sexta-feira, setembro 15, 2023

No filme 'Era o Hotel Cambridge' somos todos refugiados, do país e de nós mesmos


Sentir-se como estrangeiro (seja em outro ou no próprio país) torna-se condição existencial crescente num capitalismo de exclusão – a produção constante de refugos sociais, aqueles que são excluídos até da própria exploração do mercado. Redundantes e inúteis, se apegam nos últimos destroços de um naufrágio social: sua própria cultura e as formas de comunicações possíveis entre alteridades, organizadas como grupos de resistência. O filme brasileiro “Era o Hotel Cambridge” (2016), da cineasta Eliane Caffé, retrata essa condição num híbrido de documentário e ficção, ao fazer o relato da ocupação do outrora glamouroso Hotel Cambridge, abandonado, entre outros edifícios no Centro de São Paulo. Uma questão aparentemente local, mas que ganha alcance universal através da linguagem ficcional que dramatiza a questão central nesse momento: somos todos refugiados, do país e de nós mesmos.

Um hotel abandonado no Centro da cidade de São Paulo entre a reforma e a demolição, ocupado pelas vidas incertas de trabalhadores sem teto, de refugiados que viram no Brasil a esperança de recomeçar suas vidas e um movimento social de luta por moradia. E tendo como contexto as grandes manifestações de rua, iniciadas nas “Jornadas” de 2013, que se defrontaram com uma repressão policial particularmente agressiva naquele período.

A realizadora Eliane Caffé iniciou a pesquisa para sua próxima produção, em 2011, pensando no tema dos imigrantes e refugiados. E se deparou com a realidade das ocupações de prédio fechados ou abandonados no Centro de São Paulo. 

E encontrou a mais icônicas das ocupações: a do velho prédio do Hotel Cambridge, na Avenida Nove de Julho. Hotel que no passado abrigou baladas famosas como Gambiarra, Autobahn e Trash 80’s. Inaugurado na década de 1950, o outrora glamouroso hotel não existia mais desde 2002. Com enormes dívidas de IPTU, a prefeitura desapropriou o prédio, transformando-o em “imóvel de interesse social”.

Cansados de aguardar uma solução, o MSTC (Movimento dos Sem Teto do Centro) e a FLM (Frente de Luta por Moradia) ocuparam o edifício em 2012 – um prédio que passou a ser ocupado por dois tipos de refugiados: aqueles que fugiram do seu país e aqueles que foram excluídos dentro do seu próprio país.

Baseado no livro “Era o Hotel Cambridge: arquitetura, cinema e educação”, o filme de Eliane Caffé, Era o Hotel Cambridge (2016), aborda o tema dos sem-teto no sentido mais amplo da palavra – de um lado, estrangeiros refugiados de países como Síria e Congo por guerras e conflitos políticos; e do outro, aqueles que se tornaram estrangeiros dentro do próprio país – trabalhadores e desempregados sem renda suficiente para exercer o mínimo de cidadania. Aqueles que foram excluídos do mercado e, por conseguinte, da própria sociedade.

O filme narra uma contagem regressiva de quinze dias antes da retomada de posse pela repressão policial. Vemos bandeiras dos movimentos de moradia, assim como a representação de funcionamento de elementos comunitários, assembleias e pedidos de engajamento e luta por parte dos coordenadores do grupo.



Eliana Caffé tinha em suas mãos um material rico e complexo: inúmeras histórias individuais, a alteridade representada pela presença de refugiados estrangeiros. E tudo tentado ser articulado pelas organizações coletivas de movimentos sociais e o seu peso político na sociedade.

Apenas a linguagem documental ficaria na superfície do caldeirão sociológico, político e ideológico. Há algo de mais profundo pulsando na história da ocupação do Hotel Cambridge: o diálogo entre alteridades, estrangeiros e brasileiros com histórias tão diversas num espaço transitório à espera do despejo policial. Mas que, ao mesmo tempo, reflete uma condição estrutural do capitalismo global: a criação de refugos sociais (refugiados, desempregados, idosos etc.) como condição intrínseca de produção de valor econômico.

Por isso, Eliana Caffé opta pela narrativa híbrida de ficção e realismo, não-atores contracenando com atores e encenações alternando-se com imagens documentais. Muitas vezes o político e o sociológico serve apenas como pano de fundo para os dramas das formas de comunicação possíveis entre alteridades, o desenvolvimento da empatia e os choques culturais entre personagens tão diversos.

Através dessa estratégia discursiva, Eliane Caffé consegue elevar um tema local a uma questão universal: somos todos refugiados.

O Filme

As primeiras cenas mostram imensas fachadas de vidro e concreto de edifícios abandonados em São Paulo, contrastando com o problema dos sem-teto da cidade. 

O imenso e antigo Hotel Cambridge é ocupado por dezenas de sem-teto, uma variedade multicultural de fauna humana, com o filme focado nas histórias de alguns desses personagens. Estes incluem Hassam, um refugiado palestino carismático que recita poesia de poder e beleza, vivendo com seu sobrinho Kalil, que não fala uma palavra em português; e Ngandu, no exílio do Congo por razões da guerra no país que envolve interesses econômicos do minério extraído para a fabricação de celulares – que ironicamente é a forma de se comunicar com os familiares que foram deixados no país.



Enquanto os não brasileiros não são atores, alguns dos residentes brasileiros são interpretados por atores profissionais. Eles incluem o pitoresco e carismático agitador cultural Apolo (José Dumont), que entrega algumas das linhas de diálogo mais deliciosamente surreais e que está montando um grupo de teatro cujo trabalho será exibido no vlog que os habitantes criaram para aumentar a conscientização social.

E uma artista de circo idosa e aposentada, Gilda (Suely Franco); e a indubitável Dona Carmen, porta-voz e líder dos moradores, respeitada por todos - em uma das curiosas elisões do filme entre ficção e realidade, ela é interpretada pela ativista dos sem-teto da vida real Carmen Silva.

Acompanhamos a contagem regressiva de quinze dias até a retomada do edifício pela força policial. O filme detalha os preparativos para este evento dramático — que envolve, mais tarde, a ocupação dramática de outra propriedade. Enquanto a polícia dispara armas anti-motim contra todos eles, Dona Carmen instrui os moradores a jogar cocos pelas janelas contra os policiais.

As histórias de alguns dos personagens proporcionam autêntico interesse humano: um flashback relembra a sofrida história de Ngandu nas minas de extração de coltan (mistura de minerais envolvida em interesses políticos e econômicos), além das imagens de Hassam sentado numa paisagem urbana destruída pela guerra, que seria a sua casa se ele não tivesse deixado a Palestina. As chamadas por Skype para seus familiares muitas, vezes tensas, sugere que embora a vida seja difícil para aqueles no exílio, é ainda mais difícil para aqueles que permaneceram.



O hotel é um exemplo de culturas coexistindo como uma grande família, com as tensões do dia a dia que isso implica. Nas tentativas de resistência, no humor multilíngue e em um caso de amor transcultural, há um ângulo suavemente inspirador e de bem-estar, porém sem sentimentalismo piegas ou motivacional. 

A mensagem de Era o Hotel Cambridge parece dizer que nosso sentimento de companheirismo (empatia, respeito a alteridade etc.) prevalecerá como forma de resistência política aos males do capitalismo em sua forma globalizada.

Dos explorados, o sistema acabou criando uma nova categoria sócio-econômica: a dos excluídos da própria exploração. E que devem ser eliminados por formas de controle populacional como guerras e violência – além das suas formas híbridas como a má alimentação, alimentos transgênicos, sedentarismo, o sucateamento deliberado de toda forma de assistência ou proteção social etc.

Zygmunt Baumann falava em “vidas desperdiçadas”, sobre um capitalismo cuja expansão global é orientada pela eliminação do “refugo humano” - os excessivos, redundantes, deslocados e indesejáveis. Os irremediavelmente desempregados, deficientes, refugiados, aposentados etc. – leia BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas, Zahar, 2022.



Nesse contexto, Era o Hotel Cambridge aposta no hibridismo ficção/documentário para ampliar como uma lente essa trama subjetiva de resistências.

Um exemplo é a intervenção cultural coordenada por Apolo, os chamados “quadros vivos”: cada grupo toca músicas e realiza danças típicas de suas culturas originárias, e, ao comando de Apolo, congelam em posições que serão registradas pela videomaker local.

É nesse ponto que a ficção alcança seu nível metalinguístico (acompanhamos uma filmagem dentro de outra filmagem), como também da conexão com a realidade: o contexto político de manifestações de rua e polarização política na Internet: os “quadros vivos” são produzidos para serem publicados no vlog da ocupação. Buscam conscientização política, mas tudo que conseguem são comentários sistemáticos de ódio gratuito, opiniões segregadoras, racismo e xenofobia de pessoas na Internet atacando as ocupações.

Depois de assistir ao Era o Hotel Cambridge chegamos à conclusão que somos todos refugiados, como estrangeiros exilados do país natal (como propriamente “refugiados”), do mercado (como excluídos) e do próprio país (existencialmente como estrangeiros) em que não mais se vive, mas apenas tenta resistir.  

Não é por menos que os dois personagens ficcionais (Apolo e Gilda) são as âncoras narrativas - a ficção e as tramas relacionais da subjetividade como os únicos destroços nos quais se pode se agarrar no naufrágio da sociedade.


  

Ficha Técnica

 

Título: Era o Hotel Cambridge

Diretor: Eliane Caffé

Roteiro:  Bruno Campello, Luis Alberto de Abreu, Eliane Caffé

Elenco:   José Dumont, Suely Franco, Guylain Muskendi Lobobo, Carmen Silva

Produção: Aurora Filmes, Nephilim Producciones

Distribuição: Vitrine Filmes

Ano: 2016

País: Brasil

   

 

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