quinta-feira, outubro 19, 2023

'Cronos - A Relíquia do Tempo': escravos de Cronos, não percebemos o tempo oportuno



O mito da segunda chance domina o tema da viagem do tempo no cinema. Principalmente por ser um sintoma daquilo que o filósofo Giacomo Marramao chama de “hipertrofia de expectativas”: vivemos angustiados pelas chances perdidas no passado e pela aparente falta de tempo para chegar no futuro. Para os estoicos da Grécia antiga, nos tornamos escravos de Cronos e incapazes de perceber o “tempo oportuno” (kairós), aquilo que no presente nos conecta com o eterno. “Cronos – A Relíquia do Tempo” (2020) é um filme brasileiro que foge do clichê da “segunda chance”. Sobre um protagonista que, da pior maneira, descobre a ilusão de Cronos para encontrar Kairós: um cuidador de idosos recebe um relógio capaz de retroceder o tempo em até 24 horas, mas essa dádiva logo se torna uma maldição quando ele é obrigado a enfrentar as consequências pelo mau uso do dispositivo.

Embora estivessem na vanguarda da Ciência, a Teoria da Relatividade e a Mecânica Quântica tiveram profundo impacto no zeitgeist do século XX. Uma nova sensibilidade que, por assim dizer, abriu uma brecha na realidade tradicional newtoniana: a possibilidade da existência de mundos paralelos, realidades alternativas, enfim, a possibilidade de transcender a fatalidade da seta do tempo e a entropia: passado, presente e futuro.

E no cinema, ganhou um lugar especial no gênero ficção científica: o tema da viagem no tempo. Principalmente, o mito da segunda chance: em algum lugar, no passado ou no futuro, haveria a possibilidade, corrigir erros, fazer a coisa certa, na medida em que poderíamos nos deslocar no tempo tendo a consciência dos erros e das oportunidades perdidas. E consertar todos os enganos.

A exploração desse tema no cinema através de lapsos temporais ou emaranhados quânticos é constante e a lista é extensa: De Volta Para o Futuro (1985), Peggy Sue: Seu Passado A Espera (1986), Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993), Contra o Tempo (Source Code, 2011) Efeito Borboleta (2004), Click (2006), Deja Vu (2006), About Time (2013), só para ficar em alguns mais recentes. 

Porém, e se o mito da segunda chance for apenas uma mitologia, fruto de uma angústia fundamental que humanidade descobriu no século XX. O século do grande filósofo que elevou a angústia a tema fundamental na Filosofia: Sartre e o Existencialismo. 

Diante da Relatividade e dos fenômenos quânticos, morreu todo e qualquer determinismo, revelando a radical liberdade humana - não há Deus, propósitos, destinos manifestos, natureza humana ou qualquer outro tipo de “essência” que nos conforte nas escolhas que fazemos. Apenas há a existência. Por isso liberdade e responsabilidade são a fonte da permanente angústia humana. Esse radical indeterminismo.



Acrescente a tudo isso, uma crônica sensação de “falta de tempo” que invadiu nosso cotidiano. Aquilo que outro filósofo, Giacomo Marramao, chamou de “hipertrofia de expectativas”: há um certo “descarrilamento” do presente: projetamo-nos continuamente para o futuro ou então voltamo-nos para o passado, sendo-nos impossível viver ou sentir devidamente o presente - leia MARRAMAO, Giacomo. Kairós – Apologia del Tiempo Oportuno, Ed. Gedisa, 2002.

A web série criada pelo escritor e roteirista Luciano de Lima, posteriormente adaptado ao formato longa-metragem (e agora disponível na Amazon Prime Video), Cronos – A Relíquia do Tempo (2020), é uma rara produção que foge desse clichê da “segunda chance” que domina o tema na filmografia. Talvez, por isso, o filme transita da ficção científica para o fantástico: não há cientistas, uma grandiosa descoberta tecnológica, uma máquina do tempo ou algum tipo de engenhoca análoga. 

Há apenas um velho relógio de bolso, um idoso e um jovem cuidador imerso nos seus problemas cotidianos: equilibrar o tempo entre o trabalho de cuidador, os estudos na faculdade e as dificuldades financeiras em sua vida de casado. 

Um idoso rabugento e misterioso à espera de que alguém dê a ele a resposta certa a uma pergunta: qual a coisa mais preciosa na vida? Para ganhar dele um velho relógio de bolso capaz de retroceder o tempo em até 24 horas. O que parece ser uma dádiva pode resultar numa maldição pelo mal uso do dispositivo.

A virtude de Cronos – A Relíquia do Tempo é evitar a tentação de cair no confortável argumento da “segunda chance” – vemos um protagonista premido pela angústia da hipertrofia de expectativas (a crônica angústia da falta de tempo) e incapaz de vivenciar o próprio presente: aquilo que a filosofia dos estoicos gregos chamava de “kairós”: o tempo oportuno.



O filme

 Eduardo (Tom Peres) é um jovem com a cara de extenuado, sentindo uma crônica sensação de falta de tempo. Ele é o cuidador de um idoso chamado Abelardo (Sapiran Brito), rabugento e de poucas palavras, que passa os dias na sua cadeira de rodas, observando a vida através da janela do quarto.

Abelardo repara o rosto cansado de Eduardo: “tão jovem e com uma cara de velho!”, dispara Abelardo com o indefectível tom de voz rabugento. Então, o jovem explica a vida corrida entre os estudos na faculdade, o seu trabalho de cuidador e os problemas da vida conjugal com sua esposa Mônica (Pâmela Saraiva) em torno das dificuldades financeiras.

“Qual a coisa mais preciosa na vida?”, indaga Abelardo. Depois dessa descrição angustiada de Eduardo pela sua falta de tempo para dar conta de tantas questões, sua resposta é direta: “o tempo”.

Parece que era tudo o que Abelardo gostaria de ouvir – e parece que ele talvez estivesse esperando a vida inteira por alguém que desse a resposta certa. Para presenteá-lo com um misterioso relógio de bolso, capaz de retroceder o tempo em até 24 horas.

Claro que Eduardo não acredita. Até Abelardo fazer uma demonstração dramática e impactante, para finalmente cair a ficha de Eduardo de que ele tem em mãos um fantástico dispositivo capaz de temporariamente anular a entropia do tecido da realidade.

Olhando maravilhado para o relógio em suas mãos, ele ouve do velho homem: “mas cuidado, não conte para ninguém!”. 

A princípio, retroceder o tempo em horas resolve seus problemas temporais mais imediatos: os trabalhos e estudos para as provas da faculdade – facilmente ganha mais tempo para os estudos.

A primeira coisa que chama atenção é que Eduardo não faz qualquer questionamento ou esboça algum assombro metafísico em relação poderes sobrenaturais do relógio: tal como um aplicativo no celular, o relógio vira um instrumento para conseguir vantagens materiais – no início, notas altas na faculdade. Para depois, ambições mais altas: uma parceria com um empresário para ganhar milhões de reais. 



Eduardo vai desobedecer a única regra: não conte para ninguém! Afinal, Mônica vai também desconfiar do súbito progresso material de Eduardo, ao presenteá-la com um carro zero km no seu aniversário.

Mas, o velho Abelardo está atento à desobediência do seu jovem pupilo, sacando mais um dispositivo misterioso da manga, novamente envolvendo o tempo: a imortalidade. E ele vai cobrar a irresponsabilidade do jovem Eduardo.

O filme/web série é de baixo orçamento que não tem a pretensão de ser um épico sobre viagem no tempo – algumas atuações chegam a ser ruins, com cortes e continuidade problemáticos. Logicamente, o baixo orçamento faz a produção evitar o caminho dos cânones da ficção científica, preferindo ir para o fantástico. Lembrando a atmosfera dos episódios da série clássica Além da Imaginação.

Cronos e Kairós

A grande virtude de Cronos é que o filme não trata do tempo no sentido de “Cronos”. Mas de “kairós” – o tempo oportuno.

Cronos era o deus da colheita, num reinado conhecido pelos gregos como “Idade de Ouro” da humanidade (que havia acabado de surgir) num tempo de muita prosperidade e paz – certamente, pela regularidade temporal para o plantio e colheita na mitologia pré-helênica.

Pois esse equilíbrio se rompeu na separação do céu e da terra, perdendo a humanidade sua conexão com o desconhecido, instaurando-se o caos após a “titanomaquia” – a guerra que durou dez anos entre Zeus e seus irmão contra o pai, Cronos. 



Essa cisão entre o Céu e a Terra deu lugar a uma fragmentação temporal na cultura grega: Cronos (o tempo dos homens, cronológico, linear e que pode ser medido, regido pela entropia – tudo terá um princípio e um fim), Kairós (um momento indeterminado no tempo, o “momento oportuno único” quando algo de especial acontece, o momento especial para a realização de alguma coisa específica) e Aeon (tempo de vida, força vital ou a conexão com o eterno, aquilo que foi perdido na ruptura entre Céu e Terra).

Kairós, o instante oportuno de plenitude e perfeição (no qual Aristóteles havia colocado o prazer) é aquilo que escapa da fugacidade e efemeridade de Cronos. Kairós é a experiência que é retirada da servidão do tempo ilusório dos acontecimentos. Aquilo que nos conecta de volta a Aeon, a força de conexão com o eterno.

Essa é a grande lição que Eduardo aprenderá com a sua tentativa de manipulação estabanada de Cronos. Como sempre, a verdade está em outra cena: qual a coisa mais preciosa da vida? Não é Cronos: a sua servidão é a da hipertrofia de expectativas, que nos faz descarrilhar no presente: ansiosos em relação ao passado e futuro, esquecemos daquilo que é eterno e oportuno.

Pode parecer piegas, mas a resposta seria: aqueles que mais amamos e que estão ao nosso lado, no presente.


 

Ficha Técnica

 

Título: Cronos – A Relíquia do Tempo

Diretor: Luciano de Lima

Roteiro:  Luciano de Lima

Elenco:   Sapiran Brito, Tom Peres, Tainara Urrutia, Pâmela Saraiva, Denildo Miranda

Produção: Legendário Filmes

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2020

País: Brasil

 

   

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