A produção original Amazon “Saltburn”, de Emerald Fennell (“Bela Vingança”) é uma combinação explosiva de sexo com luta de classes. Mais uma produção de uma tendência dos últimos anos que poderíamos definir como subgênero “rich exploitation”: obscenamente ricos que se autodestroem. Mas “Saltburn” explora uma faceta do topo da pirâmide social: os aristocratas, aqueles que apenas herdam a riqueza com um senso quase ingênuo de nobreza – sem predadores naturais, basta apenas um pequeno empurrão para que tudo desabe. Um jovem proveniente da classe trabalhadora chega à exclusiva universidade de Oxford para conviver com jovens herdeiros que não têm a menor necessidade de estarem ali. A não ser justificar para a sociedade a sua absurda riqueza. “Saltburn” é uma espécie de remix de “O Talentoso Ripley”, porém transitando entre o thriller sexual e o humor sombrio.
Próximo ao final do ano o banco suíço UBS divulgou um estudo de que em 2023 o número de bilionários que ganharam mais com heranças do que com investimentos cresceu. E segundo essa mesma pesquisa, para 60% dos bilionários entrevistados (um universo de 70 clientes bilionários do banco) a preparação dos herdeiros é “um dos maiores desafios”. Ou seja, para um número crescente de bilionários (aqueles 1% que detém a riqueza do planeta), a preocupação maior não é investir (gerar crescimento, empregos etc.), mas apenas reproduzir a linha de transmissão da riqueza – clique aqui.
Não é por menos que nos últimos anos acompanhamos a tendência no cinema e audiovisual em colocar os obscenamente ricos em momentos muito difíceis – poderíamos falar de um subgênero “rich exploitation”? A lista é longa: Parasita, Triangle of Sadness, Glass Onion: A Kinives Mistery, O Menu, A Queda da Casa de Usher, Sucessionetc.
Saltburn (2023), de Emerald Fennell (Bela Vingança), é mais uma produção que se soma a essa lista. Um thriller sexual aristo-gótico sobre obsessão, ressentimento e vingança de classe, ambientado nos lugares mais elegantes da Inglaterra – do campus da universidade de Oxford a uma aristocrática propriedade que dá o título ao filme.
A crítica especializada vem definindo o filme como uma espécie de remix de O Talentoso Ripley (1999). Mas Emerald Fennell parece expandir e explicitar o argumento latente no filme clássico, tornando Saltburn um diferencial dentro dessa tendência “rich exploitation”.
Isso fica evidente numa linha de diálogo que é a chave de compreensão do filme – a certa altura, o protagonista diz: “vocês tornaram isso tão fácil... cachorros mimados dormindo de barriga para cima, sem predadores naturais...”.
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Isso quer dizer que Saltburn tematiza um tipo bem especial de obscenamente ricos e, no caso da aristocracia, anacrônico: aqueles que não moveram um dedo para ter o que têm – obscenamente ricos apenas pela herança. A ironia que o filme explora é que esse tipo de riqueza tornaria essa classe sem predadores naturais – ela não competiu, roubou ou violentou para arrancar a riqueza da desigualdade social. Alguém já fez isso por eles. E seus descendentes apenas se refastelam no status, prestígio e distinção. Sem “predadores naturais” tornam-se presas fáceis do ressentimento e vingança, seja de Ripley (Matt Damon), seja de Oliver (Barry Keoghan).
Como no filme anterior Bela Vingança (Promising Young Woman, 2020), Saltburn é também sobre vingança. Lá, Emerald fez uma comédia sombria sobre estupro e vingança. Em Saltburn, é acrescentado ao ressentimento, a obsessão perversamente malvada de desejo e sedução – o desejo ambíguo de não só cobiçar a riqueza, mas também de ser. Desejar o desejo do outro, criando a tensão homoafetiva que atravessa a narrativa.
Cujo ápice é quando Oliver bebe a própria água da banheira na qual o aristocrata patologicamente blasé Felix Catton (Jacob Elordi) masturbou-se – um aristocrata lindo e divino com um senso quase ingênuo de nobreza e que se move nos ambientes sem qualquer “predador natural”. Até Oliver colocar seus olhos nele – em uma narrativa que esbanja close-ups no suor de Felix, na nuca, no seu pescoço e abdômen num mix perverso de voyeurismo queer com ressentimento de classe. Uma combinação explosiva que, como no filme anterior Bela Vingança, Emerald transita entre o thriller e comédia sombria.
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De qualquer maneira, é a sátira sobre comer os ricos. Oliver não quer apenas galgar a hierarquia tornando-se o predador que a ingenuidade aristocrática sequer pode imaginar. Oliver quer também consumir os próprios desejos dos ricos – de qualquer forma, desejos mais excitantes do que aqueles da modorrenta e cinzenta da classe média britânica da qual ele quer fugir.
O Filme
Voltamos para 2006 e acompanhamos Oliver, um jovem proveniente da classe trabalhadora, chegando na exclusiva universidade de Oxford graças a uma bolsa de estudos.
Na primeira meia hora do filme, percebemos o quanto Oliver é um peixe fora d’água naquele ambiente de intrincados códigos de classe, hierarquia e de ostentação simbólica de poder.
As hierarquias são particularmente cruéis, especialmente quando Oliver decide levar os estudos a sério como um bom jovem subalterno que ainda acredita na meritocracia – seu professor (Reece Shearsmith) zomba dele quando descobre que Oliver leu os cinquenta livros da leitura de verão, que até inclui a Bíblia de King James.
Oliver descobre que está num mundo em que aqueles jovens nem precisavam estar ali. Afinal, herdarão a riqueza bilionária das suas famílias, perpetuando a aristocracia. Então, por que ingressaram em Oxford? Para justificar sua condição de elite diante da sociedade, por terem “estudado” numa prestigiosa universidade. Na verdade, passam o tempo de estudos em festas ou eventos nos quais desfilam as etiquetas de prestígio – usar o suéter certo ou pedir a bebida adequada para um encontro.
Para Oliver, tudo é estranho, até imediatamente se identificar com o aluno alfa do campus: Felix Catton, um aristocrata bonito, popular, e que se move pela vida com a facilidade com que ignora os direitos alheios. Ele tem carisma e autoconfiança que hipnotizam Oliver.
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Depois do episódio do pneu da bicicleta furado (Oliver empresta sua bike a Felix para que ele atravesse o campus e não perca uma prova importante) Felix o convida para passar o verão na propriedade da família Catton chamada “Saltburn” – uma extensa propriedade gramada com uma mansão barroca com tetos estratosféricos e decorada por quadros de valor incalculável como os do barroco Rubens, além de uma coleção de pratos Bernard Palissyceramic. E no jardim, o destaque para um imenso labirinto feito para aristocratas se perderem nas delícias das festas. Ironicamente, com uma grande estátua do Minotauro no centro.
Logo Oliver encontra seu oponente: Farleigh (Archie Madekwe), uma espécie de bobo da corte que os Catton mantêm como “agregado da família” – certamente para entretê-los. Farleigh suspeita que Oliver quer o seu lugar. Mas perceberão, da pior maneira possível, que Oliver tem outros planos.
Para completar o quadro de uma aristocracia complacente e superficial (que passa seus dias assistindo VHS na sala de TV, dando risadas bobas na sala de karaokê e convidando outros nobres para as festas no jardim) temos o pai Sir James (Richard E. Grant), deliciosamente fleumático e alienado, a glamourosa mãe ex-modelo Elspeth Catton (Rosamud Pike) e a irmã chique e trágica de Felix, Venetia (Alison Oliver).
As cenas com os aristocratas Cotton são muitas vezes involuntariamente cômicas – vivem num mundo paralelo, são poderosos, mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo demonstram uma ingênua fragilidade. São incapazes de perceber a chegada do “vírus” Oliver invadindo silenciosamente Saltburn.
Quando a irmã Venetia, enganosamente seduzida por Oliver (aproveitando-se do crônico tédio dela), percebe o que Oliver quer já é muito tarde.
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Roteiro “deus ex-machina” – alerta de spoilers à frente
Saltburn tem evidentes problemas de roteiro. O filme é exuberante, atraente com sua bela fotografia e eloquência visual. E caro. Porém, a narrativa é dominada por viradas inverossímeis que às vezes parecem um “deus ex-machina” - termo para designar soluções arbitrárias, improváveis, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saídas em roteiros mal-conduzidos.
Principalmente a necessidade de o protagonista ter que explicar ao final numa espécie de tutorial do ardil que utilizou para conseguir ser convidado para passar o verão em Saltburn e como implodiu os Catton.
Embora fique evidente ao final do primeiro ato que estamos diante de uma espécie de remix de O Talentoso Ripley, não acompanhamos pistas ou as peças de um quebra-cabeças que faça o telespectador juntar no final. Oliver tem que pegar o espectador na mão e explicar tudo direitinho, até a dança da vitória final, nu em uma Saltburn vazia.
A tensão sexual entre Oliver e Felix, além das sequências lascivas sugerindo a explosiva combinação entre sexo e luta de classes, parece querer levar a narrativa para outra direção: a psicopatia do protagonista. Para depois, voltar aos trilhos narrativos e a necessidade da didática explicação final.
Ficha Técnica |
Título: Saltburn |
Diretor: Emerald Fennell |
Roteiro: Emerald Fennell |
Elenco: Barry Keoghan, Jacob Elordi, Rosamund Pike, Richard E. Grant |
Produção: Amazon MGM Studios |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2023 |
País: EUA/Reino Unido |