sexta-feira, maio 27, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Como seriam o País das Maravilhas e Alice 150 anos depois? Certamente mais violentos: ela faixa preta em karatê e a Wonderland um reino onde o castelo da Rainha é substituído por um cassino de onde comanda um esquema de rapto de seres humanos para que suas emoções sejam drenadas e transformadas em matéria-prima para a produção de drogas. Essa é a versão atualizada do clássico de Lewis Carroll escrita e dirigida por Nick Willing, numa minissérie em dois episódios para o canal por assinatura Syfy. Uma surpreendente combinação da distopia pós-moderna com uma clássica narrativa a partir da mitologia gnóstica.
A minissérie para TV “Alice” (2009) é mais uma adaptação de clássicos feita por Willing como na produção anterior “Tin Man” de 2007 (“Homem de Lata”, baseado no “Mágico de Oz”) e atualmente, em fase de pós-produção, a minissérie para TV “Neverland”, uma adaptação de Peter Pan.
A protagonista Alice de Willing (Caterina Scorsone) não é mais uma jovem garota inglesa, mas agora uma jovem na faixa dos 20 anos professora de karatê e que mora nos Estados Unidos. Tudo começa quando o seu namorado Jack Chase (Philip Winchester) é estranhamente sequestrado. Alice persegue os sequestradores até o interior de um escuro galpão abandonado até dar de encontro com um espelho, através do qual cai numa espécie de “wormhole” que a conduz até o País das Maravilhas.
Wonderland continua dominado pela maldosa Rainha de Copas (Kathy Bates), mas o esquema de dominação é bem diferente do descrito no original de Carroll (ameaças constantes de cortar as cabeças e o dragão Jabberwocky). Diferente do regime de terror do passado, agora a Rainha domina através da estratégia da sedução.
Com a ajuda de uma organização secreta (a “Sociedade do Coelho Branco”, um mix de Gestapo e SS nazista) sequestram seres humanos (“ostras” como eles denominam) no mundo real trazendo-os através do espelho/portal. Na Wonderland são mantidos prisioneiros em um gigantesco cassino em estado de semi-inconsciência e euforia em jogos em que todos sempre ganham. Mantidos nesse estado de delírio e euforia pelos prazeres proporcionados pela gratificação instantânea artificialmente criada, sentimentos, emoções e paixões são drenados para que os “carpinteiros” (os cientistas e técnicos laboratoriais) destilem a essência em frascos que se tornam a droga e moeda de troca para os súditos da rainha.
O sombrio e distópico País das Maravilhas
150 anos depois
Em entrevista Willing explicou a sua linha criativa na adaptação do clássico de Carroll (veja em "Alice's Caterina Scorsone and Nick Willing Interview"). Ele encontrou na personalidade da Rainha de Copas (impulsiva e imediatista) a ligação com o mundo contemporâneo. A Rainha descobrirá que, depois de 150 anos, o mundo real tornou-se igual a sua personagem: uma cultura consumista orientada pela busca obsessiva de prazer e gratificação instantânea. É o mesmo argumento do filme “Um Século em 43 Minutos” (Time After Time, 1979) onde Jack o Estripador foge da Inglaterra vitoriana através de uma máquina do tempo para descobrir, entusiasmado, que o mundo moderno tornou-se a sua imagem e semelhança.
Por isso, na nova versão de Willing a Rainha abandona o castelo para morar em um bizarro cassino retro (a melhor tradução do mundo contemporâneo) e deixa o dragão Jabberwocky vagando solitário pela floresta (a sua única aparição é desengonçada e patética).
À Sombra da lenda de Alice
O notável na “Alice” de Willing é que essa produção não se resume a uma mera adaptação, mas pretende ser uma continuação do clássico de Lewis Carroll. Em vários momentos, quando Alice é apresentada aos personagens de Wonderland, todos perguntam: essa é a Alice da lenda?
Se Lewis Carroll retratava a Wonderland como um espelho invertido do mundo adulto vitoriano (onde a lógica e a racionalidade eram viradas do avesso por meio do “non sense” e do surrealismo, denunciando a ilusão por trás da racionalidade vitoriana) aqui na Alice de Willing o espelho não tem o papel de inversão: é um portal, uma continuidade entre o mundo real e o ficcional. Em outras palavras, o mundo real humano superou todo surrealismo da ficção a tal ponto que a Rainha de Copas pretende, através do bizarro cassino que destila emoções humanas, imitar em seus domínios o fantástico mundo consumista das gratificações instantâneas. A ficção imita a realidade.
Por exemplo, o personagem do Chapeleiro (Andrew Lee Potts) não propõe enigmas, charadas ou tiradas metafísicas como o original. É pragmático, luta pela sobrevivência para que sua casa de chás sobreviva à guerra travada entre as forças de Resistência e os “engravatados” (a polícia da Rainha de Copas). Resolve ajudar Alice na sua busca pelo pai (um dos humanos sequestrados pela Rainha) por um motivo bem objetivo: “preciso de motivo para ajudar uma garota linda num vestido bem molhado?”
Por isso, a minissérie “Alice” possui o tom distópico, típico da ficção pós-moderna. No passado a ficção tendia ou para a utopia (busca por novas realidades) ou para a chamada “verdade parabólica”, isto é, a representação por meio de parábolas que, de forma invertida, tematizavam a realidade por meio da ironia, paródia, “non sense” etc. (como na “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll). Ao contrário, no pós-moderno os mundos ficcionais são apresentados como extensões da realidade (de forma hiperbólica, retro ou hiperreal), como se a realidade tivesse ultrapassado em muito a capacidade imaginativa ficcional.
Seres humanos como “ostras”
Como vimos em postagens anterioras (veja links abaixo), a saga de Alice de Carroll teve inspirações ocultistas e gnósticas, principalmente nas profundas associações da protagonista com o arquétipo de Sophia. Em Willing a conexão gnóstica torna-se explícita, principalmente quando mostra os humanos prisioneiros em Wonderland sendo apelidados de “ostras”. Por que “ostras”? Essa é a resposta que o Chapeleiro da para Alice:
Alice - Por que sou uma ostra? Isso? (apontando para uma tatuagem em seu braço) Chapeleiro - Isso não vai sair. Só pessoas do seu mundo ficam verdes [apontando para a tatuagem em Alice] quando queimadas pela luz ... É o jeito dos engravatados marcarem as caças. E eles os chamam de ostras por causa das pérolas cintilantes que vocês todos carregam por dentro.”
A Rainha de Copas: o Demiurgo que pretende
drenar as "pérolas" dos seres humanos
Essa é uma explícita simbologia gnóstica. Assim como no Gnosticismo onde cada um de nós traz, no coração, fragmentos da centelha de Luz original do Pleroma (a Plenitude, de onde todos se originaram antes de cair no exílio desse cosmos físico), os humanos prisioneiros em “Alice” trazem dentro de si as “pérolas” (sentimentos e paixões) tão apreciadas pela Rainha de Copas para destilar as drogas que mantém a ordem em seu reino.
Da mesma maneira o Demiurgo das narrativas gnósticas aprisiona os homens por meio de ilusões (as “gratificações instantâneas”) para extrair de nós os fragmentos dessa centelha de Luz que põem em movimento o cosmos físico.
Em “Alice” os humanos são aprisionados e mantidos em um mix de inconsciência, sono e euforia proporcionados pelas ilusões das “gratificações instantâneas” das roletas, carteados e caça-níqueis do bizarro cassino onde todos ganham. A protagonista Alice lutará para libertar os humanos desse estado de sonolência mediante a célebre exortação gnóstica: ACORDEM! Tal como o mito de Sophia que, através do ensinamento da gnose, procura retirar a humanidade do sono e da ignorância das ilusões e consolações criadas pelo Demiurgo para prolongar a prisão.
Portanto, a minissérie “Alice” de Nick Willing nos oferece uma surpreendente combinação de elementos pós-modernos e gnósticos: a atmosfera distópica do novo País das Maravilhas servindo como moldura para a clássica narrativa gnóstica onde um demiurgo que aprisiona a humanidade através de ilusões e o aeon Sophia tenta nos despertar por meio da gnose.
Ficha Técnica
Título: Alice
Direção: Nick Willing
Roteiro: Nick Willing
Elenco: Caterina Scorsone, Andrew Lee Potts, Kathy Bates, Matt Frewer, Philip Winchester
Produção: Reunion Pictures, Alice Productions e Studio Eight Productions
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Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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