“Eu posso lidar com notícias grandes e pequenas. Se não houver notícia, saio na rua e mordo um cachorro”, diz cinicamente Kirk Douglas, numa performance de gelar o sangue do espectador. Mais de meio século depois, “A Montanha dos 7 Abutres” (Ace in the Hole, 1951) continua afiado como um punhal. Um documento histórico de um momento em que o mercado de notícias estava transformando a face da sociedade, rivalizando com a própria indústria do entretenimento. O momento em que o jornalismo corporativo deixava de ser mera testemunha ocular dos fatos para ser a dona ou até criadora dos fatos. Kirk Douglas é um jornalista amargurado, expulso dos grandes centros e que vê num acidente em uma mina perdida no meio do deserto a chance de reavivar a carreira. Rapidamente a situação se torna um circo midiático sujo, podre e canalha, antecipando em décadas aquilo que apenas seria potencializado pelas novas tecnologias e redes sociais.
Setenta e dois anos depois, A Montanha dos 7 Abutres (Ace in the Hole, 1951), de Billy Wilder, continua tão preciso e cortante quanto no seu tempo: sujo, canalha e podre! Um retrato cínico tanto do jornalismo quanto do público, sedento por voyeurismo e tragédias alheias.
No filme fica claro o quanto dispositivos móveis e redes sociais no século XXI abriram a caixa de Pandora, aumentando exponencialmente aquilo que Wilder retrata de forma selvagem – em A Montanha dos 7 Abutres não há sequer uma passagem suave, sentimental ou até mesmo um alívio cômico. Por isso, o filme pagou o seu preço com uma série de dificuldades no seu lançamento.
Wilder chegou à A Montanha dos 7 Abutres logo após Sunset Boulevard (1950), que teve 11 indicações ao Oscar e ganhou três. Conhecido elo seu cinismo mordaz e linhas de diálogos duras em obras-primas como Double Indemnity (1944) e The Lost Weekend (1945), Wilder se superou com A Montanha dos 7 Abutres. O retrato severo do filme sobre o circo da mídia americana chocou os críticos e repeliu o público. Foi um fracasso no primeiro lançamento para, depois, conquistar festivais europeus nos quais foi renomeado como O Grande Carnaval. Foi tentado um relançamento com o novo título, mas apenas deu continuidade ao insucesso de público.
Tanto tempo dois, o filme não envelheceu – não há um plano de câmera desperdiçado, tudo parece ser milimetricamente cronometrado e cada linha de diálogo é um soco perfeito: “Eu posso lidar com notícias grandes e pequenas. Se não houver notícia, saio na rua e mordo um cachorro”, provoca o protagonista, o jornalista Charles Tatum, feito por Kirk Douglas no seu papel mais selvagem no cinema. Acostumado a interpretar heróis e protagonizar comédias, aqui ele faz um repórter que confunde habilidade com impiedade, com seu rosto vincado em desprezo e amargura.
Essa frase de Tatum (após chegar na desértica Albuquerque, Novo México, sem emprego e perspectivas), autoelogiando-se na tentativa de arrumar um trabalho no jornal local, é a chave de compreensão do filme. Depois de uma série de problemas envolvendo calúnias, bebidas e adultério, Tatum foi demitido da grande imprensa de Nova York e banido pelo mainstream jornalístico. Mas carrega com ele o DNA do mercado de notícias dos grandes centros dos EUA: o jornalista não se limita a relatar acontecimentos. Na falta deles, ele deve criar as oportunidades.
Essa é a primeira camada simbólica do filme: Tatum chega na pequena Albuquerque, onde nada acontece. O deserto é o contraponto à Nova York que expulsou Tatum. Para completar a imobilidade, Tatum chega com seu carro rebocado, enquanto lê o jornal local. Ele está no exílio da “Sibéria escaldante”, como ele próprio define a sua situação.
Com uma amargura ocultada por uma aparência de confiança empreendedora, Tatum se confronta com uma peça de tapeçaria na parede da redação do jornal que diz: “Fale a verdade”. Tatum percebe que tem um desafio e tanto: falar a verdade é render-se ao imobilismo – nada acontece naquele lugar. A não ser concursos de caças a cascavéis. Resignadamente terá que cobrir um deles, tendo ao seu lado um jovem fotógrafo idealista recém-formado em jornalismo chamado Herbie (Robert Arthur) e que acredita piamente nos dizeres daquela peça de tapeçaria.
A única forma de Tatum escapar da “Sibéria escaldante” é inoculando a peste dos mercados de notícias dos grandes centros urbanos naquele lugar remoto: encontrar algum tipo de tragédia pessoal que possa alcançar o noticiário nacional – afinal, como afirma cinicamente Tatum, “falar de que milhares morreram, o público logo esquece. Com um homem é diferente: logo todos vão querer saber sobre ele”. Tatum afirma: “notícias ruins vendem mais!”.
Ele só precisa encontrar o “gancho” certo para poder “sair com estilo” do exílio.
O Filme
No meio do caminho para o concurso de cascavéis, Tatum e Herbie param para abastecer no deserto, em um posto com uma pequena loja de relíquias indígenas para descobrirem que o proprietário está preso no desabamento de uma antiga mina de prata local. Farejando uma notícia em potencial, Tatum esquece das cascavéis e entra no túnel da mina para falar com Leo Minosa (Richard Benedict), cujas pernas estão presas sob camadas de rochas e escoras de madeira.
Tatum sai da caverna e tem uma epifania midiática: essencialmente ele deve conseguir a exclusividade da história, repercuti-la na mídia até chegar ao noticiário nacional, arrancar o que puder do acontecimento para ganhar uma notoriedade renovada. E conseguir de volta a fama e dinheiro no antigo emprego em Nova York.
Mas ele tem no seu caminho um xerife corrupto e um engenheiro especialista em mineração – Leo poderia ser salvo em questão de horas, bastando colocar o escoramento correto no túnel da montanha, a “Montanha dos 7 Abutres” – um antigo cemitério indígena no qual estão enterradas relíquias com os mortos. Leo Minosa dá o gancho perfeito para Tatum: ele teme ter sido vítima de alguma maldição indígena por profanar túmulos e busca de peças para vender aos turistas. “A Maldição da Montanha dos 7 Abutres” é o “lead” perfeito para uma matéria sensacionalista.
Aqui entramos na segunda camada simbólica do filme. O pequeno comércio de Leo encontra um paralelo na função do próprio Tatum. Enquanto a atividade de Leo demanda uma profanação, a invasão no espaço do cemitério sagrado indígena, da mesma maneira Tatum quer invadir cada vez mais a privacidade da vida de Leo (“cavar mais fundo”, diz ele) para encontrar elementos de uma história que mereça um prêmio Pulitzer. Tanto o comerciante quanto o jornalista mantêm uma relação utilitária e oportunista com o produto cultural – do vaso indígena à notícia.
Um filme noir no deserto
Mas no filme, não temos uma mera invasão de privacidade. Tatum deixa de ser uma mera testemunha da história para ser o dono dela: ele manipula o xerife local corrupto, Guz Kretzer (Ray Teal), que busca a carreira política. Tatum promete transformá-lo em herói. Em troca, o xerife deve manter os jornalistas concorrentes longe da montanha. Apenas Tatum pode contatar Leo e sua esposa, Lorraine (Jan Sterling).
Uma esposa desnaturada que, na primeira oportunidade, rouba dinheiro do caixa da loja para tentar fugir dali. Aos tapas, Tatum a mantém no local, sob a promessa que também ela se tornará heroína... e rica – um circo midiático se forma no entorno da montanha. Um comércio em expansão, com turistas, imprensa, artistas fazendo shows ao vivo e o bar, do outrora abandonado posto de gasolina no deserto, lotado.
Numa espécie de Woodstock sensacionalista e macabra – Leo está morrendo, mas Tatum opta pela técnica de resgate mais demorada (escavadeiras que tentam cavar do topo da montanha) para sincronizar o tempo do acontecimento ao tempo midiático. O show tem que continuar para a notícia alcançar a repercussão nacional – e quem sabe, internacional.
Billy Wilder constrói uma típica narrativa de um filme noir. Porém, com requintes de podridão e canalhice impiedosas. A performance de Kirk Douglas é de gelar o sangue. O auge é a cena com Lorraine: ela está tão feliz com o primeiro milhar de dólares na caixa registradora do bar, graças a todo o circo midiático, que tenta agradecer criando uma cena romântica com Tatum. Que responde com dois tapas na cara de Lorraine, que começa a chorar. “Pronto! É assim que eu quero que você fique... a esposa chorando pelo seu marido...”.
No clássico filme noir ninguém presta, e todos são suspeitos pelo crime. Mas em A Montanha dos 7 Abutres chegamos ao paroxismo de um estranho noir: não há névoas, chuva ou sombras, mas o sol escaldante e o brilho intenso do deserto (numa bela fotografia em preto e branco), com Wilder narrando um crime em processo, no qual todos são culpados. Uns por homicídio culposo... outros por dolo explícito.
Os diálogos cortantes como uma lâmina ainda têm toda força mais de meio século depois. Isso porque o que A Montanhas dos 7 Abutres figura um momento em que o mercado das notícias estava deixando de ser uma mera testemunha ocular da História: se não há notícia, o repórter deve ir para a rua e morder um cachorro, isto é, deve criar um acontecimento. Nem que seja ao custo de vidas.
Isso em pleno pós-guerra. Enquanto os EUA criavam a sociedade de consumo e o sonho americano na mídia impressa e eletrônica, Billy Wilder jogava na cara de todos a América do futuro. Por isso A Montanha dos 7 Abutres permanece tão atual: as novas tecnologias apenas potencializaram as mazelas do mercado de notícias e do voyeurismo da audiência: a sujeira, a canalhice e a podridão.
Ficha Técnica |
Título: A Montanha dos 7 Abutres |
Criador: Billy Wilder |
Roteiro: Billy Wilder, Lesser Samuels, Walter Newman |
Elenco: Kirk Douglas, Jan Sterling, Robert Arthur, Ray Teal, Richard Benedict |
Produção: Paramount Pictures |
Distribuição: The Criterion Collection (DVD) |
Ano: 1951 |
País: EUA |