sexta-feira, outubro 20, 2023

Os cadáveres do hospital em Gaza: terrorismo, 'Napalm Girl' e contínuo midiático atmosférico



Para além do horror do vídeo da coletiva de imprensa sob os escombros de um hospital da Faixa de Gaza, em torno de cadáveres ensanguentados cobertos por lençóis, as imagens revelam a radical transformação da natureza das guerras no século XXI: da guerra clássica que visava a ocupação de território e a destruição do Estado inimigo, agora temos o terrorismo – provocações que visam unicamente impactar o “contínuo midiático atmosférico” que substituiu a velha esfera pública de opiniões. Assistimos na guerra Israel/Hamas, ataques, réplicas e tréplicas dentro dos próprios termos da transpolítica do terrorismo: a escalada de ações que disputam as atenções desse contínuo midiático. Se no passado as fotos-choque de guerras (como a “Napalm Girl” de 1972) eram descobertas pelos fotojornalistas, hoje são as fotos-choque que procuram atrair as lentes e microfones.  Com ações que muitas vezes replicam o repertório imagético desse contínuo, o novo inconsciente coletivo junguiano.

Em 1972, um fotojornalista capturou o momento em que uma menina de nove anos estava correndo nua, por uma estrada, com o corpo escaldado após ser atingida por napalm. Ela gritava de dor, cercada por outras crianças com o rosto crispado de terror acompanhadas ao fundo por soldados norte-americanos num quadro de devastação da Guerra do Vietnã.

Uma das mais icônicas imagens daquela guerra, a foto ficou conhecida como “Napalm Girl” e o fotógrafo da Associated Press, Nick Ut, ganhou o Prêmio Pulitzer. 

Até aquele momento a opinião pública não estava a costumada com imagens tão chocantes exposta nas mídias. O mundo parecia ter superado o trauma das imagens do Holocausto de Hitler na Segunda Guerra Mundial e sonho americano e o american way of life dos Shopping Mall irradiado para o planeta prometia um mundo melhor.

As dores, o horror e mortes brutais das novas guerras regionais patrocinadas pela Guerra Fria (Coreia, Vietnã etc.) eram ocultadas, enquanto jornalistas e fotojornalistas lutavam contra a censura e manipulações dos poderes. Num viés mais ontológico, a realidade procurava fugir das lentes e canetas dos jornalistas. “Napalm Girl” mostrava a História ainda acontecendo: seu horror é a sua força ontológica: isso não deveria acontecer e não deveria ser mostrado. Uma catástrofe de relações públicas para os EUA e, por isso, merecendo um prêmio para Nick Ut.



Ainda naqueles tempos o teatro de guerra era clássico: infantaria avançando para a ocupação de territórios. E no caso do Vietnã, napalm sendo jogado por helicópteros militares para desfolhar as florestas, revelando vietcongs escondidos e facilitando o avanço das tropas americanas.

As chocantes imagens do vídeo de uma conferência para a imprensa de médicos do Hospital Batista Al-Ahli (Norte da Faixa de Gaza, bombardeado por Israel e resultando em mais 500 mortos), cercados de corpos envoltos em lençóis ensanguentados, aspira ao panteão icônico do horror da guerra Israel/Hamas.

Terror e horror na política

É a “Napalm Girl” da guerra do Oriente Médio? Certamente, será uma das imagens mais icônicas dessa guerra. Porém, o vídeo parece inspirar uma sensação bem diversa da foto de 1972. Lá, “Napalm Girl” inspirava o horror – é a sensação posterior ao terror, isto é, o calafrio na espinha após vermos uma cena repugnante ou o choque após uma situação aterrorizante.

Enquanto o terror é um estado contínuo de pavor, um sentimento constante de medo ou a expectativa de que coisas piores poderão acontecer – mais adiante voltaremos a essa distinção, desta vez na política.

O vídeo da conferência de imprensa entre cadáveres nas ruinas do hospital de Gaza aponta para uma importante inversão ontológica que envolve as relações entre mídia e a realidade: lá em 1972, os fatos tentavam fugir das lentes da mídia – e profissionais que conseguiam furar essa barreira eventualmente ganhavam prêmios.

Agora, parece que temos o inverso: os fatos não só querem atrair a atenção midiática como também muitas vezes eles só acontecem pela própria existência dos meios de comunicação.



Não é por menos que para alguns a cena dos médicos fazendo declaração para os jornalistas e cuidadosamente cercados de corpos (em uma bizarra simetria, diga-se de passagem) inspira desconfiança de que tudo não passaria de “ilusão cenográfica”, em perfis do “X” (ex-Twitter) como o “Illusion Warfare” (@LezLuthor), por exemplo.

Da guerra clássica ao terrorismo

O que este Cinegnose está querendo dizer é que a guerra sofreu uma transformação radical em sua própria natureza: da estratégia old school de conquista territorial e derrota do Estado inimigo, a guerra de se transmutou em terrorismo. Como esse humilde blogueiro anteviu em 1996: 

Com o fim da Guerra Fria na queda do Muro de Berlim, o cortejo fúnebre do poder corre o risco de se iniciar. Atualmente, para evitar isso, uma nova estratégia de simulação está a caminho desde a Guerra do Golfo: a simulação do confronto entre o Poder ocidental contra os terrorismos árabe‑muçulmano e nacionalista de direita. Novo acordo: dessa vez entre Estados e facções terroristas, que terão a oportunidade de chegarem sempre às manchetes dos principais veículos de comunicação, reproduzindo suas esferas limitadas de influência – FERREIRA, Wilson Roberto V. O Caos Semiótico: Comunicação no Final de Milênio, Terra, 1996.

Os ataques do 11 de setembro nos EUA foram os eventos seminais dessa transformação que se consolidou no século XXI: com o “cortejo fúnebre do poder” (Globalização e financeirização transformaram o Estado em mera correia de transmissão das conjunturas macropolítico-econômicas), as guerras não visam mais derrubar um governo ou destruir o Estado inimigo. Impõe-se o terrorismo como prática transpolítica: o objetivo é midiático, antes do bélico-militar:

(a) Com atos espetaculares, audaciosos e violentos, provocar o inimigo;

(b) ataques, atentados ou sabotagens voltados às ondas concêntricas da repercussão midiática no contínuo midiático atmosférico – entidade que substitui a velha esfera pública de opiniões para criar um contínuo sensível à repercussão e reações pavlovianas aos impactos;

(c) Provocado, a vítima somente pode dar uma resposta dentro dos próprios termos do terror: numa escalada de impactos midiáticos, responder dentro da linguagem terrorista numa disputa para alcançar um impacto no contínuo midiático atmosférico cada vez maior.  

O que é esse “contínuo midiático atmosférico”? Uma descrição feita por Ciro Marcondes Filho:

“O contínuo midiático atmosférico os atravessa [as esferas políticas, econômicas e sociais] com suas ondas temáticas e acontecimentos produzindo continuamente ‘espíritos do tempo’ dotadores de sentido. A esfera política joga iscas no contínuo midiático atmosférico visando repercussões de seus movimentos da esfera pública (...) e o contínuo midiático atua como esfera dominante e determinante, apesar de não ser dirigida explicitamente por ninguém, de ser uma nebulosa que funciona apenas como corpo sem órgãos de tudo o que sobre ele rebate. O contínuo amorfo midiático é atmosférico, sem forma nem definição física; é apenas um ‘espírito’, uma força cega, mas sua operação é realizada por instituições concretas e visíveis, que são os meios de comunicação de massas” (MARCONDES FILHO, Ciro (org). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009, p.77).

Se a guerra tradicional inspirava o horror (o Holocausto, a foto da “Napalm Girl”), a guerra transpolítica atual gera o terror: contaminar o contínuo midiático com um constante estado de medo.

Transpolítica e novo inconsciente coletivo

É dentro desse contexto transpolítico que o vídeo da coletiva de imprensa fúnebre deve ser considerado: a sua linguagem deve ser tão terrorífica quanto o próprio terrorismo do Hamas e a resposta de terrorismo de Estado de Netanyahu. 

O que acompanhamos é uma escalada de ataques, réplicas e tréplicas dentro da lógica do terrorismo, cujo ponto de partida foi Hamas e o terrorismo fundamentalista islâmico – invenção da PsyOp dos falcões da guerra neocons norte-americanos e israelenses para despolitizar a questão da formação do Estado palestino e jogar para a escanteio a resolução da ONU de 1948 que previa a divisão da Palestina em dois estados – Israel e Palestina – sobre isso, clique aqui.

No fundo, é a disputa de quem consegue repercutir mais no contínuo midiático atmosférica – a esfera pública pós-moderna não mais movida por opiniões, mas por impactos e polarizações. Ainda mais reforçada com as novas tecnologias de convergência e redes sociais.

Ao contrário de 1972 com a “Napalm Girl”, onde os eventos eram ocultados pelo poder, hoje os eventos clamam pela atenção das câmeras e microfones. Por isso eles parecem replicar narrativas ficcionais:

(a) Os aviões chocando contra as torres do WTC como se quisesse emular todos os filmes-catástrofes que Hollywood já produziu destruindo Nova York;



(b) As ligações perigosas entre os ataques terroristas do Hamas e a série Netflix Fauda (considerado o “Tropa de Elite” de Israel, clique aqui);




(c) A sugestiva aproximação entre a mórbida conferência de imprensa de Gaza e a capa censurada (o “Butcher Cover”) do disco dos Beatles “Yesterday e Today” de 1966, uma alusão sarcástica dos “fab four” à Guerra do Vietnã.



Para conseguir visibilidade, impacto, repercussão, mas, principalmente, terror difuso, essas referências, alusões, paráfrases e até mesmo metáforas com o campo imagético ficcional são necessárias para criar essa hiper-realidade da percepção ou canastrice perceptual: o real parece real porque parece ficcional.

Logicamente essa contaminação da ficção no mundo real nem sempre é proposital: depois de um século de “sociedade do espetáculo”, no qual lentamente a velha esfera pública de opiniões foi reconstruída como contínuo midiático atmosférico, acabou criando um repertório imagético quase semelhante a um inconsciente coletivo junguiano.

Portanto, é natural que o, por assim dizer, “brainstorming” das ações terroristas se locomova nesse contínuo imagético desse novo inconsciente coletivo.

 

   

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