sexta-feira, setembro 22, 2023

Tragédia e ironias no filme 'Dalíland': como a realidade superou o surrealismo


O filme “Dalíland: A Vida de Salvador Dalí” (Daliland, 2022) começa com uma tragédia e termina com uma ironia. Começando com o trágico incêndio na sua casa na Espanha em 1984, acompanhamos a vida do pintor (interpretado por Ben Kingsley) nos anos 1970, a partir das memórias de um jovem admirador e funcionário de uma galeria de arte em Nova York. Mostra como sua arte havia se transformado em um produto pop, tão contemporâneo como o de  Andy Warhol. Sempre sedento por dinheiro em cash para custear seu estilo de vida de excessos, Dalí acabou prisioneiro do personagem que criou. Ironicamente, a única forma que o artista modernista encontrou para sobreviver à pós-modernidade: parecia que o mundo tinha ultrapassado o surrealismo – através da publicidade, sociedade de consumo e cultura pop a realidade roubou dele os estranhos mundos que sonhava. Restou a ele se agarrar no próprio personagem que criou para si mesmo.

Ao entardecer, vestia um colete dourado, uma gravata vermelha, um casaco de pele de pantera e uma bengala pomposa. Entoava a Marselhesa e coroava-se. De repente, vindos pela colina, surgiam, não se sabe de onde, duas figuras silenciosas vestidas de preto. Figuras andróginas, pálidas, com os olhos turvados de drogas. Cerimoniosamente, ele oferecia uma flor de jasmin para eles.

Ao fundo, o cenário do mar imóvel de Cadaqués, na Catalunha (Espanha). Aquela figura bizarramente vistosa subiu no mesmo rochedo que ele pintou no quadro “O Grande Masturbador” (1929) e pronunciou: “Agora podemos ficar tranquilos. Saudamos a morte a manhã inteira. Agora ela trabalhará por nós”. 

Essa é uma descrição da liturgia diária do gênio (ou farsante?) do surrealismo, Salvador Dali, em um dia qualquer de 1967. Recluso numa região que Dali descrevia como “o maior antro de paranoicos do Mediterrâneo”.

Ao lado da sua esposa Gala, pintava o enorme quadro “La Pêche au Thon”. Isolado nesse universo solipsista. Tendo como seus únicos contados com o mundo exterior um gerente de negócios que contatava galerias de arte – sob a suspeita de que Dali apenas assinava quadros, que não passavam de reimpressões de obras antigas. O que destruiu a credibilidade de Dali com revendedores e casas de leilões.

Afinal, Dali e Gala precisavam de montanhas de dinheiro para financiar um estilo de vida luxuoso, excêntrico e cheio de excessos de festas e orgias que incluía alguns meses todos os anos no Hôtel Meurice em Paris, e outros dois meses no St Regis em Nova York, onde a conta do quarto chegou a US$ 20.000 por mês.

É nesse hotel que é ambientado a maior parte do filme Dalíland: A Vida de Salvador Dalí (Daliland, 2022), revelando duas coisas sobre o último grande nome das vanguardas modernas, até então, ainda vivo: primeiro, que a maior criação de Salvador Dalí foi ele mesmo; e depois, como a realidade parece ter ultrapassado o surrealismo das telas dos artistas – vivendo num mundo ainda mais excêntrico do que ele, Dalí fechou-se em seu próprio mundo, no personagem no qual ficou prisioneiro.



Interpretado por Bem Kingsley, na década de 70 Salvador Dalí era mais do que um pintor provocativo. Como sua arte havia se transformado em um produto pop, tão contemporâneo como o de  Andy Warhol, ele virou uma marca. E um obstinado também; anos antes Dalí já havia ganhado o apelido anagramático de “Avida Dollars”, que o artista praticamente abraçou, sempre sedento por dinheiro em cash para custear seu estilo de vida de excessos. 

Ele e sua esposa Gala (Barbara Sukowa) se lançaram como socialites, fazendo festas concorridas com artistas, modelos e a presença indefectível do roqueiro Alice Cooper.

Dizia-se que o olhar de Gala era tão fulminante que era capaz de atravessar uma pessoa. O filme é fiel à descrição da personalidade irascível da esposa do pintor: o tempo corre e Dalí tem pouco menos de um mês para encher as paredes de uma exposição em Nova York com obras originais. Gala mantém as rédeas de Dalí curtas, e exige do pintor uma disciplina espartana. Mas as festas e o gosto de Gala por jovens (“Gala tem a libido de uma enguia elétrica”, nos informa a certa altura uma linha de diálogo) está colocando tudo a perder.

Em Dalíland há uma ironia fatal para o pintor. Se na década de 1930, os modernistas (em particular os dadaístas e surrealistas) chocavam a sociedade do velho capitalismo fordista, no pós-guerra tudo mudou. A publicidade, a sociedade de consumo e a indústria do entretenimento ironicamente realizaram a agenda vanguardista: Dalí mostrou como era possível colocar imagens do inconsciente em uma tela. Pois a Publicidade e Hollywood transformaram isso num negócio – diariamente vemos desejos, fantasias e imagens oníricas em filmes e vídeos publicitários.



E os EUA criaram a máquina mercantil que tornou tudo isso possível. Dalí não conseguia pintar quando visitava Hollywood. E em Nova York, ele era irregular e reticente, mais preocupado em se divertir com Alice Cooper.

Parecia que o mundo tinha ultrapassado o surrealismo. Ou melhor explicando, todos aqueles mundos oníricos de relógios derretendo ou de um castelo flutuando sobre o oceano, de Magritte, foram realizados pelos efeitos especiais no cinema e vídeo.  Além disso, festas e orgias não chocavam mais o conservadorismo burguês: virou virtude promocional de socialites e artistas pop.

Dalí não tinha mais o que pintar. A realidade roubou dele os estranhos mundos que sonhava. Restou a ele se agarrar no próprio personagem que criou para si mesmo. Esse é o tema central de Dalíland.

O Filme

Dirigido por Mary Harron (I Shot Andy Warhol, American Psycho), mostra o Dalí dos anos 1970 através dos olhos de James Linton (Christopher Briney). Começamos nos anos 80, quando James acompanha as notícias de um desastroso incêndio na residência do pintor na Espanha, deixando-o com graves queimaduras.  Naquele ponto, Dalí já era viúvo. 

Assistindo a essa reportagem na TV, ele é levado de volta ao passado. E passamos a acompanhar as suas memórias.

Recém-saído de uma escola de arte de Idaho, ele é agora assistente em uma galeria de Nova York que planeja fazer uma exposição com novas obras de Dalí. James é enviado para cuidar de Dalí enquanto ele se prepara para a exposição. 



Ou, jovem e atraente, acabará se transformando em mais uma presa para Gala – lembre-se que ela “tem a libido de uma enguia elétrica”.

 O que é evidente é que há um turbilhão social vertiginoso no entorno do pintor. Há Alice Cooper e, também, Amanda Lear (Andreja Pejic), a modelo de pernas longas que pode ser uma mulher transexual. E há o amante da vez de Gala, chamado “Jesus” (Zachary Nachbar-Seckel), que é a estrela do show da Broadway Jesus Cristo Superstar. E há Dalí, que afirma ser ele que criou Deus e fala de seus planos de construir um pênis gigante que dê a volta pelo mundo, como a sua “contribuição para a paz mundial”.

Acompanhamos as peculiaridades e excentricidades desgastantes de Dalí, assim como os percalços e enfermidades da velhice – o Mal de Parkinson começa a incomodar o orgulho de Dalí. 



Gala lida com o seu orgulho ferido: ela sente-se esquecida. Ela se considerava como verdadeira força que impulsionou o marido – a certa altura, lembra de como no início andou pelas ruas de Paris, “até meus sapatos ficarem cheios de sangue”, procurando um revendedor para as pinturas de Dalí. Agora, em um estado feroz de decadência do ego, patrocina o amante “Jesus”, tentando fazer dele um roqueiro de sucesso. Mas ele nem mesmo consegue manter sua guitarra elétrica afinada.

“Dalí nunca esteve no negócio da arte, ele sempre esteve no negócio do show”, diz em um momento a modelo Amanda Lear. Essa é a dura avaliação de uma jovem que sequer sabia o que representou os modernistas. Porém, sem saber ela, assim como todos os jovens convidados das suas festas, vivia naqueles mundos que Dalí imortalizou nas telas da década de 1930.

Embora divertido, Dalíland tem um fundo melancólico e trágico. Como o grande Salvador Dalí terminou seus dias mais conhecido pelas suas festas, acrobacias publicitárias, seu bigode e olhos arrogantemente arregalados – um bobo da corte idoso fazendo o papel de si mesmo.

Por isso as vanguardas modernas não tiveram mais sentido no pós-guerra com a ascensão da sociedade de consumo. Tudo que eles imaginaram (provocativos e iconoclastas em uma sociedade conservadora pós-vitoriana) se transformou em ferramentas mercantis para o Capitalismo Tardio comandado pelo Marketing, Publicidade e financeirização: o design industrial da Bauhaus virou desenho publicitário; as colagens dadaístas se transformaram nas brainstormings dos criadores publicitários; o cubismo e a arte abstrata inspiraram a sensibilidade da cultura pop; e as imagens do inconsciente das telas surrealistas em métodos para capturar desejos e fantasias dos consumidores.

Como último grande artista modernista então ainda vivo, somente conseguiu estender um pouco mais a sua carreira na pós-modernidade seguindo o modelo Andy Warhol de celebridade.


  

Ficha Técnica

 

Título: Dalíland

Criação: Mary Harron

Roteiro:  John Walsh

Elenco:   Bem Kingsley, Barbara Sukowa, Christopher Briney, Andreja Pejic

Produção: Zephyr Films

Distribuição: Magnolia Pictures

Ano: 2022

País: EUA/França

   

 

Postagens Relacionadas

 

Na exposição "Mondrian e o Movimento De Stijl" o irônico final das vanguardas modernas

 

 

Niemeyer e Brubeck: a morte da utopia da "arte total"

 

 

A crise da utopia espacial no curta "Waltz For One"

 

 

 

E o Verbo se fez carne de celebridade no filme "Antiviral"

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review