domingo, junho 05, 2011

O Poder do Mito como Arma

Massivamente explorado na atualidade pela indústria do entretenimento, o poder do mito foi usado no passado pelas religiões não só para expressar as mais sublimes verdades, mas, também, como arma para destruir realidades artificiais e sistemas opressivos.

Os sistemas mitológicos acabaram perdendo esse poder ao serem reduzidos, na modernidade, a meras fábulas, mentiras, ideologias ou, simplesmente, em mercadorias que entretêm. No artigo do norte-americano Miguel Conner (escritor e diretor/apresentador do programa radiofônico “Aeon Bytes Gnostic Radio”, programa de debates e entrevistas semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop) que reproduzimos abaixo, o autor inicia uma reflexão sobre a necessidade de resgatarmos a dupla função original do Mito: esotérica (revelação de verdades transcendentes) e política (como arma que denuncia o artificialismo das realidades mantidas por sistemas opressivos).  

A partir das reflexões sobre o Poder do Mito feitas pelo historiador Joseph Campbell, Conner vai desenvolver esse duplo aspecto de toda mitologia.

Historicamente, a segunda função foi intensamente explorada pelo Gnosticismo na sua luta por criar narrativas mitológicas épicas que resgatassem o “herói de mil faces” presente em cada um de nós como um combustível contra sistemas religiosos e políticos opressores. 

APROVEITANDO O PODER DO MITO (PARTE 1): O MITO COMPREENDIDO

Miguel Conner

Todas as religiões empregam a mitologia para expressar suas mais sublimes doutrinas, mas os gnósticos chegam próximos a usá-la como arma. O uso do mito no Gnosticismo sempre fez parte do seu arsenal nuclear contra as cortinas de aço das realidades artificiais e sistemas opressivos. Eles são desconstruídos, reconstruídos e, por vezes, destruídos pelos mitos na sua busca sem fim em decifrar os mistérios da existência. O pai da Igreja, Irineu, criticou duramente os gnósticos no século II por constantemente inventarem novos evangelhos como um meio de atingir algum tipo de revelação divina.



As narrativas mitológicas
gnósticas se assemelham a
"space operas"
Suas proto-escrituras se assemelham a “space operas” psicodélicas cheias de temas judaicos, gregos e até orientais. Simão, o Mago, coloca no grande palco homéricos personagens, antes da cinematografia do Jardim do Éden. Estrelas helenísticas como Eros, Hécate ou algum titan ranzinza aparecem nas mesmas cenas dramáticas com Jesus Cristo, Maria Madalena e os apóstolos (Pistis Sophia/Sobre as Origens do Mundo).

Mas por que os gnósticos, e as outras religiões em menor medida, dependem tanto da criação de mitos para os propósitos da evolução espiritual? Afinal, em nosso contexto moderno o  mito é apenas o sinônimo de uma fábula, de uma mentira ou de um discurso político. No entanto, para os antigos era o alimento para a alma, uma ferramenta viável para a expansão da consciência.  

Aproveitar  o que é conhecido como “O Poder do Mito” – em um contexto gnóstico mais amplo – é algo que abordarei em detalhes  em um próximo artigo para a revista “New Dawn”, assim como em futuras continuações dessa série.

Mas se há um atalho para a compreensão dessa mitologia e de seus dons ambrosianosm então seria através do trabalho do homem que cunhou a expressão “O Poder do Mito”.

E esse é o grande Joseph Campbell, que em seu livro “Pathways do Bliss” [“Mito e Transformação” no Brasil] delineia as quatro funções do mito. Antes de apresentá-las para ressaltar esse conhecimento transcendente dos mitos que tanto os gnósticos como Campbell possuíam, aqui está uma das descrições mais perspicazes sobre o mito, feita pelo historiador Heinrich Zimmer:
“As melhores coisas não podem ser contadas, são transcendentes, verdades inexpremíveis. As segundas melhores são os mal-entendidos: os mitos que consistem em tentativas metafóricas para apontar o caminho para as primeiras. E as terceiras melhores tem a ver com a História, Ciência, Biografia e assim por diante. Estas são as mais compreendias, podendo ser um tipo de comunicação para as primeiras. Mas as pessoas as leem referindo-se diretamente ao terceiro, tornado a imagem não mais transparente ao transcendente.”
Em um contexto menos esotérico e mais psicológico, para os mais mundanos, June Singer em seu “Livro Gnóstico das Horas” escreveu:

"Os mitos são verdadeiras expressões do nosso eu interior, reveladas enigmaticamente através de imagens, símbolos e metáforas. São como sonhos: racionalmente não são verossímeis, mas em um sentido psicológico expressam os processos internos das pessoas através do uso de dispositivos engenhosos que escondem o que deve ser escondido e revelam o que deve ser revelado".

Para aqueles simultaneamente mundanos e esotéricos, Carl Jung disse simplesmente: "Mitos são sonhos públicos e os sonhos são mitos privados."

Joseph Campbell
Mais do que qualquer estudioso moderno, foi Joseph Campbell quem ressuscitou o mito à sua intenção primordial. Seus escritos e palestras sobre mitologia são quase canônicos, sendo talvez o seu clímax “O Herói de Mil Faces”. No entanto, em “Mito e Transformação” uma das suas últimas obras, é onde Campbell exerce o seu mais forte viés místico sem perder a precisão científica de livros como “O Poder do Mito”.

Em uma de suas palestras abordou as quatro funções do mito:
"Tradicionalmente, a primeira função de uma mitologia viva é conciliar a consciência com as condições de sua própria existência, isto é, a natureza da vida ... a vida é uma presença terrível e você não estaria aqui se não fosse por ... uma ordem mitológica já definida para conciliar a consciência com este fato."
Os gnósticos certamente concordariam, como Jesus explica no “Livro de Tomé, o Contendor”: "Ai de vós que tem esperança na carne e na prisão que vai perecer! Quanto tempo falta para ser esquecido? E quanto tempo você acha que o imperecível perecerá  também? Sua esperança é definida em cima do mundo, e seu deus é a vida! Vocês estão corrompendo vossas almas! "
"A segunda função da mitologia, então, é apresentar uma imagem do cosmos que mantenha seu senso de reverência mística e explique tudo com o qual você entra em contato com o universo ao redor."
O complemento gnóstico para isso poderia ser encontrado no “Evangelho de Filipe”: "A verdade não vem nua ao mundo, mas vem por meio de cifras e imagens. O mundo não receberá a verdade de qualquer outra forma. Há o renascimento e a imagem do renascimento. A verdade deve ser revelada por meio das imagens."
"A terceira função de uma ordem mitológica é validar e manter um determinado sistema sociológico: um conjunto compartilhado de acertos e erros, propriedades, em que a unidade social depende de sua existência".
No Evangelho de Tomé, Jesus resume essa função, embora, juntamente com São Paulo, certamente ele insiste em outros trabalhos sobre a importância social da piedade: "Não minta, e não fazeis o que você odeia, pois todas as coisas são desveladas aos olhos do céu. Não há nada escondido que não se torne manifesto, e nada coberto permanece sem ser descoberto ... ama seu irmão como a tua alma, guarda-o como a pupila de seus olhos. "
"A quarta função da mitologia é psicológica. O mito deve conduzir o indivíduo ao longo das fases da sua vida, desde o nascimento até a maturidade e através da senilidade até a morte. A mitologia deve fazê-lo de acordo com a ordem social de seu grupo, o cosmos tal como compreendido pelo seu  grupo e o grandioso mistério. "
O apóstolo Pedro nos “Atos de Pedro” proclama: "E em nossos corações, estávamos unidos. Nós concordamos em cumprir o ministério ao qual o Senhor nos designou. E cada qual fez um pacto, um com os demais ".  

"Precisamos de um novo Mito"
Campbell parece estar dizendo que a mitologia é uma vasta rede de mecanismos de enfrentamento, os mandatos de iniciação para a responsabilidade na comunidade, os próprios planos do herói dentro de todos nós mesmos, as senhas para as esfinges da espiritualidade imponderável, e o DNA antropológico da cultura, todos os presos ou talvez escondido em expressões artísticas.

Aqui estão mais alguns “koans” [paradoxos que levam à meditação no treinamento de monges budistas] de Campbell encontrados em “Mito e Transformação” que ilustram ainda mais a mitologia:

  • "O tempo é o que o aprisiona por toda eternidade. O mito refere-se à dimensão transcendente do momento ."


  • "O que o mito faz por você é apontar para além do campo fenomenal, para o transcendente. A figura mítica é como a compasso que você usou na escola para desenhar círculos e arcos, com um pé no domínio do tempo e outro no eterno. A imagem de Deus pode parecer uma forma humana ou animal, mas sua referência transcende disso. "


  • "O ritual é simples mito refeito. Participando de um rito, você está participando diretamente no mito."


  • "Religião é um mito mal compreendido."


  • "Uma ordem mitológica é um sistema de imagens que dá a consciência de um sentido à existência, o que, meu caro amigo, não tem sentido, ele simplesmente é. Mas a mente vai clamar por sentidos, ela não pode jogar a menos que conheça (ou finga conhecer) algum sistema de regras ".


  •  "Precisamos de um novo mito."

Esse é um problema adicional. Uma sociedade em rápida mutação como a nossa perdeu a capacidade de explorar nossa imaginação ativa ou até mesmo lidar com um universo holográfico. Por isso, mais uma vez devemos cortejar o “O Poder do Mito”, a fim de recuperar a nossa capacidade de inflamar os novos sistemas mitológicos. Devemos encarar a realidade de que os velhos mitos perderam seu encanto ao competir com o brilho industrial de uma era tecnológica.
Os gnósticos clássicos certamente concordariam com isso diante de um mundo onde cresce as crises e as tensões sócio-políticas. Embora os gnósticos e Campbell sejam os comandantes da mitologia, é minha esperança de que eu possa ainda continuar a torná-la uma arma a fim de que todos nós possamos começar a tirar vantagem de um combustível esquecido do Poder do Mito para o arsenal nuclear que enfrente as cortinas de aço das realidades sintéticas e sistemas opressivos.

E compreender que o herói de mil faces, em última análise, está em cada um de nós. Espero que você esteja pronto para entrar na imagem e na verdade ...

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