terça-feira, março 15, 2022

Em 'The Seed' o horror cósmico invade a bolha virtual dos influenciadores digitais


Se em “Não Olhe Para Cima” a humanidade, fechada nas bolhas virtuais das mídias sociais, ficava indiferente a um asteroide em rota de colisão com a Terra, no terror sci-fi “The Seed” (2021) influenciadoras digitais veem num alien que cai do céu apenas um conteúdo para aumentar engajamento e monetização nas redes sociais. Três amigas vão passar o final de semana regado a bebidas e drogas em um rancho no meio do deserto do Mojave para assistir a uma rara chuva de meteoros. Mas o que até então era uma comédia de terror leve sobre adolescentes ricas e insípidas em férias de verão, de repente se transforma em uma mistura de alucinação alienígena erótica e horror corporal ao melhor estilo do horror cósmico do escritor gótico norte-americano HP Lovecraft. 

Uma das primeiras coisas que aprendemos no gênero ficção científica é que as chuvas de meteoros ou aparições de cometas nos céus nunca são um bom sinal – talvez, o atavismo dos nossos antepassados que viam nesses objetos celestes arautos de pestes, guerras etc. Principalmente quando são inesperados. Especialmente quando um desses objetos atinge o chão, perto de onde você está ou mora.

E na cinematografia do século XXI esses objetos que caem na Terra só poderiam trazer todo o horror cósmico no melhor estilo do escritor gótico norte-americano HP Lovecraft (1890-1937). Como observamos em postagem anterior, o cinema desse século está simplesmente fascinado pelo escritor de horrores indescritíveis de monstruosidades híbridas ou pós-humanas (clique aqui) – 74% das adaptações das obras do escritor estão no século XXI. Lovecraft estava à frente do seu tempo, antecipando a cineteratologia do final de século XX e começo desse século: a sensibilidade por “monstros moles”, informes, metamórfico.

The Seed (2021), um sci-fi indie, estreia do roteirista/diretor Sam Walker em longas, não é uma adaptação de uma obra do escritor. Mas expira a sensibilidade lovecraftiana que domina as primeiras décadas desse século. 

O filme de Sam Walker se alinha a produções como a polêmica Não Olhe Para Cima no qual o planeta está à beira da destruição com a aproximação de um imenso asteroide em rota de colisão (e ninguém acredita, porque todos estão fechados nas suas bolhas das redes sociais repletas de memes e lacrações). As protagonistas de The Seed até querem olhar para cima, porém estão igualmente fechadas em suas bolhas virtuais do mundo dos influenciadores digitais, mais atentas às telas dos celulares do que para o céu.

Elas estão mais preocupadas com o sinal do wi-fi do que com o raro evento celeste que irão testemunhar – uma metáfora da caverna de Platão em que se transformou as redes sociais: se o acontecimento não foi fotografada, postado e recebido os likes e compartilhamentos devidos, então não aconteceu.

The Seed combina o pesadelo lovecraftiano que acompanhará o espetáculo celeste com a invasão alien que encontra não mais seres humanos heroicos ou épicos dispostos a lutar para defender a civilização. Como em Não Olhe Para Cima, incapazes de compreender o horror cósmico lovecraftiano em que estão, reduzem tudo à banalidade da produção de “conteúdos” para perfis monetizados. Elas simplesmente não sabem com o que estão lidando, imersas em que estão ao tautismo das bolhas virtuais. 

Um dos motivos da recorrência de adaptações de HP Lovecraft no cinema do século XX é que agora temos as ferramentas para representar graficamente a imaginação sem limites do escritor: grandes orçamentos, efeitos digitais e a computação gráfica. Mas surpreendentemente em The Seed os efeitos práticos predominam. Quase não há CGI, e o horror corporal é graficamente encenando por inventivos efeitos analógicos – enquadramentos, efeitos óticos, maquiagem etc. É uma fotografia artísticas dos dois primeiros atos que antecedem todo o horror. Tudo resolvido com criatividade e baixo orçamento.

Sam Walker só consegue essa façanha pela sua esperta opção: transitar na ambiguidade entre o humor negro, o filme B exagerado e o filme de arte com altos conceitos. Uma decisão arriscada para o espectador, que muitas vezes pode se sentir perdido sem conseguir definir o tom do filme – torna-se um jogo de paciência: precisamos esperar trinta a quarenta minutos para The Seed dizer a quê veio.




O Filme


 Diedre (Lucy Martin) é uma afetada influenciadora de mídia social; Heather (Sophie Vavasseur) é uma influenciadora fútil com apego superficial à cultura New Age; e Charlotte (Chelsea Edge) é a representante da classe trabalhadora: recatada, gosta de ler e trabalha em um pet shop. São amigas desde os tempos da escola, mas trazem também algumas diferenças e rusgas que virão à tona na medida em que a tensão cresce.

Elas rumam para um final de semana perfeito, uma festa só de garotas, em um rancho cedido pelo pai de Heather, no meio do nada, em pleno deserto do Mojave. Um lugar perfeito, regado a bebida e drogas, para relaxar e assistir a uma rara chuva de meteoros. Um lugar seguro no caso de uma invasão alienígena: longe das grandes cidades e pânicos das multidões.

Na noite do show celeste, coisas estranhas começam a ocorrer: o sinal dos telefones desaparece e a Internet cai. Enquanto isso, a chuva de meteoros faz o espetáculo, mas Heather e Diedre não estão preparadas para isso: estão em pânico, tentando postar as fotos para monetizarem nas mídias sociais. 




Até que algo inesperado faz tirar o olhar delas das telas: algo caiu na piscina, e um líquido escuro parece vazar do objeto. Heather está mais preocupada com a bronca que vai levar do pai por sujar a piscina. Elas retiram o estranho objeto, totalmente enojadas com algo que parece ser um ovo com aparência esguia. E ainda mais quando começa a se transformar numa criatura ofegante, meio apodrecida, uma espécie de híbrido entre um pequeno urso e tartaruga mal-cheiroso e com gosma envolvendo o corpo.

Um pouco mais tarde do que deveria, o que até então era uma comédia de terror leve sobre adolescentes ricas e insípidas (e sua infeliz amiga da classe trabalhadora) em férias de verão, de repente se transforma em uma mistura de uma alucinação alienígena erótica e horror corporal. Percebemos o belo trabalho de design e efeitos práticos que é efetivamente reproduzido. É sempre bom ver encontros alienígenas explorados de uma maneira que genuinamente parece ser alienígena, rompendo com a convenção narrativa. 




É fácil entender por que Diedre e Heather, caem tão facilmente sob o feitiço daquele ser alienígena: elas tentam descobrir uma forma de comercializá-lo – afinal, um alien que cai em uma piscina no meio do nada é ótimo conteúdo para atrair engajamentos.

É quando a segunda metade chega com seu lodo e lama. Quando se concentra na invasão corporal, é um quadro desagradável (neste caso, para melhor). Cenas de intimidade alienígena e humana (a criatura com um, por assim dizer, pênis tentacular lovecraftiano), cabeça esmagada, gosma preta escorrendo pelos olhos e deformações do corpo... É incrível! Quando o filme parece perder o fôlego, aparecem mais alguns efeitos práticos de horror corporal bem elaborados e uma criatura alienígena bebê-urso-tartaruga cada vez mais assustadora. Inspirando-se em filmes como Shivers , Brain Damage , Society e o remake de 1988 de The Blob.

Mais assustadora porque, telepaticamente, comunica telepaticamente sua verdadeira intenção: invadir os corpos humanos e popular o planeta com a sua raça.

Esse é o horror cósmico de Lovecraft em toda sua plenitude: a chuva de cometas como espermatozoides que irão penetrar nos seres humanos para fertilizar uma nova raça. O Universo é indiferente à nossa existência e, pior, a vida no cosmos não foi feito à imagem e semelhança de Deus... pelo menos não como O imaginamos.

The Seed também se inscreve numa recorrência recente da cineteratologia: o parasitismo como nova representação da monstruosidade e do Mal. Ao contrário do “monstro mole”, eticamente neutralizado (não é nem bom nem mau, apenas um sobrevivente), a monstruosidade parasitária volta a ter um ativamento ético: ele é “mau” porque tenta controlar o corpo, a casa ou a vida do outro. Precisa que o hospedeiro esteja vivo para que “monstruosamente” assuma o controle do corpo e da mente do outro.

Em The Seed as jovens não estão apenas cedendo seus ovários e úteros. Elas não irão parir a monstruosidade: o ser parasitário irá transformar o próprio corpo do hospedeiro, assumir seu corpo e mente. 


  

 

Ficha Técnica

 

Título: The Seed 

Diretor: Sam Walker

Roteiro: Sam Walker

Elenco:  Lucy Martin, Chelsea Edge, Sophie Vavasseur, 

Produção: Camelot Films, Hardman Pictures

Distribuição: Shudder

Ano: 2021

País: Reino Unido

 

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