Se hoje discutimos o destino do cinema com a era da digitalização, o
filme “O Congresso Futurista” (The Congress, 2013) já está bem à frente: em uma
era pós-digitalização o cinema tal qual conhecemos deixaria de existir. A
indústria do entretenimento apenas forneceria estímulos químicos e eletrônicos
e o “espectador” criaria sua própria alucinação, transformando-se na
celebridade que quisesse. Em uma espécie de versão feminina do filme “Quero Ser
John Malkovich”, a atriz Robin Wright (“House of Cards”) interpreta corajosamente
sua própria carreira num híbrido de “live-action” e animação mostrando o
destino do ator num futuro onde as pessoas irão querer se exilarem numa espécie
de Caverna de Platão produzida por alucinações químicas e solipsistas.
Hollywood produz
sonhos e ilusões. Mas nem por isso deixa de viver as mazelas de uma indústria
qualquer, com os costumeiros conflitos entre capital e trabalho – no caso do
cinema, toda a estrutura que se arma em torno dos atores, a mão-de-obra do
negócio: agentes, rompimentos de contratos, drogas, depressão, fracassos,
amantes etc.
E se na indústria
convencional o capital precisa controlar o trabalho por meio da automação e
demissões, na indústria dos sonhos não é diferente: o desenvolvimento
tecnológico digital não objetiva outra coisa senão controlar o trabalho dos
atores até chegar ao ponto, num futuro bem próximo, em que o próprio ator será
um personagem digital (propriedade do estúdio), dispensando o ator real que
será despachado para o ostracismo.
Sem a sua “alma”
(comprada pelo estúdio) o ator real estará proibido de atuar contratualmente,
mesmo nos recônditos do planeta.
Esse é o ponto de
partida do filme O Congresso Futurista
(The Congress, 2013) dirigido pelo
israelense Ari Folman (Valsa com Bashir,
2008), combinando elementos de live-action com cinema de animação. Desse
pressuposto econômico sobre o Cinema, Folman passa para reflexões cada vez mais
exigentes para o espectador.
O Congresso Futurista vê o espectador do cinema como um
consumidor cada vez mais insaciável em um momento como o atual em que exige-se
cada vez mais imersão e interatividade. Esse será o início do fim do Cinema tal
qual conhecemos – em busca da experiência de imersão total, o cinema apenas
fornecerá estímulos químicos ou eletrônicos e cada uma das nossas mentes
produzirá a sua própria narrativa. Uma alucinação pessoal. Em outras palavras,
a realização final daquilo que a Filosofia chama de Solipsismo: a crença de que
o mundo externo é uma mera ilusão do próprio Eu.
O Filme
No filme a atriz
Robin Wright (House of Cards)
interpreta a si mesma, como fosse uma versão feminina do filme Quero Ser John
Malkovich de 1999. Aos 44 anos ela é uma atriz que teve um início promissor com A Princesa Prometida (1986) e Forrest Gump (1996), mas que agora está
no crepúsculo da carreira depois de muitos fracassos, escolhas erradas,
temperamento difícil e uma insegurança atroz. Quem lhe dá esse banho de
realidade é seu agente, Al (Harvey Keitel) que lhe convence a ouvir a proposta
que Jeff Green, o CEO da Miramount (Miramax + Paramount?), tem a lhe oferecer.
Jeff oferece a
Robin o seu último contrato: em troca de uma grande bolada de dinheiro, o
estúdio a escaneará até transformá-la em um arquivo digital aplicável a
qualquer produção cinematográfica. Todos ganhariam: a Miramount teria a eterna
juventude da atriz e se livraria de todos os problemas da Robin real, enquanto
a atriz teria uma milionária aposentadoria sob uma condição: jamais atuar na
sua vida seja no cinema, TV , teatro ou até em uma festinha de colégio
infantil.
Mas, e o
livre-arbítrio do ator? Afinal, o desenvolvimento do ator não seria justamente
o resultado de acertos e erros em uma vida? Sem muitas opções e precisando de
tempo e dinheiro para tratar de uma doença degenerativa do filho adolescente
Aaron (Kodi Smit-McPhee) Robin acaba aceitando.
Depois disso o
filme salta vinte anos. Robin está retornando para o prédio da Miramount para
participar de um estranho congresso onde discutirá uma possível renovação do
seu contrato. Após dela ingerir o líquido cor-de-rosa de uma ampola, o filme
transforma-se em animação 2D, onde os participantes assumem uma versão animada
de qualquer personagem pop que desejarem.
Agora a Miramount
chama-se Miramount Nagasaki (sutil ironia da realidade atual onde estúdios de
Hollywood passam a ser controlados por transnacionais como a Sony japonesa ou a
News Corporation australiana). Todos os participantes do congresso são os
próprios personagens criados pela Miramount, com a capacidade de se transformar
em diferentes celebridades pop.
Lá mais uma vez
descobrirá que o cinema deu mais um passo na sua evolução tecnológica: vivemos
agora a fase pós-digitalização onde a celebridade é ingerida através de uma
ampola e o espectador cria seu próprio filme, ou melhor, sua alucinação. Com
isso, Hollywood livra-se de mais um problema trabalhista: os roteiristas e
desenhistas de computação gráfica – depois dos atores, eles tornaram-se um
problema quando passaram a se apaixonar pelos próprio personagens digitalizados
que editavam.
O fim do Cinema
É esse o ponto
inovador em O Congresso Futurista:
enquanto na atualidade o cinema tematiza os desdobramentos da digitalização
(atores reais contracenando com personagens digitais, o fim da película etc.),
esse filme apresenta um cenário mais à frente – o desaparecimento do próprio
cinema no solipsismo do espectador por meio da alucinação química. Para quê
contar histórias se o próprio espectador pode ingerir suas celebridades e
imergir quimicamente na alucinação?
Se no conceito de
ciberespaço criado pelo escritor William Gibson temos um ambiente criado de
forma digital por meio de uma alucinação consensual criada diariamente pelos
usuários (e dessa forma muitos analistas definem a atual experiência dos
internautas), em O Congresso Futurista
já vivemos para além disso – o pós-digital, uma era “químico-espacial”.
Ciberespaço e solipsismo
Nos anos 1980 o
psicólogo e neurocientista considerado o papa do LSD, Timothy Leary, ficou tão
fascinado com os computadores que acreditava que em pouco tempo o ciberespaço
substituiria as drogas alucinógenas: a própria experiência virtual e os games
digitais substituiriam o barato químico. Seria a própria realização do
ciberespaço do ciberpunk livro Neuromancer
de Gibson.
Uma alucinação
consensual seria o ápice da chamada geração paz e amor dos anos 60-70 – drogas,
paz e comunhão tecnológica.
Mas o fantasma do
solipsismo sempre rondou esse ciberparaíso. Muitos pesquisadores apontam que a
Internet, cujos algoritmos criam uma realidade adaptada ao usuário a partir da
leitura dos seus hábitos, escolhas e pesquisas, vem enfraquecendo a percepção
pública ou coletiva da realidade. Dos avatares que cada usuário cria para si às
fantasias de si mesmo em cada chat ou sala de bate papo na Internet, criam-se versões cada vez mais fraturadas da
própria identidade.
O irônico no filme
O Congresso Futurista é que para a
Miramount Nagasaki, esse novo líquido cor-de-rosa é a “droga do livre
arbítrio”: o solipsismo será o livre arbítrio do futuro – enquanto o mundo real
é um deserto distópico de ruínas e pobreza, no mundo solipsista em 2D todos
apagaram a História e cada um é prisioneiro da própria alucinação que escolheu.
Se Leary
acreditava que a era da computação superaria as drogas alucinógenas, no
Congresso Futurista a era digital é superada pelo retorno à química, mas
ironicamente realizando o potencial solipsista já presente no ciberespaço.
O mundo
pós-apocalíptico de O Congresso Futurista:
todos nós nos exilaremos em uma espécie de caverna platônica com os personagens
mais ilustres da animação. Para cada lado que olhamos no estranho Congresso da
Miramount há vestígios de Walt Disney, R. Crumb, Max Fleischer, Studio Ghibili,
Frank Tashlin, Chuck Jones, Bakshi etc.
Este é o cerne do
filme: se toda história da indústria do entretenimento foi uma questão de criar
histórias que mascarassem o vazio da existência, então é para lá que quimicamente
migraremos usando o “livre-arbítrio” da escolha de consumidor: customizaremos a
nossa própria alucinação.
Ficha Técnica |
Título: O
Congresso Futurista (The Congress)
|
Diretor: Ari Folman
|
Roteiro: Ari Folman baseado no livro homônimo de Stanislaw Lem
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Elenco: Robin Wright, Harvey Keitel, Jon Hamm, Kodi Smit-McPhee, Danny Huston
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Produção: Bridgt Folman Film Gang, Opus Film, Entre Chien et Loup
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Distribuição: Drafthouse Films
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Ano: 2013
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País: Israel, França, Alemanha, Bélgica
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