domingo, maio 21, 2017

O terror racial do filme "Corra!"


A jovem branca vai apresentar o seu namorado negro para os seus pais, num evidente prenúncio de tensões raciais. Diversos filmes já exploraram esse tema. Mas nenhum como “Corra!” (Get Out, 2017) – afinal, estamos no século XXI e a crítica ao racismo e intolerância está no centro dos debates culturais. Agora, o jovem negro conhecerá pais liberais, esclarecidos e que votaram em Obama. Mas ainda assim há algo de errado e perturbador naquela família de típicos liberais democratas. “Corra!” é a grande novidade dentro do subgênero do terror racial: a combinação de elementos gnósticos (o controle da mente e o esquecimento induzidos pelas tecnologias do espírito) com a crítica social – aqueles que supostamente defendem a democracia racial, são os mesmos que cinicamente reproduzem a desigualdade.

Filmes sobre racismo possuem uma conotação social e humanística. São sempre veículos para mensagens liberais sobre a necessidade da tolerância, a importância da diversidade e do respeito. Mas em geral o tom é exatamente esse: liberal – o outro, vítima do racismo e intolerância, é sempre visto por um olhar abstrato da compaixão.

A vítima do racismo nunca é visto como consequência de uma estrutura política e econômica concreta que reproduz a desigualdade, mas apenas como vítima da ignorância e teimosia de pessoas que ainda não perceberam que estamos no século XXI.

Principalmente filmes norte-americanos onde sabemos que o máximo em crítica social e econômica que as mentes bem pensantes daquele país chegam é pela tradição liberal – a igualdade e liberdade muito mais como um pressuposto moral e cultural do que a necessidade da construção de um sistema econômico de igualdade de oportunidades concretas no dia-a-dia.

Os oito anos do primeiro presidente negro da história dos EUA, Barack Obama, saudados como a concretização dos princípios liberais de liberdade e igualdade, foi a mostra de até onde vai a abstração da crítica liberal – um presidente negro em um país no qual os conflitos raciais e intolerância não só persistiram como cresceram.

O terror racial


Corra! (Get Out, 2017), do estreante diretor Jordan Peele (também ator e comediante) quer mostrar esses limites e contradições da elite liberal através de um interessante subgênero dentro do horror: o terror racial.

Desde o clássico A Noite dos Mortos Vivos de George Romero (1968, incisiva crítica ao racismo através da metáfora dos zumbis) até chegarmos ao recente A Chave Mestra (2005, sobre invasões de corpos por meio da magia negra), há no underground cinematográfico uma certa tradição de filmes que combinam o racismo com o horror.  

Mas em Corra!, Peele faz uma surpreendente combinação de tons que hora passa pela explícita crítica social (os vilões são liberais e eleitores de Obama), hora pelo humor (o clássico alívio cômico do amigo do herói engraçado) e hora por uma perturbadora narrativa em “slow-burn” (a lenta revelação de pistas para o espectador) que lembra o clássico O Bebê de Rosemary de Polanski.

E tudo isso com conotações simbólicas e mesmo gnósticas: a condição do negro como um estrangeiro em um mundo que quer submetê-lo ao esquecimento de si mesmo, para ser melhor controlado por uma elite que supostamente quer libertá-lo do racismo.

Para além das diversas camadas narrativas do filme (social, política e horror), Corra! É essencialmente sobre o sentimento inquietante de você sentir que não pertence a lugar algum. Peele utiliza a abordagem racial e sátira à elite liberal norte-americana como veículos para uma discussão gnóstica: o racismo como a faceta mais visível de uma ordem que quer submeter a todos o esquecimento de si mesmo.


O Filme


Apesar da narrativa slow-burn que dará o tom do filme, Corra! começa em alta rotação: vemos um jovem negro caminhado por uma rua de classe média à noite, perdido, e brincando com a situação conversando com o seu amigo ao celular. As ruas estão vazias, e um carro começa a segui-lo. O jovem pressente algo errado e tenta despistá-lo, mas alguém já saiu desse carro para ataca-lo e arrastá-lo para dentro daquele veículo.

Corta para os protagonistas do filme: Chris (Daniel Kaluuya) e sua namorada Rose (Allison Williams) se preparando para apresenta-lo a seus pais. Rose diz que ainda não contou a seus pais que ele é negro. Chris desconversa, mas ele é cauteloso. Seu amigo, também negro (um histérico e paranoico policial de segurança privada) aconselha-o a não ir. Mas Chris está apaixonado.

A partir do momento que ele chega à casa dos pais de Rose, sente algo perturbador no ar. Claro, os pais Dean Armitage (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener) parecem bastante amigáveis. Mas, há algo de exagerado, como se fizessem tudo para impressiona-lo.

Os indícios em slow-burn começam a ser jogados: Dean é neurocirurgião e Missy é psiquiatra hipnoterapeuta. Todos muito cultos, liberais e eleitores de Obama, como fazem questão de demonstrar.


Mas os empregados são negros (Dean se desculpa, dizendo que foi herança do pai): o jardineiro chamado Walter e a governanta chamada Georgina têm comportamentos estranhos, como fossem as pessoas sem emoções tomadas pelos aliens no filme Invasores de Corpos (Body Snatchers, 1956).

Mas, como se costuma fazer em situações de tensão racial, Chris tenta desculpar o comportamento deles: afinal, está com uma mulher branca e talvez Walter e Georgina devam estar com ciúmes.

O ponto de virada na trama é o momento em que Missy consegue hipnotizar Chris apenas com os movimentos da colher em uma xícara de chá: Chris parece que mergulha num poço escuro – ela chama isso de “afundar no esquecimento”. Ele acorda na sua cama e acha que tudo foi um pesadelo. Mas percebe que, por algum motivo, parece ter sido condicionado a parar de fumar.

Definitivamente, há algo estranho muito além do que a tensão racial de um homem negro que vai visitar os pais da namorada branca. O clímax é o encontro com os vários parentes da família, em um bingo promovido pelos pais de Rose. Estranhamente, todos aqueles festeiros brancos começam a elogiar os dons físicos e a abençoada herança genética de Chris. Há algum interesse subterrâneo daquelas pessoas por ele. E tudo o que começa a pensar é  fugir dali.

O negro como estrangeiroaviso de spoilers à frente!


Dentro da cinematografia arquetípica contemporânea, Chris faz o típico personagem do “Estrangeiro”: embora socialmente bem resolvido, sem introjetar tensões raciais por estar apaixonado por uma mulher branca com pais intelectualmente esclarecidos que aceitam o relacionamento da filha, o protagonista mesmo assim sente-se um estranho por todos os lugares que transita.

E ainda os pais de Rose, um neurocirurgião e uma hipnoterapeuta, são os típicos demiurgos que dominam aquilo que chamamos de “tecnologias do espírito” – tecnociências voltadas ao controle e manipulação da mente. Por isso, Corra! tem os ingredientes principais de uma narrativa gnóstica.

A família dos pais de Rose, os Armitage, desenvolveram uma técnica insólita que combina neurocirurgia e técnicas de hipnose para buscar a imortalidade. Pretende jogar as vítimas (todos os amantes de Rose) numa espécie de abismo do esquecimento – enquanto o ego é jogado numa espécie de abismo psíquico, o corpo transforma-se em hospedeiro para o espírito do membro mais velho da família, garantindo a imortalidade dos Armitage. 

Quem assistiu ao terror A Chave Mestra perceberá que o argumento é muito semelhante – a magia negra é substituída pelas neurociências.

Mas a grande virtude de Corra! É combinar elementos gnósticos com a crítica social. A certa altura, perplexo e aterrorizado Chris pergunta: “mas por que negros?”. E ouve a reposta mais cínica possível que sintetiza a indiferença liberal: “por que está na moda!”. A democracia racial não é uma questão política ou econômica, mas restringe-se aos debates do mercado cultural.

Os membros da família Armitage são intelectuais esclarecidos que pretendem se perpetuar como elite, pulando suas almas de corpo para corpo. E agora, com a discussão sobre racismo e intolerância dominando a mídia e os debates culturais, preferem corpos negros.

E como as elites sempre se  perpetuaram no poder ao longo da História? Conquistando espíritos e corpos, dominando mentes e explorando corpos através do trabalho.

Corra! É a grande novidade dentro do subgênero terror racial: uma crítica gnóstica não apenas ao racismo, mas uma denúncia do cinismo daqueles que supostamente defendem a igualdade e condenam o racismo.

 

Ficha Técnica

Título: Corra!
Diretor: Jordan Peele
Roteiro:  Jordan Peele
Elenco:  Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener
Produção: Blumhouse Productions, Monkeypaw Productions
Distribuição: United International Pictures (UIP), Netflix
Ano: 2017
País: EUA

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