quinta-feira, outubro 12, 2023

'Clonaram Tyrone!': sexo, drogas, junk food e controle social



O que estava apenas nas entrelinhas em “Corra”, de Jordan Peele, e “Sorry to Bother You, de Boots Riley, é  explícito e direto em “Clonaram Tyrone!” (They Cloned Tyrone, 2023), de Juel Taylor, . “Assimilação é melhor que aniquilação”, nos informa a certa altura uma linha de diálogo: como considerar os EUA um país “pós-racial”, como querem os novos democratas do governo Biden, se ainda o país é guiado por uma supremacia branca? Nessa comédia de ficção científica, três improváveis protagonistas negros (um cafetão, um traficante e uma prostituta) desconfiam de algum tipo de sombrio experimento de controle social em uma comunidade através das drogas, sexo e junk food. Se em “Corra” os vilões eram educados brancos liberais e democratas, em “Clonaram Tyrone!” estão novamente brancos. Mas, desta vez, os “falcões da guerra” neocons.

“Assimilação é melhor que aniquilação”. É a linha de diálogo chave para a compreensão da ficção científica “gonzo” Clonaram Tyrone! (They Cloned Tyrone, 2023). No mesmo nível simbólico de uma outra linha de diálogo, dessa vez do filme Corra (Get Out, 2017).

Prisioneiro de uma família de brancos liberais e democratas, o protagonista negro é o próximo a ter seu corpo transformado em hospedeiro de um milionário branco que busca a imortalidade em um experimento envolvendo hipnose e neurocirurgia. “Por que negros?”, pergunta a vítima perplexa e aterrorizada. E a resposta é a mais cínica: “porque negros estão na moda!”.

Apesar dos EUA serem ainda ativamente guiados por uma supremacia branca (para começar, com um intrincado sistema eleitoral de representação indireta feito por ex-escravocratas para manter os negros longe do poder), o discurso dos novos democratas é de que os EUA são um país pós-racial.

Portanto, não é por menos que cineastas negros como Jordan Peele e Boots Riley tenham sido atraídos por contos sombrios e conspiratórios. Dois de seus filmes, como Corra de Peele Sorry to Bother You de Riley, e acabaram encontrando um companheiro nessa desconfiança sobre a existência desse suposto EUA “pós-racial”: É o filme Clonaram Tyrone!, a estreia como diretor do roteirista de Creed II, Juel Taylor.

O que é apenas sugerido nas entrelinhas nos filmes de Peele e Riley, nessa estreia de Taylor o diretor coloca de forma explícita o mal-estar dos movimentos negros, acolhidos pelos discursos dos chamados “novos democratas” – aquilo que Nancy Fraser chama de “neoliberalismo progressista”, aliança entre empresários, classe média dos subúrbios e novos movimentos sociais. Emprestando um carisma jovem com a boa fé moderna e progressista – a aceitação da diversidade, empoderamento, multiculturalismo, os direitos das mulheres etc. – Leia FRASER, Nancy. “The End of Progressive Neoliberalism” IN: Dissent Magazine, 2/1/2017 – tradução aqui.



Produzido há dois anos, só agora chega discretamente, embaralhados pelos algoritmos do Netflix e com pouca publicidade – parece até que a plataforma quer que o filme seja enterrado pelos algoritmos. Quem sabe, por causa da abordagem direta que o filme faz, destoando do atual hype identitário dos novos democratas.

 Clonaram Tyrone! acompanha três protagonistas improváveis, (um cafetão, uma prostituta e um drug dealer), a partir do cotidiano em uma comunidade negra – um cotidiano marcado pela ausência de futuro: um cafetão que vive da “fama” de ter sido eleito o “cafetão do ano” nos anos 1990; uma prostituta que tenta juntar dinheiro para entrar numa universidade de jornalismo; e um traficante marcado pelo trauma da morte do seu pequeno irmão num bairro violento dominado por gangues de drogas.

Apesar desse relato, o filme é uma comédia sci-fi, com toque de Tarantino (seus protagonistas descolados e estilosos) e Show de Truman – e se esse pequeno bairro negro fizer parte de um sinistro experimento social subterrâneo?

Como sempre, os vilões serão cínicos homens brancos. Porém, pela abordagem direta de Taylor, o filme está bem distante da sofisticação intelectual dos liberais brancos de CorraClonaram Tyrone! mostra o sal da terra da supremacia branca dos EUA: os neocons. Aqueles que se descolaram do conservadorismo tradicional, considerado muito “europeu”, e de repente se viram no papel de “segurar a bucha” deixada pelo passado: a abolição da escravatura.



O Filme

Fontaine (John Boyega) é um drug dealer free lancer que desafia a gangue dominante local e padece pelas suas escolhas morais. Ele é o clichê do protagonista negro irritado: silencioso e com cara de mau, com uma mãe distante só ouvida atrás de uma porta.

Depois de um prólogo bem elaborado que descreve a própriacomunidade chamada “The Glen” como um personagem em si, Fontaine é baleado e morto enquanto tenta receber o pagamento de um de seus clientes, um cafetão chamado Slick Charles (Jamie Foxx). 

Mas então ele acorda no dia seguinte e continua sua rotina como se nada tivesse acontecido. Quando ele retorna para Charles, o cafetão fica chocada ao vê-lo, assim como uma de suas profissionais do sexo Yo-Yo (Teyonah Parris), que testemunhou o tiroteio na noite anterior. 

Rápida e perspicaz, Yo-Yo sente que isso poderia ser uma peça de algum mistério conspiratório que ela costuma ver em livros (lembre-se que ela tenta juntar dinheiro para ir a uma universidade), levando o trio a uma investigação que descobre algo de proporções inimagináveis. Quase uma variação de O Segredo da Cabana como Show de Truman no qual sugere uma operação inteira controlada pelos bastidores com a intenção de manter as pessoas em seus devidos lugares na comunidade. 

Quando Fontaine, Charles e Yo-Yo descobrem como as cordas de uma comunidade inteira são puxadas e controladas, eles se prepararam para cortá-las.

Um sem-teto que vive sentado ao lado de uma loja de bebidas alcoólicas é uma peça profética nesse cenário conspiratório: “está na água”, alerta para o trio de protagonistas cada vez mais paranoicos. Principalmente quando vão a um restaurante fast food de frango frito e percebem como todos ao redor se tornam estranhamente dóceis e dando gargalhadas depois de comerem. Parece estar na comida também!



Essa é a grande ideia do filme: e se uma espécie de cabala de um tipo de experimento social sombrio tivesse um covil secreto localizado no subterrâneo de um bairro predominantemente negro. E se eles estivessem conduzindo experimentos de controle mental usando junk food, produtos para o cabelo e club jams? E se um chefe de gangue, um cafetão e uma prostituta tropeçassem na conspiração e tentassem expô-la, de sua própria maneira desajeitada?

“Assimilação é melhor que aniquilação”. Essa é o espírito do experimento que está sendo tocado nos subterrâneos – uma forma de controle mental em que todos naquela comunidade negra tornam-se orgulhosos do seu próprio estilo de vida que os impede de ser verdadeiramente livre.

Mas, como em todo e qualquer experimento de alto conceito, tem que ter alguém que faça o serviço sujo. E ironicamente, o nome dele é Nixon (Kiefer Sutherland), o chefe da segurança do laboratório subterrâneo que, às vezes, deve ir à superfície para limpar evidências para manter o experimento oculto.

É dele a fala que dá sentido a todo aquele projeto de controle mental e clonagem de peças-chave que faça a comunidade manter-se em funcionamento através das ilusões criadas pelas drogas, sexo e junk food.

Os EUA foram um experimento. Uma ideia meia-boca de ideólogos aristocráticos que viviam em mansões construídas por escravos... E quando saíram, nos deixaram com a conta para pagar. Um país constantemente em guerra consigo mesmo, sem um ponto em comum, sem diálogo, sem paz. Não arrancamos as cabeças uns dos outros.  Tudo isso tem uma chance de funcionar. Por isso nos esforçamos para manter os EUA unidos... clonando cafetões e traficantes... todos têm um papel a cumprir.

Esse experimento durkheimiano (para o sociólogo francês Durkheim, indivíduo e livre-arbítrio não teriam lugar na Sociologia por serem constantes fontes de anomia) e essa fala de Nixon é direta: se há um “Estado Profundo”, esse é guiado pela ideologia dos chamados “neocons”: ideólogos que rejeitam o liberalismo social, o pacifismo, o relativismo moral e a social-democracia. Rejeitaram o conservadorismo tradicional por ser “europeu” demais – o fato de os “pais fundadores” da nação terem sido humanistas demais, largando a bomba da abolição da escravatura e da divisão nacional nas mãos dos governos modernos.  



Por vezes, esses neocons são chamados de “falcões da guerra” (francamente a favor do intervencionismo militar em outros países), controlando a política externa de novos democratas como o do atual governo Biden.

Por isso, Clonaram Tyrone! é direto: e se o identitarismo “pós-racial” for apenas mais um lance em um gigantesco experimento social.

Quem sabe, por isso, o filme não tenha recebido a merecida publicidade.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Clonaram Tyrone!

Diretor: Juel Taylor

Roteiro:  Tony Rettenmaier, Juel Tayor

Elenco:   John Boyega, Jamie Foxx, Teyonah Parris

Produção: Federal Films, MACRO

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: EUA

   

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