quinta-feira, janeiro 11, 2024

Filme 'Intruso' e o amor na era da inteligência artificial


A premissa de “Intruso” (Foe, 2023) soa familiar, sobre a ideia de robôs e androides se tornarem tão reais que percamos as fronteiras entre simulação e realidade. Mas, lembre-se! Não estamos mais diante de replicantes sencientes e autônomos. Mas agora lidamos com inteligência artificial machine learning – algoritmos que “aprendem” conosco e não mais emulam, mas imitam. Num futuro em que o planeta está ambientalmente agonizante e a saída é o espaço sideral, um casal que mora em uma fazenda remota no Centro-oeste americano recebe a visita de um representante do governo convocando o marido para uma missão em uma colônia em outro planeta. Para dar continuidade ao casamento, no lugar ficará um clone com o qual a esposa nem perceberá a diferença. Para garantir isso, um pesquisador deverá passar um tempo com o casal para recolher o máximo de informações para que o clone seja o mais real possível. Em “Intruso” acompanhamos o que poderá ser o amor em tempos de inteligência artificial. 

Há muito já foram os tempos em que o famoso Teste de Turing era uma referência na área de inteligência artificial. 

Na década de 1950, o matemático e cientista computacional Alan Turing no seu artigo “Máquinas de Computação e Inteligência” discutiu a possível capacidade das máquinas exibir comportamento inteligente. Como “inteligente” considerava a situação em que uma máquina pudesse manter uma conversa escrita com um ser humano sem que o humano pudesse distinguir se estava se comunicando com uma máquina.

Ainda nessa primeira fase das pesquisas em inteligência artificial, os cientistas acreditavam que a máquina poderia emular o cérebro humano e que no futuro a questão crucial seria como distinguir a comunicação humana de uma máquina. Acreditava-se que habilidades humanas como raciocínio, solução de problemas, aprender tarefas novas e comunicar-se seria imitado pelas máquinas por meio da linguagem natural. Portanto, o jogo que a máquina jogaria seria o da imitação. Ainda nós, os humanos, saberíamos distinguir a imitação do original, a simulação da realidade etc.

Tudo isso ficou no século passado. Com a ideia “rede neural” e “machine learning”, esse jogo da emulação (ainda antropomórfico demais) ficou para trás. Hoje, o marketing da IA nos faz acreditar que as máquinas são de fato inteligentes, com seus sistemas matemáticos capazes de identificar padrões estatísticos em dados para aprender as habilidades humanas.  

A IA parece um cérebro computadorizado. Mas não é. Na realidade, é um sistema matemático para detectar rotinas estatísticas em big data, isto é, em um volume expressivo de dados.



Aprende conosco, a tal ponto que parece antecipar nossos gostos, opções e disposições. Parecem saber mais sobre nós do que nós mesmos. Então, por que não se apaixonar por uma IA?

Filmes como Ela (2013), Marjorie Prime (2017), Artifice Girl (2022) já narravam situações em que usuários já se esqueceram da distinção entre máquinas que nos imitam e nós, humanos. Embora lidem com vozes de sistemas operacionais, hologramas etc., e saibam da artificialidade, isso deixou de ser uma questão: por que não se apaixonar pela voz de um sistema operacional como em Ela, se a IA parece saber tudo sobre mim?

Intruso (Foe, 2023) é mais uma produção que ecoa essa fase atual mercadológica da IA: deixou de ser mera curiosidade científica ou filosófica (ao estilo de Philip K. Dick em “Os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”) para começarem a se tornar demasiado humanas. Isto é, aprender com o demasiado humano do próprio usuário.

Intruso tem uma premissa que num primeiro momento soa familiar. 

Junior (Paul Mescal) e Hen (Saoirse Ronan) deixou de ser um casal feliz. A faísca de seu amor inicial parece ter apagado diante da paisagem dura de um futuro próximo. O ano é 2065, nosso planeta foi arruinado e as pessoas estão olhando para o céu como única maneira de sobreviver. Mas para colonizar o espaço, a combinação entre empresas governamentais e privadas precisará primeiro de um exército para ajudar a construir o novo oásis de naves espaciais ao redor do planeta. 

Um estranho chamado Terrance (Aaron Pierre) chega para recrutar Junior, mas não Hen, e, diante do pouco tempo para aproveitar seus dias juntos, a dupla enfrenta a incerteza sobre seu relacionamento e futuro. 

Mas Terrance oferece a eles um pouco de consolo: ficará com Hen um clone biológico de Junior para fazer companhia a Hen, mantendo dessa forma o casamento. Enquanto Junior ficará no espaço por dois anos.



Tudo parece soar a clássica discussão da ficção científica da ideia de robôs ou seres artificiais se tornarem tão reais em que os limites entre o humano e a máquina desapareçam. Mas em Intruso há um ponto de viragem que já vinha sendo ensaiado desde o filme Ela: a possibilidade de uma relação íntima com uma IA, a tal ponto que passamos a acreditar que ela possa amar, ser confidente, intima, pessoal.

Ou o que ainda seria mais estranho (e já insinuado em Blade Runner, 1982): a IA pode amar a vida mais do que os próprios seres humanos.

Mas, espere! Não estamos mais diante de replicantes sencientes e autônomos. Mas agora nos relacionando com machines learning.

O Filme

Intruso está situado em um futuro em que a catástrofe climática tornou terras habitáveis e água potável em bens raros. A humanidade não foi capaz de resolver os problemas aqui na Terra, levando um consórcio formado por Governo e iniciativa privada começar a construir estações no entorno da Terra como ponto de partida para a colonização de outros planetas. 

Mas tudo isso é apenas o pano de fundo para a preocupação principal do diretor Garth Davis e do roteirista Iain Reid: o casal Junior e Hen que mora em uma pequena fazenda degradada em um Centro-oeste norte-americano seco e desértico.  

A vida conjugal já não é mais a mesma. Ao longo dos anos algo se perdeu no relacionamento. Em meio aquele lugar remoto, Hen trabalha como atendente em uma lanchonete; e Junior em uma enorme fábrica de frangos.

A rotina é quebrada numa noite, quando recebem a visita de Terrance que chega em um carro futurista. Chega insistindo em dizer que traz boas notícias: Junior foi selecionado para uma missão de dois anos no espaço. Mas o casal será devidamente recompensado: além de uma compensação financeira, o marido ausente será substituído por uma versão tão de carne e osso que ela mal reconhecerá a diferença – uma sofisticada peça de inteligência artificial, política do Consórcio para deixá-los tocando as coisas aqui na Terra, enquanto os humanos fogem para o espaço.



As coisas começam a ficar tensas quando Terrance informa que terá que ficar por perto, morando com eles por um tempo. Como um pesquisador participante, recolher o máximo de informações do casal, para que o clone substituto possa ser o mais real possível.

Terrance tenta mostrar ao casal as vantagens: seria um equivalente de alta tecnologia de deixar a esposa para ir à guerra e deixar no lugar uma fotografia – exceto que esta fotografia pode viver e respirar. Ajudando o casamento deles a sobreviver com a ausência.

Junior não gosta da ideia de Hen coabitar com um fac-símile vivo, e ele suspeita que Terrance está tentando na verdade colocar um intruso entre eles. 

Terrance faz longas entrevistas com cada um deles sobre detalhes pessoais e íntimos da vida conjugal.

Aos poucos as informações sobre casamento são definidas em termos genéricos e amplamente simbólicos - os dois se casam logo depois de um namoro escolar; Junior não gosta quando Hen toca piano e a proíbe, deixando o piano esquecido no porão etc.

O amor como uma machine learning – Alerta de Spoilers à frente

O fato é que as longas entrevista de Terrance e a crescente desconfiança de Junior, parece acender aquilo que estava apagado no relacionamento. Junior está preso àquela terra – ele já é da terceira geração de uma família que, inclusive, está enterrada na propriedade. Hein aspira a libertação: fugir dali. Não só da aridez, mas de uma ordem patriarcal à qual se submete.



Quando Junior começa a mostrar sinais de mudanças e se aproximar ainda mais de Hein, ocorre o plot-twistirônico do amor em épocas de inteligência artificial: cientistas chegam à fazenda para levar “Junior” de volta – na verdade, durante todo o tempo o Junior humano estava no espaço e o clone já ocupava o seu lugar. Com a ajuda de Hein, Terrance estava avaliando o progresso do clone, como uma IA machine learning.

Hein não aceita o “desligamento” do clone. Afinal, apaixonou-se por ele – o clone “consertou” seu casamento, enquanto a chegada do marido verdadeiro apenas levaria o relacionamento à estaca zero. Ou seja, a crise. 

Hein chora, reage agressivamente, sendo contida por seguranças. Impotente, vê o amado clone sendo levado embora por máquinas voadoras – ele é propriedade de uma empresa de robótica.

Quanto ao Junior real, compreendemos o porquê da crise conjugal: ele é apegado à terra, à família e aos valores patriarcais. O oposto de Hen que aspira a grandes mudanças.

O que estava apenas sugerido em filmes como Ela ou The Artifice Girl, em Intruso é explicitado: para além das discussões sobre as fronteiras entre o humano e a IA, Intruso mostra que essas questões foram deixadas para trás com a nova IA como rede neural e machine learning.

Os sonhos dos cientistas em criar androides ou replicantes sencientes e autônomos ficaram no passado. Hoje, a IA imita o usuário, transformando seus hábitos, escolhas, atitudes e predisposições em big data, aprendendo padrões e rotinas estatísticas em quantidades vastas de dados.

A experiência de Hen com o fac-símile do seu marido resultou na mesma situação de Theodore (Joaquim Phoenix) com a voz sensual de Samantha (Sacarlett Johansson), a voz do sistema operacional ao estilo Alexa da Amazon – apaixona-se por ela por acreditar numa genuína intimidade. 

Mas tudo não passa de uma relação como bolha solipsista – afinal, a machine learning “aprendeu” com Hein. Chamamos a máquina de “inteligente”, assim como um cão que obedece aos nossos comandos.

O final é sombrio mostrando uma terrível ironia: Hen é a última feminista – fugiu da ordem patriarcal através de um clone cujos algoritmos aprenderam com a rotina dos seus desejos. Transformados ao longo dos anos em big data.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Intruso

Criador: Garth Davis

Roteiro:  Ian Reid, Garth Davis

Elenco: Saoirse Ronan, Paul Mescal, Araron Pierre

Produção: Amazon Studios, Anonymus Content

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2023

País: EUA

 

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