sexta-feira, abril 06, 2012

O Sabor Gnóstico dos Muppets

A longevidade dos Muppets, que resistiram à concorrência das modernas animações digitais, parece apontar para uma mudança da sensibilidade infantil em relação aos universos ficcionais: muito mais metalinguística, reflexiva e irônica. A percepção de que a realidade não é mais estável e perene, mas uma construção artificial, plástica, que pode a qualquer momento ser alterada pela força da imaginação. Mas os Muppets parecem atribuir um valor a mais a essa força, um sentido místico.

Nessa Páscoa resolvi inovar. Ao invés de dar ovos de páscoa para meus filhos, resolvi dar dois DVDs clássicos dos Muppets: “Os Muppets: o filme” de 1979 e “Os Muppets Conquistam Nova Iorque” de 1984. Para quem não conhece, a série “Os Muppets” é um universo ficcional criado por Jim Henson que iniciou na TV norte-americana nos anos 1970. A principal característica das narrativas é que os diversos personagens que compõem o universo Muppets (Caco, Miss Piggy, Gonzo, Urso Fozzie etc.) convivem com humanos de uma forma natural. O que já é suficiente produzir uma série de situações cômicas e inusitadas.

Assistimos juntos aos filmes: o primeiro que narra a ascensão dos Muppets, do anonimato de Caco, o Sapo, nos pântanos até o sucesso em Hollywood e o outro onde eles tentam fazer um musical de sucesso na Broadway.

A primeira questão levantada por eles: por que ninguém no mundo humano preocupa-se com o fato de os Muppets serem diferentes dos seres humanos?  A questão levantada chamou-me a atenção de uma espécie de sensibilidade metalinguística ou irônica das crianças contemporâneas em relação aos filmes e animações.


Os conteúdos infantis na mídia deixam de ter uma narrativa épica (centrada na ação e heroísmo – cavaleiros, bruxas, piratas, trens a vapor etc.) para adquirirem uma narrativa metalinguística, reflexiva, irônica. “Pink Dink Doo” e “Charlie e Lola” são animações infantis exemplares dessa mudança de sensibilidade. Pink cria estórias para o seu irmão caçula, pontuando e criando a todo instante meta-narrativas. 

“Os Muppets: o filme” impressiona não só pela metalinguagem e constantes referências irônicas ao cinema e showbizz. Ele possui uma complexa narrativa em abismo: assistimos a um filme onde é mostrado outro filme que, no final, vemos uma nova metanarrativa onde os Muppets vão iniciar a produção do filme que acabamos de assistir. Isso talvez explique a longevidade dos Muppets, bonecos fantoches que resistiram à concorrência das modernas tecnologias de animações digitais.

Na sequência final vemos os Muppets famosos e reconhecidos em um estúdio em Hollywood iniciando uma nova produção. O filme poderia ter terminado ali, no ponto que comprovaria que o trabalho duro valeu a pena, e que encontrou amigos e se tornou bem sucedido e que também você deve seguir seus sonhos e assim por diante. Mas não termina assim. Termina com Gonzo balançando em uma corda acima do set de filmagem, caindo no arco-íris de papelão que se desfaz em pedaços, em seguida o teto explode abrindo um enorme buraco.

O que significa essa natureza metalinguística e reflexiva da sensibilidade infantil atual? Olhando em perspectiva das animações infantis em canais de TV especializados como Discovery Kids ou Cartoon Network, percebemos que a antiga narrativa épica infantil acabou: “Era uma vez, um lobo muito fedorento que pegou uma criancinha para fazer seu jantar. Mas, um corajoso caçador entrou na toca do lobo, deu uma tremenda surra no bichano malvado e salvou a criancinha. E viveram felizes para sempre”.

No lugar temos a percepção de que a realidade é plástica, mutável, um “constructo” artificial feito de pastiches e referências irônicas, além dos processos de produção serem cada vez mais transparentes: o que dizer da cena de pura metalinguagem quando alguns Muppets leem o roteiro do próprio filme que assistimos e que eles produzirão no futuro no interior da própria narrativa?

Isso tudo tem um sabor gnóstico: pensar que nosso universo não é uma realidade estável e perene, mas uma construção artificial que não existia desde sempre, mas obra, por exemplo, de um Orson Welles poderoso produtor/demiurgo de Hollywood que no final oferece aos Muppets o “contrato padrão de ricos e famosos” e os transforma em celebridades.

A Conexão do Arco-Íris

Particularmente gnóstico é o verso cantado por Gonzo: “Não há ainda uma palavra para velhos amigos que acabaram de se conhecer”. Em sua jornada em direção a Hollywood, Caco vai encontrando com os personagens dos Muppets pelo caminho. Eles são desconhecidos até então, mas, ao mesmo tempo, consideram-se velhos amigos, como se já fossem conhecidos há muito tempo.

Por que todos são velhos conhecidos? Além da resposta óbvia (todos são Muppets), eles se reconhecem porque todos tem uma centelha interior que os une: a imaginação. A certa altura da narrativa, dentro de uma Igreja abandonada, o grupo musical de Floyd canta os seguintes versos: “Tens que procurar na sua mente/É rápido e fácil de achar/Não custa nada/Qualquer um pode fazê-lo/Consegue imaginar isso?/Use-o se precisar.”

É a máxima gnóstica: “tudo o que você precisa já está dentro de você”. É a “centelha divina” dos gnósticos que em todos nós estaria adormecida à espera da gnose para que voltemos a nos conectar com a nossa verdadeira morada no Pleroma.

É o sentido da música “Rainbow Conection” que abre e fecha o filme. O filme trata o poder da imaginação tanto no aspecto do aprimoramento pessoal e da autoajuda (os Muppets estão focados para o sucesso), quanto no aspecto místico com a imagem do arco-íris que fecha o filme como uma conexão divina dos Muppets com uma dimensão transcendente que vem do céu pelo buraco aberto no teto do estúdio.

Nessa música cantada por Gonzo olhando o céu noturno estrelado temos a explícita mitologia gnóstica da gnose: a centelha interior como uma conexão com uma dimensão transcendente, nossa verdadeira morada: é de lá que nós pertencemos e para onde voltaremos algum dia.
Isto parece familiar/Vagamente familiar/Quase irreal (...) O sol nasce, a noite cai/Às vezes o céu chama/Está lá uma canção/E eu pertenço lá/Nunca lá estive/Mas eu sei o caminho/Vou voltar lá/Algum dia/Vem e anda comigo/Há mais diversão para partilhar/Vamos completar-nos os dois/Um lar em pleno ar/Estamos a voar, não a andar/Com asas sem penas/Podemos manter-nos cá em cima/Como com um cordel invisível/Ainda não há palavra para velhos amigos que acabaram de se conhecer/Parte céu, parte espaço/Ou terei encontrado o meu lugar/Podes apenas vir fazer uma visita/Mas eu planejo ficar/Vou voltar para lá/Algum dia.
Caco perde a memória

Em “Os Muppets Conquistam Nova York” dessa vez eles tentam emplacar um musical na Broadway. A narrativa inverte o argumento do filme anterior: se antes os Muppets eram anônimos que alcançam a condição de celebridades, aqui Caco – a origem, o Muppet messias – esquece depois de um acidente que é o famoso Caco. Torna-se um publicitário anônimo em Nova York, preocupado apenas com os números do mercado em uma agência de publicidade formada por rãs.

É a narrativa gnóstica da Queda humana no mundo mortal. Caco esquece não só a identidade como também a centelha divina (a imaginação) dentro de si.

E no final a impagável Miss Piggy faz Caco recuperar a sua memória minutos antes da estreia do musical dos Muppets na Broadway, salvando o dia. Sempre o personagem feminino é aquele que exorta o protagonista a “acordar”, despertar a centelha interior esquecida/adormecida. É o mito gnóstico de Sophia atualizado.

A virtude do desses dois filmes dos Muppets é que eles não se limitam ao script motivacional clichê do sonho americano: na terra da liberdade acredite em você e tudo conseguirá! A narrativa vai além ao investir um poder simbólico à imaginação que não se limita a gratificações materiais. Como um arco-íris é uma conexão com uma dimensão superior “vagamente familiar” para onde, um dia, retornaremos, como canta Gonzo olhando para as estrelas.

Ficha Técnica

  • Título: Os Muppets: o filme (The Muppets Movie)
  • Diretor: James Frawley
  • Roteiro: Jack Burns, Jerry Juhl
  • Elenco: Jim Henson, Frank Oz, Jerry Nelson, Orson Welles, Mel Brooks, Eliot Gould
  • Produção: Henson Associates, ITC Films
  • Distribuição: VTI Home Video
  • Ano: 1979
  • País: EUA



  • Título: Os Muppets Conquistam Nova York (The Muppets Take Manhattan)
  • Diretor: Frank oz
  • Roteiro: Tom Patchett, Jay Tarses
  • Elenco: Jim Henson, Frank Oz, Dave Goelz, 
  • Produção: Henson Associates, TriStar Pictures
  • Distribuição: Columbia TriStar Home Video
  • Ano: 1984
  • País: EUA


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