quinta-feira, junho 02, 2011

O Hiperpassado: a História como uma coleção de escolhas gratuitas

As representações pastiche e retro do passado feitas pelas mídias estão criando uma espécie de "passado genérico" onde a percepção subjetiva do tempo entra em contradição com o tempo cronológico criando um "presente extenso". Embora vivamos numa sociedade tecnológica cuja ideologia é a de que tudo muda mais velozmente do que em qualquer outra época, é paradoxal que o presente extenso crie um eterno aqui e agora onde o futuro se fecha a mudanças e o passado passa a ser uma coleção de escolhas gratuitas.


Em uma aula de Estudos da Semiótica na Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo) estava discutindo com os alunos as características culturais e estéticas do Pós-Moderno. Apresentava dois trechos de dois filmes de ficção científica para fazermos uma análise comparativa: o primeiro, o clássico “Planeta Proibido” (Forbidden Planet, 1956) e o segundo o filme de 1979 “Alien”. Ambas com sequências narrando o pouso das naves em planetas desconhecidos. A ideia era a de discutir as diferentes concepções de futuro, a moderna e a pós-moderna.


Após exibir a sequência de “Alien”, um aluno, visivelmente espantado, perguntou de que ano era esse filme. “Nossa, esse filme parece tão atual...  esperava um filme parecido como o ‘Planeta Proibido’”, respondeu perplexo o aluno.

Esse espanto do jovem aluno fez-me cair a ficha: falar de moderno e pós-moderno é discutir o tempo e entender como as mudanças do espírito de época acompanham o tempo cronológico. Para ele, o ano de 1979 era muito “antigo”, afinal ele nem era nascido. Ele esperava de “Alien” mais um filme “tosco”, se possível em preto e branco. Mas se defrontou com efeitos especiais e de montagem semelhantes aos atuais. A sua percepção de tempo estava em contradição com a noção cronológica de tempo.

Em outra aula de Estudos da Semiótica, um grupo apresentou para classe um vídeo produzido por eles sobre a Teoria da Informação. Criaram uma narrativa onde um jovem do ano 1900 pegava uma máquina do tempo para cair na década de 40 onde encontrava Norbert Wiener (o criador da Teoria da Informação) que lhes explicaria a Teoria e suas aplicações. Para dar um ar de “antigo” (1900) ao personagem colocaram como áudio “As Quatro Estações” de Vivaldi, obra do século XVIII.

Essa contradição entre percepção e cronologia do tempo nada tem a ver com falta de conhecimento de História no sentido livresco. O que parece estar em jogo aqui é a mudança na percepção do tempo, uma alteração pré-conceitual em como percebemos o passado, presente e futuro.


Parece que cada vez menos conseguimos entender o “tempo histórico”, a alteridade de cada época, a não ser projetando o nosso presente no passado ao recriá-lo através de signos produzidos principalmente pela mídia.

O Hiperpassado

Essa dificuldade em compreender o tempo histórico de cada época representada pela criação de um “antigo” ou um “passado” genérico (através do pastiche de imagens, estilos, objetos e peças culturais de épocas e lugares diferentes, criando um conjunto atemporal) pode ser vista em dois exemplos recentes na televisão.

O Hiperpassado: bondes fora de época para
criar uma atmosfera de "antigo"
O primeiro, o filme publicitário “O Gol da Vida” (do Volkswagen Gol) com o jogador de futebol Robinho. No vídeo, Robinho afirmava que o gol da vida dele era o carro com o qual o pai o levava todo domingo aos estádios de futebol. Em um take vemos um automóvel Gol em ruas de paralelepípedos acompanhando um bonde. Na trilha musical um chorinho bem tradicional.

Ora, a idade aparente do ator que representa o santista Robinho (além de ter sido jogador do Santos, é natural da cidade de Santos) no filme publicitário corresponde à infância do jogador no início da década de 90 (ele nasceu em 1984). Os bondes foram extintos na cidade de Santos no final da década de 60. Portanto, não havia mais bondes naquela época. E os bondes turísticos só entraram em funcionamento no ano 2000. Por que um bonde na cidade de Santos do filme publicitário? É evidente a função sígnica do bonde para criar uma atmosfera genérica de “passado”, somada aos paralelepípedos e a trilha com o chorinho. Um pastiche, o hiperpassado.

Mais um exemplo: às vésperas de mais um jogo Corintians versus São Paulo, um programa esportivo da TV Gazeta apresentava os gols mais importantes de antigas edições do clássico futebolístico. A matéria exibiu gols de jogos a partir da década de 90. A trilha musical escolhida me intrigou: um chorinho bem antigo dos “Demônios da Garoa”. Talvez, a trilha mais representativa para aquela época seria um som grunge ou do rock nacional.  Mas esses sons parecem contemporâneos demais para darem um ar de “antigo” a eventos de até 20 anos atrás.

A natureza “hiper” dessa memória do passado, além do evidente aspecto pastiche em misturar  referências de épocas diferentes numa espécie de antigo extenso ou genérico, possui ainda a característica de “memória retro”. Por exemplo, os “botecos chiques” atuais que fazem um remake dos botecos das décadas de 50 e 60 no Rio e São Paulo são baseados não nos autênticos bares da época (o que seria uma reconstituição histórica), mas nos clichês da cinematografia nacional e vídeos publicitários de cerveja. A História é substituída pela cenografia onde a madeira das mesas e balcões e o cobre da chopeira são artificialmente envelhecidos para ganhar o ar da dignidade da antiguidade.

O pensador francês Jean Baudrillard definia isso como uma “disneyficação da realidade” onde a imagem ou a cenografia não copiam mais o real, mas o inverso: o real transforma-se num gigantesco parque temático onde transpõe para o real os simulacros replicados pela mídia. 

O Presente Extenso

Por que essa contradição entre o tempo cronológico e a percepção do passado?  Uma hipótese interessante é a elaborada pelo teórico da literatura e professor da Universidade de Stanford (EUA) Hans Ulrich Gumbrecht sobre o colapso da temporalidade moderna. Para ele, a clássica concepção de tempo configurava uma assimetria entre passado, presente e futuro: um tempo que flui de um passado distinto do presente e um futuro aberto e para o qual podemos selecionar opções.
“A situação contemporânea evoca um futuro bloqueado. Em lugar da percepção moderna de um futuro cujas opções permanecem em aberto, passamos a temer esse futuro: não mais o vemos como um resultado do presente, antes o presente parece tornar-se onipresente. Ao mesmo tempo, as possibilidades técnicas de reprodução de ambientes e condições do passado se aperfeiçoaram a tal ponto que, constantemente, o presente parece invadido por passados artificiais” (GUMBRECHT, Hans Ulrich. Corpo e Forma – Ensaios para uma crítica não-hermenêutica, Rio de Janeiro: editora UERJ, 1998, p. 138).
Pastiche e Retro no filme Kill Bill: um mix de filmes 
de Kung Fu dos anos 70com faroeste “espaguete” 
italiano dos anos 60 
É o conceito de “tempo extenso” desenvolvido por Gombrecht. O Pós-moderno simplesmente não consegue conceber ao futuro, a não ser como uma extensão do presente como no caso das distopias na ficção (como vimos na postagem anterior sobre a minissérie “Alice” – veja links abaixo) ou nas catástrofes decorrentes dos pecados e erros do presente (catástrofes meteorológicas, ambientais ou simplesmente divinas). Ao mesmo tempo, as produções culturais são essencialmente pastiches ou retrôs, pilhando os signos, valores e estilos do passado para criar verdadeiras colchas de retalhos atemporais em arquitetura, moda, design, música, cinema etc.

Como, por exemplo, o filme “Kill Bill” (Kill Bill Vol. 1, 2003) do diretor Tarantino, um pastiche de filmes de Kung Fu dos anos 70 com faroeste “espaguete” italiano da década de 60 associadas com trilha musical dos anos 70 e new wave dos 80. Ou ainda na arquitetura, onde vemos shopping centers com um tímpano (espaço triangular ou em arco ornado com esculturas sobre o portal de entrada de catedrais) da arquitetura eclesiástica medieval estilizada e misturada com pilares em estilo jônico na entrada.

Em outras palavras, o passado cada vez mais se torna contemporâneo: os anos ‘50 com suas “pin ups” e design futurista invadem a moda, decoração, bares temáticos e o design retro de produtos high techs do presente. Nos filmes do gênero fantástico e ficção científica atuais convivem tranquilamente elementos medievais, futuristas e vitorianos.

Então, como é possível representar o passado no interior desse presente extenso em que vivemos? Somente de uma forma “hiper”, transformando o tempo histórico em uma colcha de retalhos de referências atemporais a partir de clichês midiáticos. O passado simulado em parques temáticos do presente.

De qualquer forma o presente extenso cria um mal estar diante da alteridade que representa o tempo histórico. Embora vivamos numa sociedade tecnológica cuja ideologia é a de que tudo muda mais velozmente do que em qualquer outra época, é paradoxal que o presente extenso crie um eterno aqui e agora onde o futuro se fecha a mudanças e o passado passa a ser uma coleção de escolhas gratuitas.

Hiperpassado: somente extraterrestres
para explicar uma engenharia
"tão avançada para sua época"
Por isso o “inteiramente outro” (alteridade), isto é, o mal estar diante da constatação de que existiram outras épocas, culturas ou concepções radicalmente diferente das do presente, é eliminado no presente extenso sob diversas formas:

  • Na concepção da História como a evolução das formas da satisfação de necessidades “humanas”, na verdade necessidades atuais projetadas no passado. Por exemplo, de que a TV e o telefone celular finalmente realizariam antigos sonhos de comunicação da humanidade.

  • Na projeção pura e simples do presente no passado e no futuro: desde filmes que mostram estruturas familiares ou de parentesco na antiguidade semelhantes as do presente até os mundos distópicos do futuro onde intolerâncias e preconceitos repetem as mazelas do presente.

  • No constante revisionismo histórico no meio acadêmico segundo a moda intelectual do momento. Um exemplo atual é a da obra de Monteiro Lobato. De clássico da literatura infantil, obras como o “Sítio do Pica-Pau Amarelo” agora é reavaliado como exemplo de incitação ao racismo e intolerância.

  • Ou partimos para o irracionalismo para dar conta da alteridade. Obras arquitetônicas grandiosas e com engenharia precisa (pirâmides e palácios) da antiguidade são consideradas absurdamente "avançadas para a época" e passam a serem explicadas como resultados da intervenção de extraterrestres “new ages”. É o sintoma dos pastiches da ficção científica atual (como em filmes como “Stargate” - 1994) projetados no passado.


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