe.
Por que não há homens adultos naquele lugar?
Por que todas as crianças têm a mesma faixa etária? Por que só meninos?
Cresce a suspeita de haver algum tipo de
obsolescência sacrificial para esses jovens. Principalmente porque as
enfermeiras e médicas do hospital passam o tempo assistindo a vídeos sobre
partos por cesariana. Elas parecem querer aprender e desenvolver algum tipo de
técnica cirúrgica.
Évolution tem um grande apelo visual. Cercado por uma
exuberante natureza (algas verdes, estrelas do mar vermelhas, o azul
translúcido do oceano e o contraste das casas com o céu), é paradoxal que em
meio a tanta beleza cresça uma atmosfera macabra e antinatural.
Elementos gnósticos
O filme começa a desenrolar quatro elementos
básicos em um filme gnóstico: o estranhamento (Nicolas parece não pertencer
àquele lugar, e seus desenhos parecem demonstrar isso), a perda da memória
(Nicolas tenta resgatá-las por meio do caderno de esboços, tentar lembrar de
onde veio), ilusão (há uma construção deliberada da aparência de rotina e
maternidade) e paranoia - há algo de artificial e antinatural no meio daquelas
paisagens paradisíacas.
Por isso, na medida em que a narrativa se
desenrola, a fotografia, cores, contrastes e sombras vão tornando-se mais
sinistros, espectrais e fantasmagóricos. Todas aquelas solícitas mãe parecem
esconder não apenas um sinistro segredo – a ilha inteira parece ser um sistema
criado para aprisionar aquelas crianças na ilha.
O espectador vai descobrindo esse mundo de
Nicolas aos poucos, por incrementos sucessivos que vão montando um
quebra-cabeças nos preparando para uma terrível revelação próxima. São poucas
linhas de diálogos (quando ocorrem são apenas mentiras contadas pelas mães).
Tudo apenas será revelado visualmente, principalmente nas sequências finais
passadas no interior daquele misterioso hospital no qual todas as crianças são
finalmente internadas.
O pós-humano – alerta de spoilers à frente
Depois desses quatro elementos gnósticos
expostos em Évolution (estranhamento,
memória, ilusão e paranoia) a narrativa prepara o espectador para o quinto
elemento: o que o sistema quer daquelas crianças prisioneiras?
Em Show
de Truman, o gigantesco reality show queria do protagonista sua alegria e
espontaneidade “para inspirar milhões”; em Matrix
as máquinas queriam a energia vital humana para alimentar o sistema; em Vanilla Sky a empresa de criogenia
extraia as memórias do protagonista. E em Évolution,
toda a aldeia é um sistema de reprodução pós-humana baseado em clonagem no qual
os corpos dos meninos são a matéria-prima fundamental.
Os meninos deverão carregar os fetos por um
curto período, até serem extraídos em uma cirurgia, tornando as crianças
obsoletas e necessariamente sacrificadas.
Quem são aquelas mulheres? Alienígenas
anfíbios? Ou o próximo passo da evolução humana (como o título sugere) no
sentido do chamado pós-humano, no qual todos os processos naturais serão
subvertidos através da clonagem e manipulação genética?
Acredito
que essas leituras são periféricas ou superficiais. São apenas suportes para
uma questão arquetípica que se conecta ao simbolismo gnóstico: o drama da
adaptação do jovem a um mundo que, sabe, não lhe pertence. É o antigo ritual de
passagem presente em todas as culturas no qual o jovem é marcado com ferro e
fogo, lembrando o famoso aviso na entrada do Inferno na Divina Comédia de Dante
Alighieri: “Abandone toda a esperança aquele que por aqui entrar”.
Ao contrário, com seu caderno de esboços,
Nicolas quer resgatar as esperanças, relembrar algo que foi perdido e que
estranhamente esqueceu – talvez aquele nojento mingau escuro tenha essa
propriedade.
As distopias teens atuais como as franquias Divergente
ou Jogos Vorazes estão explorando
esses dramas de adaptação ao futuro mundo adulto na adolescência. Porém,
seguindo os moldes clichês hollywoodianos de performance e retorno à ordem.
Ao contrário, em Évolution há a busca da gnose interior: a recuperação da lembrança
daquilo que foi perdido.
Dessa forma o enfoque gnóstico de Évolution didaticamente contrasta com o
viés do “humano, demasiado humano”: o elemento humano não é a fonte dos erros e
pecados – ao contrário, é naquilo que nos torna humanos (a memória) que devemos
encontrar a redenção.
Ficha Técnica |
Título:
Évolution
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Diretor:
Lucile Hadzihalilovic
|
Roteiro:
Lucile Hadzihalilovic, Alante Kavalte
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Elenco:
Max Brebant, Roxane Duran, Julie-Marie
Parmentier, Mathieu Goldfeld
|
Produção: Les
Films du Worso, Noodles Production
|
Distribuição:
IFC Midnight
|
Ano:
2015
|
País:
França, Bélgica, Espanha
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