quarta-feira, junho 08, 2011

Mister Maker: Um Sabor Gnóstico para as Crianças


Hit do canal infantil Discovery Kids, Mister Maker apresenta por trás das inovações narrativas um supreendente sabor gnóstico: simbolismos que remetem a uma nova sensibilidade infantil metalinguística. Na atualidade, as narrativas infantis adquirem cada vez mais conteúdos irônicos, conscientemente paródicos e reflexivos. As mitologias gnósticas parecem cair muito bem nesse universo.

Do nada surge Mister Maker (Phil Gallagher) em um fundo infinito branco. Ele se detém, pensa encolhendo os ombros e ... eureka!!! Uma idéia! Começa, então, a produzir diversos objetos em miniatura: sofás, prateleiras, mesas, janela, cortina, até construir uma pequena cenografia. Do alto observa, orgulhoso, a sua própria criação, com seus braços abertos envolvendo-a. De repente surge um efeito especial como uma poeira de estrelas e brilhos que envolve Mister Maker, trazendo-o para dentro da sua própria obra. A pequena cenografia transforma-se no cenário dentro do qual Mister Maker apresentará para a criançada suas invenções e trabalhos manuais.


Essa abertura do programa Mister Maker, do canal infantil Discovery Kids, tem uma simbologia sugestiva, no mínimo uma abertura inédita para um programa infantil desse gênero. Uma espécie de narrativa do gênesis é contada para sabermos de onde veio o universo comandado por Mister Maker.


Há um sabor gnóstico nessa simbologia. Ele é o Demiurgo (para os gnósticos forma híbrida de consciência emanada dos planos superiores, criadora do cosmos material como uma cópia imperfeita da plenitude do Pleroma), o artífice da cenografia e objetos e personagens do programa. Ele repentinamente surge em um fundo infinito (ele não foi criado mas “emanado”, segundo a mitologia gnóstica).

Assim como o universo físico criado pelo demiurgo é imperfeito (caótico, finito e fragmentado) por ser fruto de um acidente cósmico, o universo de Mister Maker é acidentado, desorganizado e sujeito a rebeliões (como a das “gavetas malucas”, protestanto por estarem cheias). Claro, tudo isso para o divertimento das crianças.

Também é simbolicamente sugestivo o quadro “minuto da arte” onde Mister Maker corre contra o relógio para construir uma das suas invenções. Depois de um minuto, Mister Maker volta o tempo (ou a “fita”) para explicar os passos, agora de forma lenta e compreensível. O tempo e o devir são a falha principal do cosmo criado pelo Demiurgo:
"As escrituras gnósticas dizem que o Demiurgo projetou ciclos de tempo como uma imitação pobre da eternidade atemporal. A ordem, a grandeza e a legitimidade do cosmos são adulteradas; e mais do que provável, sob a aparência de ordem imutável e da progressão casual o cosmos é caótico e casual" (HOELLER, Stephen. Gnosticismo: a tradição oculta, RJ: Nova Era, 2005, p. 201)
Embora tenha criado o universo, ele é escravo do tempo e do devir. Situação irônica para as crianças: o criador de tudo correndo contra o tempo, sempre ironizado por um cuco maluco que sai do relógio. No final de cada programa, Mister maker fala: “minha hora de fazer arte acabou, mas a sua está apenas começando”. Correr contra o tempo e o tempo como devir, finitude, limite. Mister Maker quer ensinar mais do que como fazer arte e brinquedos: quer demonstrar para as crianças a fatalidade do tempo e a finitude da sua criação. 

O platônico Mundo das Formas

A parte das formas geométricas que criam desenhos também chama a atenção. Há um simbolismo platônico: a precessão das formas perfeitas sobre o mundo material. As formas roncam no alto da prateleira do Mister Maker, que acorda-as. Então, elas pulam do alto (o “Mundo das Formas” platônico) caem numa vertiginosa velocidade (sublinhado por efeitos especiais com os gritos das formas amplificados em efeitos dobrados e ecos). No chão elas dançam e se identificam. No final, uma das formas a identifica novamente, ilumina-se e formam uma figura com sua forma,ou tem que contar quantas vezes a forma é apresentada duas vezes e depois ascendem, de volta para o nível superior das prateleiras.

Jean Baudrillard falaria sobre a precessão dos simulacros: as formas perfeitas antecedem a realidade. Estão apenas à espera de que o criador/demiurgo as desperte para que realizem o “big bang”, o surgimento das formas concretas no cosmos físico.

Gênesis, criação, emanação, demiurgos, tudo isso para crianças? É claro que não estamos querendo com isso comprovar a existência de uma conspiração gnóstica para manipular crianças e pais desatentos. Mas, se Mister Maker lida com simbolismos (ou arquétipos) com um sabor gnóstico inédito para um programa infantil desse gênero (trabalhos manuais, artes e brinquedos) isso talvez seja o indicador de uma mudança de sensibilidade da nova geração: o predomínio de uma consciência “meta”. Afinal, Mister Maker não faz apenas arte e brinquedos: ele é o artífice da próprio universo por onde se movimenta (ao final, coloca todo o cenário de volta para uma caixa e tudo volta a ser fundo infinito).

Do Épico ao Metanarrativo

Os conteúdos infantis na mídia deixam de ter uma narrativa épica (centrada na ação e heroísmo – cavaleiros, bruxas, piratas, trens a vapor etc.) para adquirirem uma narrativa metalinguística, reflexiva, irônica. Esse fenômeno já foi apontado pelo historiador inglês Peter Burke. Para ele personagens infantis contemporâneos como o Capitão Cueca misturam aventura tradicionais com ironia e metalinguagem:
“(...) os truques com os quais se divertem, como trocar as letras no cardápio do almoço na cantina da escola, devem ser tão velhos quanto as próprias cantinas das escolas. Sob outros aspectos, entretanto, as histórias não são nem um pouco tradicionais. Podem até ser descritas como pós-modernas, graças não apenas às referências recorrentes a universos alternativos, mas também, especialmente, ao amor do autor pela paródia e especialmente pelas autorreferências. O herói, Capitão Cueca, é uma paródia de Super-Homem -um sujeito mais gorducho do que atlético, que canta loas às cuecas de algodão enquanto voa em suas missões para submeter os vilões à justiça” O Capitão também é apresentado ao leitor como criação de George e Harold, que passam boa parte de seu tempo, tanto em casa quanto na escola, escrevendo e desenhando tiras de quadrinhos sobre ele. Suas tiras são reproduzidas na série, de modo que os leitores se veem sugados para dentro de um mundo de quadrinhos dentro de um livro de quadrinhos. De maneira realmente pós-moderna, a divisão entre ficção e realidade vai perdendo nitidez à medida que as histórias se desenrolam”. (BURKE, Peter. “Crianças Pós Modernas” em http://blog.controversia.com.br/2009/03/28/crianas-ps-modernas/)
 “Pink Dink Doo” e “Charlie e Lola” são animações infantis que também são exemplos dessa mudança de sensibilidade. Pink cria estórias para o seu irmão caçula, pontuando e criando a todo instante meta-narrativas. Na segunda parte dos episódios, há uma espécie de quizz show com questões sobre a estória inventada por Pink. Paródia consciente e autorreferência permeiam os episódios.

De volta a Mister Maker, parece que as narrativas gnósticas parecem cair muito bem nessa ambiente “meta” da cultura infantil pós-moderna. Afinal, pensar que nosso universo não é uma realidade estável e perene, mas uma construção artificial que não existia desde sempre, obra de um demiurgo desajeitado e imperfeito, parece aguçar essa sensibilidade pós-moderna.

Ficha Técnica


  • Título: Mister Maker
  • Direção: Peter Eyre, James Morgan
  • Roteiro: Driana Jones, Phil Gallagher
  • Elenco: Phil Gallangher (apresentador)
  • Produção: The Foundation
  • Distribuição: Zodiac Rights, BBC, Discovery Kids
  • País: Inglaterra
  • Ano: 2007-2009

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