Em plena era dos efeitos especiais digitais no cinema, o indiano Tarsem Singh (veterano diretor de videoclipes e filmes publicitários) resolveu fazer um filme de fantasia baseado unicamente em figurinos, fotografia e locações buscadas em 28 países que acreditamos serem impossíveis. Aparentemente somente poderiam ser imagens geradas em computador. Mas são reais! Com as escadas infinitas e labirintos sem saída que mais parecem gravuras saídas da imaginação de M.C. Escher, o filme "Dublê de Anjo" (The Fall, 2006) narra a tentiva de suicídio de um amargo dublê de cinema hospitalizado após um acidente em filmagens. A improvável amizade com uma menina de quatro anos cria um mundo imaginário, uma simbólica narrativa da Queda e Redenção humanas.
Tarsem Singh Dhabdwar arriscou quase tudo que tinha para
fazer um filme que durante anos ninguém estava disposto a financiar. Tarsem fez
muito dinheiro como diretor de filmes publicitários e videoclipes de bandas
como Green Day e REM (por exemplo, o videoclip “Losing My Religion”) e via o
projeto do filme “Dublê de Anjo” (The Fall, 2006) como a realização de “um
sonho de todos no meio publicitário, o de um dia fazer um grande filme”.
Por quatro anos Tarsem capturou imagens de 28 países em locais que, acreditamos, não seriam possíveis. O diretor afirma que não usou
computadores para criá-los: eles existem. Planos subaquáticos de um elefante
nadando graciosamente enquanto carrega homens nas costas, pátios de palácios
construídos a partir de escadas interligadas que parecem ter saído de gravuras
de M.C. Escher, uma aldeia agarrada a uma montanha onde os prédios parecem ter
sido individualmente pintados em tons sutilmente diferentes de azul.
São imagens surpreendentes porque reais, com detalhes que
escapariam até de um artista digital. Diferente do seu filme anterior, “A Cela”
(The Cell, 2000), Tarsem decidiu fazer um filme baseado unicamente na
fotografia, locações e figurino.
Por isso, o filme é quase impossível de descrevê-lo. Podemos
dizer o que acontece, mas não conseguimos transmitir o espanto de como isso
acontece. Para um dos produtores do filme, o diretor David Fincher (“O Clube da
Luta” e “A Rede Social”), o filme é um cruzamento de “O Mágico de Oz” com
Tarkowsky.
No filme duas estórias são contadas em dois diferentes
estilos e, na medida em que avançam, vão se inter-relacionando:
Estória A: num hospital na Los Angeles de 1915 um dublê de
cinema chamado Roy Walker (Lee Pace) está internado depois de um acidente em
uma cena de queda de um trem do alto de uma ponte. Ele faz amizade com uma
menina de quatro anos chamada Alexandria (Catinca Untaru) que quebrou a clavícula
enquanto estava colhendo laranjas com seus pais imigrantes romenos. Roy começa
a contar uma estória fantástica sobre reis e guerreiros, cativando a menina.
Percebemos que tudo é um ardil de Roy para manipular a menina para que roube
comprimidos de morfina que ele precisa para cometer suicídio.
Estória B: Na medida em que Roy desenvolve sua narrativa
imaginária, ele, a menina e personagens do hospital (a enfermeira, o operador
do raio X, pacientes etc.) vão sendo inseridos no conto como personagens ficcionais.
A narrativa é um épico de capa e espada onde o Black Bandit (Lee Peace
novamente) que com a ajuda de um escravo fugitivo, um místico indiano, um
especialista em explosivos italiano e do naturalista Charles Darwin (!) lutam para
salvar sua amada, a princesa Evelyn das garras do maligno governador Odious.
O real supera o
simulacro
O genuíno espanto que o espectador tem com a galeria de
imagens e locações que Tarsem encontrou ao redor do mundo tem um motivo bem
contemporâneo: em uma cultura de imagens digitais e simulacros tecnológicos em
que estamos imersos, quando um filme nos confronta com cenários reais nossa
reação é a dúvida: isso tudo é real ou CGI?
A escadaria infinita |
Essa dúvida lembra a situação quando encontramos uma
belíssima flor decorando um ambiente ou uma suculenta fruta em um cesto e temos
a compulsão em tocá-los e apertá-los para nos certificarmos de que são reais: “tão
bonito, parece até de plástico!”, dizemos espantados. É a inversão provocada
pelos simulacros tecnológicos. Partilhamos da ilusão de que o real é que imita
as cópias de plásticos, e não o contrário: é a percepção hiper-real do mundo.
Em plena era onde o cinema é dominado pelos recursos
digitais, as sequências das escadarias infinitas ou do labirinto sem saída
filmado em um observatório astronômico de quatro séculos nas locações
encontradas por Tarsem, nos mostram que o real ainda supera os seus simulacros.
Viciados em que estamos por um olhar de segunda mão que insiste em ver o real a
partir de imagens feitas anteriormente dele, ficamos espantados ao assistir às
belíssimas sequências do filme “Dublê de Anjo”: isso não existe, só pode ser
efeito digital!
A Queda
O simbolismo da queda é o ponto central no filme de Tarsem.
Temos a queda literal tanto de Alexandria quanto do dublê Roy que fazem os
protagonistas encontrarem-se para, através da imaginação, criarem um conto
fantástico.
Nas religiões abraâmicas (Cristianismo, Judaísmo e
Islamismo) o simbolismo da Queda refere-se a transição humana de um estado de
inocência e obediência a Deus à culpa e desobediência, sintetizado na imagem da
expulsão de Adão e Eva do Paraíso.
Tarsem opõe a inocente menina Alexandria (além da infância,
o fato de ser estrangeira) contra Roy, amargo e ressentido, capaz de criar uma
estória ingenuamente fantástica dentro de um plano de suicídio. Mas percebe-se
que a Queda representada na narrativa não está cercada de culpa ou moralismo
como nas tradições abraâmicas: Alexandria parece querer exortar que Roy
desperte, lembrando a personagem gnóstica de Sophia e como ela é representada
no cinema (sempre mulheres que procuram despertar o protagonista para a
centelha interior que ele esqueceu na Queda para esse cosmos físico).
A personagem Alexandria era a principal para o diretor
Tarsem: enquanto ele não encontrasse a atriz perfeita para o papel, a produção
não começaria. O diretor foi encontrar a menina para o papel em uma escola na
Romênia, conversando no meio de outros alunos.
Sophia no cinema é representada muitas vezes como “a
estrangeira”, aquela que surge de terras distantes e é capaz de transformar a
vida de todos pelo seu olhar “puro”, isto é, um olhar de um estrangeiro que vê
tudo como fosse a primeira vez, resgatando de todos aquilo que foi esquecido. Filmes
como “Bagdad Café” (1987) ou “Asas do Desejo” (1987) de Win Wenders são
recorrências desse personagem simbólico que vem resgatar o homem da Queda, como
um estrangeiro ou como um anjo.
No caso da menina Alexandria um pouco dos dois. Ela encontra
Roy o homem duplamente em queda, não só pela condição humana de estar em um
mundo físico cujo acidente lhe deixou paralítico como alguém dominado pela amargura
e ressentimento.
Como um homem com tanta amargura e raiva da vida pode ter o
brilho da imaginação da criar uma estória tão fantástica? É justamente essa
centelha interior esquecida por Roy em queda que Alexandria tentará resgatar ao
longo do filme.
É justamente esse elemento de autodivinização gnóstica (a
rendenção da queda não advém de um retorno ao temor a Deus, mas do reencontro
da centelha divina no interior de cada um de nós) que Alexandria procura
incentivar em Roy ao fazê-lo contar um final feliz para a estória imaginária
que reflita numa redenção da queda na vida real.
Ficha Técnica
- Título: “Dublê de Anjo” (The Fall)
- Diretor: Tarsem Singh
- Roteiro: Dan Gilroy, Nico Soultanakis
- Elenco: Lee Pace, Catinca Untaru, Justine Waddell
- Produção: Googly Films e Radical Media
- Distribuição: Imagem Filmes (DVD)
- Ano: 2006
- País: EUA/India
Postagens Relacionadas
- O Ceticismo Gnósticos de Jean Baudrillard (parte 2): Os Simulacros nada têm a esconder
- A Disneyficação da realidade no filme "Substitutos"
- Por que o filme gnóstico é uma tendência norte-americana