O livro “The New
Inquisitions” do professor da Michigan
State University Arthur Versluis localiza as origens do Totalitarismo moderno e
das práticas de controle do pensamento no século II com a institucionalização
da Igreja Católica e o surgimento da ortodoxia que iria identificar heresias
e hereges. As primeiras vítimas foram os gnósticos, herdeiros de uma anterior tradição religiosa pluralista. Se no passado os Impérios dominavam exclusivamente
recursos naturais e escravos, a partir da Igreja Católica em II DC surge também
a necessidade do controle do pensamento, aprimorado até chegar à Inquisição no
século XII. Hoje não são mais necessárias câmaras de torturas já que a Internet
e redes sociais tornaram os pensamentos mais acessíveis do que nunca.
A
institucionalização da Igreja historicamente se fundamentou na ortodoxia que
criaria figura do “herege” e a identificação das “heresias”. Mas antes do
Cristianismo institucionalizado havia outro modelo bem diferente.
Olhando para o
cristianismo oriental e, mais a leste, para as religiões da Índia, China e
Tibet havia toda uma tradição muito mais pluralista: o Hinduísmo abrigava uma variedade
de tradições (vedanta, védica, tântrica etc.); o pluralismo chinês onde budismo,
taoismo e confucionismo conviviam lado a lado.
No Cristianismo primitivo havia também um modelo pluralista fundamentado nas antigas tradições
da Ásia (Platonismo, Hermetismo, misticismo judaico etc.) que foi denominado
“Gnosticismo” porque a sua unidade não era dada por uma forma externa –
organização burocrática ou histórica – mas por um conhecimento interior, a
“gnosis”.
Mas tudo
mudou com a institucionalização da Igreja no século II DC: os padres da
primeira Igreja como Tertuliano de Cartago pressentiram a necessidade de
racionalizar os dogmas da religião através de termos como “ortodoxia” oposta da
“heresia”. Pela primeira vez surge a necessidade do controle do pensamento por
meio de uma forma de Poder. Além de conquistar terras, escravos e riquezas,
pela primeira vez as estratégias políticas de dominação passaram a ter
necessidade de reprimir por diversos instrumentos qualquer pensamento
divergente da norma. Essa é a origem das modernas formas de Totalitarismo como
o fascismo, nazismo até instrumentos contemporâneos da “nova inquisição” como
as redes sociais na Internet e teorias conspiratórias como a “illuminatifobia”.
Essa é a tese fundamental do livro "The New Inquisitions: Heretic-Hunting and the Intellectual Origins of Modern Totalitarism" de Arthur Versluis, professor do Departamento de Estudos da Religião da Michigan State University. Reproduzimos abaixo uma ótima resenha de Miguel Conner (escritor norte-americano de sci fi e editor/apressentador do programa radiofônico "Aeon Bytes Gnostic Radio" - programa de debates e entrevistas semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop) sobre o livro.
Conner vai destacar que os gnósticos (representantes de uma
era de tradições religiosas mais pluralistas) foram os primeiros alvos dos
dispositivos inquisicionais aprimorados durante séculos pela Igreja, cuja
continuidade secularizada encontramos na pós-modernidade: “o inquisidor
moderno não exige mais câmaras de tortura ou vizinhos delatores quando a
Internet, mensagens eletrônicas, redes sociais e outros meios de comunicação
fizeram os pensamentos do público mais acessível do que nunca.” Basta apenas
que as ideias fascistas e de intolerância encontrem uma tradução política no
Estado.
Miguel Conner
A maioria das
pessoas conhecem termos como 'orwelliano', 'Politicamente Correto', Patrulhamento
Ideológico"ou " Admirável Mundo Novo ", bem como os sistemas
opressivos seculares e religiosos ao longo da história que os inspiraram. Apesar desses
mecanismos que matam a individualidade serem construções relativamente
modernas, não são apenas tão antigos quanto o Cristianismo, mas na
verdade se originaram com o Cristianismo!
Antes do
surgimento da figura do herege, impérios conquistaram quase que exclusivamente
recursos naturais, escravos e prestígio, mas a maioria das nações subjugadas tinha
a permissão de manter suas crenças nativas, costumes e ideologias. A
perseguição religiosa dentro de um império geralmente surgia quando um
sacerdote ou nobre – representantes na Terra de deuses específicos – iniciavam
alguma forma de insurreição.
Os exemplos são numerosos: os egípcios pemitiram
que os israelitas e outras raças escravizadas existissem livremente como
cultura; os babilônios isolavam o clero judaico das massas em uma espécie de
prisão em um clube de campo; e os romanos eram famosos pela liberdade
religiosa, desde que tanto cidadãos quanto estrangeiros obedecessem às leis,
pagassem impostos e jurassem a santa fidelidade ao Imperador. Recompensa ou
punição era geralmente aplicada por causa do comportamento de um indivíduo ou
grupo.
Tertuliano de Cartago: polemista contra a heresia viu a necessidade de racionalizar os dogmas cristãos |
De acordo com
Versluis, uma mudança sísmica ocorreu no século II DC, quando o Cristianismo
começou a solidificar-se como uma religião organizada ao invés de múltiplas
seitas independentes.
Padres da Igreja como Irineu de Lyon e Tertuliano
de Cartago viram a necessidade de racionalizar os dogmas de sua religião a fim
de ganhar respeitabilidade dentro do Império Romano. Dissidências
ou especulações autônomas poderiam ameaçar a própria sobrevivência do
cristianismo (pelo menos essa era sua razão de ser).
Eles desenharam uma linha dura na área
doutrinária, referindo-se à sua forma de Cristianismo como
"ortodoxia" (do grego para "bem pensante"). Do outro
lado estavam os gnósticos, que foram chamados de “hereges” (do grego "para
aquele que escolhe", no contexto do pensamento divergente da norma padrão). Estas
respectivas categorias foram aplicadas aos membros das suas igrejas após
apressadas investigações. Tal demarcação acabou sendo designada para
comunidades inteiras e as mais "hereges" denunciadas , sendo os termos
convenientemente abrangentes para outras seitas, religiões e até mesmo princípios
políticos.
Em outras
palavras, um inimigo já não era definido pelos seus atos, lealdade ou mesmo
cidadania, mas por seus próprios pensamentos! Como a ala
ortodoxa cresceu e se associou ao governo romano, volumosos textos foram
escritos sobre como reconhecer, decifrar e corrigir aqueles que haviam feito
uma escolha longe do “bom pensamento”. Pela
primeira vez na História uma forma de pensar poderia ser criminalizada pelo
Estado (1).
Este modelo de controle totalitário não foi
totalmente aperfeiçoado até a chegada da Inquisição no século XII. Apesar da
percepção comum, a Inquisição não foi implementado para lidar com os judeus,
bruxas ou de outras minorias, mas, ironicamente, contra os gnósticos e os
cátaros rebeldes do sul da França. Com a bênção do Papa e da cobiça de nobres oportunistas,
a caça aos hereges tornou-se a principal arma para combater a resistência dos
gnósticos medievais.
Os cátaros do sul da França aniquilados pela Igreja: os gnósticos foram as primeiras vítimas da Inquisição |
Uma vez que
os cátaros e os seus simpatizantes católicos foram aniquilados, este
instrumento de controle absoluto migrou para outras formas de pensamento que
não estavam em linha com a Igreja (e mais tarde muitas linhas protestantes). A prática da
tortura, tribunais simulados, provas plantadas, o incentivo à delação,
execuções públicas exemplares, entre outras técnicas, sofisticaram-se ao ponto
de o medo ser o suficiente para literalmente fazer populações inteiras se
tornarem ortodoxas ou “politicamente corretas”.
Apesar do advento da Era do Iluminismo e das
nações democráticas, a história revela claramente que a fórmula repressiva dos pais
da primeira igreja e dos inquisidores medievais nunca foi abandonada. A Nova
Inquisição oferece os habituais e infames exemplos famosos de regimes
autoritários e patrulhamento dos pensamentos, como os corruptores da Revolução
Francesa, o marxismo europeu-asiático, o nazismo, e espectros diferentes do
fascismo. No entanto, Versluis oferece evidencias de intelectuais que
influenciaram notórios movimentos despóticos, direta ou indiretamente, e que
estavam bem conscientes sobre os caçadores de hereges e suas metodologias (e,
certamente, convocaram o bicho-papão do gnosticismo quando necessário)(2).
A pergunta
pode surgir é o porquê de o livro se chamar “As novas inquisições”, uma vez que o crime
do pensamento é imortal e sempre se transforma e migra para diferentes lugares
e épocas. A resposta é
a advertência de Versluis de que o vírus caça à heresia ainda é considerado uma
toxina viável por muitos no poder, mesmo em sociedades livres. O pânico ao
satânico e a “Illuminatifobia” dos anos 1980 e 1990 no Ocidente são dois casos
que, felizmente, não evoluiram para literal caça às bruxas. E como
Versluis afirma, é uma sombria ironia que os alarmistas principais destes dois casos,
Pat Robertson e Tim Lahey, são eles próprios membros do clandestino e
atualmente ativo Conselho de Política Nacional (3). Em essência,
esta organização cristã illuminati
cria falsos Illumitatis que são implantados nas mentes da população,
a fim de criar cismas e fabricar ameaças, tornando assim mais fácil de
controlar a percepção do público.
Como mencionado, a dura verdade é que a caça aos
hereges e o golem da inquisição jamais serão destruídos, porque são produtos da
imaginação infernal de quem achava que o bem maior significa a falta de livre
arbítrio e o livre pensamento. Os gnósticos tomaram os primeiros golpes deste golem, além de incontáveis milhões de pessoas pagaram caro por nada mais do que terem tido ideias para depois serem punidos por outras ideias.
No entanto, a
ortodoxia (bem pensante) pode ser contida por uma atitude feroz de heresia
(escolha além do aceitável), como a história tem também revelado muitas vezes. Mas talvez
isso só torne as coisas mais difíceis. O inquisidor
moderno não exige mais câmaras de tortura ou vizinhos delatores quando a
Internet, mensagens eletrônicas, redes sociais e outros meios de comunicação
fizeram pensamentos do público mais acessível do que nunca. Tudo o que
precisamos para contaminar a liberdade é que ocorra, algum dia, o casamento
entre um sistema de crenças ditatorial e o Estado. Quando se
menos espera, os pensamentos de alguém podem se transformar em testemunha
condenatória em algum tribunal corrompido.
“Nós não estamos trabalhando para Ti, mas para ele [o diabo], que é o nosso mistério. Nós, continua ele, seremos césares e depois vamos planejar a felicidade universal do homem através de alguns meios que possam unir tudo em um unânime e harmonioso formigueiro. O Grande Inquisidor é quele que rejeita a transcendência e abraça a imanência, isto é, o histórico e mundano poder, a fim de ajudar a humanidade a realizar a utopia terrena através do impedimento da liberdade humana”(4).
As ideias
podem realmente mudar o mundo. Mas algumas ideias seriam melhores se fossem
deixadas na imaginação infernal de certas pessoas, para que não tenhamos um
admirável mundo novo com seus golens.
NOTAS
______________________________
(1) Versluis
explica isso em detalhes em sua introdução, pp. 3-11.
(2) Dois exemplos
Versluis dar são Carl Schmitt (Capítulo. 6): intelectual alemão e proponente do
nazismo que influenciou Göbbels e Himmler, considerado como o último dia
Tertuliano a combater os gnósticos modernos, e Eric Voegelin (Capítulo. 8), estudioso
norte-americano que viu uma
conspiração por trás de qualquer movimento gnóstico radical, e até hoje é uma
grande influência sobre políticos de direita e cristãos fundamentalistas.
(3) Versluis
descreve-o como um grupo de elite com apenas algumas centenas de membros que se
reúne três vezes por ano, e vai para comprir e manter suas
agendas secretas. Alguns de
seus membros foram são Ed Meese, Jerry Falwell, Oliver North e vários
membros da Fundação Heritage.
(4) P. 11.
CONNER, Miguel http://www.examiner.com/gnosticism-heretical-spirituality-in-national/the-origins-of-totalitarianism-and-thought-control
Ficha Bibliográfica
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Ficha Bibliográfica
- Título: The New Inquisitions: Heretic-hunting and the intelectual origins of modern totalitarism
- Autor: Artur Versluis
- Editora: Oxford University Press
- Ano: 2006
- País: EUA
- ISBN: 978-0195306378
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