É lugar comum se dizer que na guerra a primeira vítima é a verdade. Mas ainda não foi dada a notícia de uma outra vítima insuspeita: a própria realidade.
Insuspeita porque toda guerra conta com um forte efeito de realidade que a torna verossímil no noticiário: mortes, sangue, explosões e corpos feridos e lacerados diante das câmeras. Essas tragédias humanas dão esse poderoso efeito de verossimilhança: se há mortos e feridos, então é verdade! É realidade!
Mas como os leitores desse Cinegnose já devem ter percebido, para esse humilde blogueiro há mais conexões e reversibilidades entre ficção e realidade do que podemos imaginar. Sejam elas sincromísticas (coincidências significativas), por imitação (efeito copycat), intencionais (engenharia de opinião) ou simulação (a hipótese gnóstica da Matrix).
A eclosão da guerra entre Israel e o grupo Hamas, tornando a Faixa de Gaza numa prisão a céu aberto à espera da conflagração de uma histórica crise humanitária, parece mais uma vez mostrar as relações reversíveis entre ficção e realidade: a utilização de narrativas ficcionais para tornar a realidade paradoxalmente mais “realista” – aquilo que este Cinegnose vem definindo como canastrice política: acontecimentos políticos que se tornam verossímeis porque emulam narrativas ficcionais.
Por exemplo, no conflito Israel/Hamas, mais uma vez surge a Netflix como uma presença recorrente em crises políticas como fosse uma espécie de soft power de guerra híbrida.
Numa rápida retrospectiva, a presença de duas produções Netflix durante a guerra híbrida brasileira que culminou com o impeachment de 2016 e a vitória eleitoral do extremismo de direita em 2018 foram significativas: House of Cards e a série brasileira O Mecanismo de José Padilha.
Ao explorar os tradicionais clichês hollywoodianos (o mito do Mr. President, o mito do Príncipe Maquiavélico, o mito do “Estado Sou Eu!” e o retrato dos jornalistas como um bando de patifes sem esperanças – sobre os mitos da série clique aqui) a série caiu como uma luva na opinião pública naquele momento – o crescimento da rejeição a política, cujo reflexo foi a vitória eleitoral do extremismo de direita com o discurso “antissistema”.
Em 2015, a grande mídia enchia a bola do vice Michel Temer atribuindo a ele a esperança de uma solução para a crise política quando assumisse o lugar da presidenta Dilma. Parecia o roteiro das primeiras temporadas de House Of Cards.
Também em 2015, numa entrevista dada à BBC Brasil, o ministro do STF Gilmar Mendes (à época um inimigo político do PT) dizia que “a corrupção e a disputa pelo poder a qualquer custo exibido na série House of Cards se repetem em Brasília”.
No ano eleitoral de 2018, a Netflix lançava a série O Mecanismo, uma dramatização da Operação Lava Jato para dar a ela a chancela ficcional da prisão do candidato favorito nas pesquisas e eleitorais daquele ano: Lula.
Zelensky e Hamas na Netflix
Em 2019, a vitória do ator e comediante Volodymir Zelensky nas eleições da Ucrânia foi o ato final da construção de um personagem que se projetou da ficção para a realidade: o protagonista da série Netflix O Servo do Povo – na ficção, ele era presidente do país desde 2015. Para depois a realidade confirmar o sucesso da série. A realidade torna-se canastrona, porque emula a ficção. Por isso, aos olhos do distinto público acostumado com o universo da plataforma de streaming, a realidade política torna-se verossímil.
Mais uma vez, com a série Fauda (considerado o “Tropa de Elite de Israel”), a Netflix reaparece com o modus operandi da ficção que cria efeitos de realidade. O ator Lior Raz, ex-agente especial infiltrado na Cisjordânia palestina, faz o protagonista da série: também um ex-agente especial aposentado que deve voltar ao batente para enfrentar novos inimigos... o HAMAS.
E com a eclosão da guerra Israel/Hamas, Lior Raz volta ao mundo real: tal qual o personagem da ficção, deve retornar ao Exército, para combater... o HAMAS!
Por que essa necessidade funcional da canastrice política, o imperativo do apagamento das fronteiras entre ficção e realidade? Precessão das imagens?
Da fatalidade histórica à simulação
A questão é que os próprios eventos reais estão abandonando o campo da fatalidade histórica para ingressar no campo simbólico simulado dos pseudo-eventos, não-acontecimentos, false flags, inside Jobs etc.
A maior evidência disso é a hegemonia do fenômeno do terrorismo no cenário político. Guerras e revoluções como estratégias para conquistas territoriais ou tomada do Poder cada vez mais desaparecem ou apenas viram nostálgicos eventos fora da curva. Em si mesmo, o terrorismo é um ato propagandístico, mas não num sentido ideológico (palavras de ordem ou doutrinação ideológica) mas, no fundo, um jogo de cena para tomar conta da agenda midiática dos acontecimentos.
(a) Todo ato terrorista não visa a derrubada de um governo ou a conquista de um Estado. É um ato propagandístico de provocação;
(b) O terrorismo é um ato de provocação voltado para as ondas concêntricas dos meios de comunicação. Não são mais acontecimentos históricos, mas agora mediacêntricos, transpolíticos (Jean Baudrillard);
(c) Como evento mediacêntrico, consegue repercussão imediata no contínuo midiático atmosférico. Portanto, a resposta aos atentados terroristas só pode ser também terrorista – atos tão espetaculares quanto a provocação inicial.
Os analistas da mídia corporativa insistem em dizer que os ataques do Hamas em Israel com bombas e assassinatos indiscriminado de civis foi o “11 de setembro” do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. E estão corretos! Só não completam a comparação ao dizerem também que os eventos atuais também estão cercados de todas as dúvidas justificadas que cercaram os atentados de 2001: false flags? Inside job?
Hamas foi criado por Israel
Como foi possível, da faixa exígua da área de Gaza, partir um ataque em massa contra um Estado que dispõe de extraordinários recursos de detecção que compõem o chamado Domo de Ferro: o ELINT (coleta informações eletromagnéticas, como sinais de rádio, radar e infravermelho, usadas para identificar alvos, rastrear movimentos e avaliar a ameaça) e HUMINT (coleta informações humanas, como relatórios de inteligência, entrevistas e análise de mídia, usadas para entender as intenções e capacidades do adversário).
E mais: também foi noticiado que Israel ignorou os avisos da autoridade de inteligência do Egito com alertas sobre um planejamento significativo do Hamas em Gaza antes do início das ações no último sábado (dia 7).
Pelo ponto de vista do timing das ações e o cui bono (a quem beneficia os acontecimentos?) surgem a primeira dúvida justificada: naquele final de semana ocorreria uma manifestação monstro contra as intenções de Netanyahu reformar o Judiciário a seu favor – ocultar os crescentes escândalos contra sua administração. O país está politicamente dividido com gigantescas manifestações de rua desde o início desse ano.
Após os ataques, Netanyahu coloca em suspensão a crise política com a oposição se unindo a ele em um gabinete de guerra, com a convocação imediata dos reservistas – muitos deles participavam das manifestações contra o governo, ao lado de parte das Forças Armadas e setores da Inteligência.
Segunda dúvida justificada: a própria existência do Hamas – acrônomo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”. Israel ajudou a cria-lo: conseguiu transformar um bando de islâmicos palestinos marginais no final da década de 1970 em um dos grupos militantes terroristas mais notórios do mundo.
Uma evidência é a fala do Brig. Gen. Yitzhak Segev, que foi o governador militar israelense em Gaza no início da década de 1980. Segev disse a um repórter do New York Times que ajudou a financiar o movimento islâmico palestino para criar uma oposição aos secularistas e esquerdistas da Organização de Libertação da Palestina e do partido Fatah, liderado por Yasser Arafat – clique aqui.
“O governo israelense me deu um orçamento”, confessou o general de brigada aposentado. “E o governo militar deu para as mesquitas”, acrescentou.
Avner Cohen, ex-funcionário de assuntos religiosos israelenses que trabalhou em Gaza por mais de duas décadas confirmou ao Wall Street Journal em 2009: “Hamas, para meu grande pesar, é a criação de Israel”. Na época, alertou: “Sugiro concentrar nossos esforços em encontrar maneiras de acabar com esse monstro antes que essa realidade pule em nossa cara”.
A invenção do terrorismo islâmico
E acabou pulando. Mas não sem antes ter prestado um grande serviço ideológico ao atlanticismo dos falcões da guerra neocons dos EUA: a invenção dos terroristas islâmicos, supostos fundamentalistas fanáticos kamikazes, capazes de se matar por Alá. E levando junto civis inocentes.
Ter um oponente como o Fatah (Movimento de Libertação Nacional da Palestina), secular, laico, com tendências marxistas, é o que menos interessa ao pensamento dos neocons e a sua retórica do “choque de civilizações” – retórica agradável à geopolítica de contos de fadas da grande mídia internacional, que divide o mundo entre mocinhos e bandidos; Ocidente democrático vs. Oriente fanático religioso etc.
Portanto, o terrorismo do Hamas (assim como qualquer ato terrorista na transpolítica do século XXI) é muito conveniente:
(a) ganha Netanyahu, porém numa cartada arriscada: no futuro, ser responsabilizado pela falha no “Domo de Ferro” e/ou ver a escalada no conflito se transformando numa guerra regional envolvendo outros desafetos de Israel;
(b) ganha os neoconservadores americanos e a ideologia do atlanticismo: a confirmação do destino manifesto dos EUA em promover a democracia e o intervencionismo internacional, incluindo a busca da paz através da força.
Por isso, torna-se uma dúvida justificada a hipótese de false flag e inside job no ataque terrorista do Hamas.
Um dos críticos dessa “teoria conspiratória” é o analista político Andrey Korybko:
A teoria da conspiração especulando que Netanyahu sabia de tudo isso com antecedência, mas ainda assim deixou acontecer, não resiste ao escrutínio. (...) É praticamente baseada apenas na falsa percepção de que os serviços de inteligência de Israel são onipotentes. No entanto, eles são administrados por humanos e, portanto, são naturalmente imperfeitos, mas há aqueles que conferem poder divino ao Mossad – clique aqui.
Ora, mas é justamente esse fator demasiado humano apontado por Korybko que sustenta as dúvidas justificadas descritas acima. Dispositivos eletrônicos e digitais de monitoramento, rastreio e vigilância são neutros e, por si só, apenas fornecem dados para os técnicos humanos que os operam, para os seus gestores decidirem repassar esses dados para os postos altos da hierarquia.
A dúvida é: por que o alto comando negligenciou esses dados, da própria inteligência e do Egito?
Portanto, graças ao Netflix e suas narrativas ficcionais canastronas, essas questões passam longe da atenção do distinto público. Afinal, se a realidade parece um roteiro de uma boa série da plataforma, então é verdade.