terça-feira, setembro 28, 2021

'Our Brand is Crisis': como Hollywood apaga os rastros das PsyOps na América Latina


Rachel Boynton conseguiu registrar os bastidores da consultoria política Greenberg Carville Shum (GCS) que levou a vitória de Gonzalo Lozada à presidência, em 2002, na Bolívia, com o documentário “Our Brand is Crisis” (2005). Para depois, Lozada enfrentar as manifestações populares, resultando em dezenas de mortos, renunciar e fugir para os EUA. O documentário descreve como a propaganda política clássica foi substituída por operações psicológicas que exploram o medo e o ressentimento coletivo. “Modus operandi” padrão das “revoluções coloridas” das décadas seguintes. Dez anos depois, Hollywood produz “A Especialista em Crise” (“Our Brand is Crisis”, 2015), versão ficcional do documentário que tenta apagar os rastros da PsyOp da geopolítica dos EUA na Bolívia e América Latina - os aspectos mais comprometedores são apagados pela típica pseudo-neutralidade psicológica que envolve mecanismos de personalização narrativa, happy end mas, principalmente, a visão do processo eleitoral como uma mera competição de marcas na liberdade de um mercado de ofertas.

Em 2002 a poderosa empresa de consultoria política Greenberg Carvile Shum (GCS) caiu de paraquedas na Bolívia para tentar salvar a campanha praticamente perdida do candidato presidencial Gonzalo Sánches Lozada, conhecido como “Goni”. Lozada já tinha sido presidente de 1993 a 1997, responsável pela “terapia de choque”, conjunto de amargas medidas neoliberais para conter a hiperinflação ao custo do aprofundamento das desigualdades sociais. Ou seja, não tinha a menor chance de vencer as eleições com uma memória popular tão negativa. Até mesmo com o pacote completo de consultoria adquirido à GCS.

Rachel Boyton, uma documentarista cujo trabalho se concentra em temas como ideologia, política e poder (seu filme mais recente, Big Men, é sobre os mecanismos políticos do funcionamento da indústria de petróleo global) também veio junto para registrar os bastidores de uma campanha coordenada por James Carville, ex-coordenador da campanha vitoriosa de Bill Clinton nos EUA. Boyton estava curiosa pela chegada da poderosa GCS na Bolívia: como o vitorioso estrategista Carville (com um currículo bem-sucedido em 23 países como EUA, Brasil, Argentina, Colômbia etc.) iria lidar com uma campanha praticamente perdida? 

Principalmente porque Goni, que tinha vivido grande parte da sua vida nos EUA, falava um castelhano com forte sotaque inglês. Por isso, era chamado pejorativamente de “El Gringo”.

Boyton conseguiu privilegiado acesso aos bastidores da campanha e fez registros impactantes, apresentando didaticamente os passos e as estratégias do marketing eleitoral, que muitas vezes chegavam à amoralidade.

O resultado foi o documentário de 2005 Our Brand is Crisis, cujo aspecto mais importante é que a poderosa GCS não caiu simplesmente de “paraquedas” numa campanha aparentemente perdida a poucos meses das eleições: “Goni”, na verdade, era o candidato do “Consenso de Washington” (conjunto de políticas econômicas axiais formuladas em 1989 por instituições financeiras como FMI, Banco Mundial etc.), isto é, o cara que conduziria um país pequeno, turbulento e profundamente dividido à ordem econômica global – principalmente pelas suas riquezas estratégicas como gás natural e lítio.



Onze anos depois, Hollywood decide fazer uma releitura ficcional do impactante documentário de Boyton. Um filme homônimo estrelado por Sandra Bullock que faz o papel de uma consultora política que também aterrissa nas eleições bolivianas com maquiavélicos planos para, também, reinventar um candidato e remodelar a opinião pública.

Our Brand is Crisis (2016), dirigido por David Gordon Green e escrito por Peter Straughan, pretendia transmitir aproximadamente a mesma mensagem que Boyton passou em 2005. Mas, como veremos, os aspectos mais importantes da história foram apagados ou conduzidos por uma típica pseudo-neutralidade psicológica hollywoodiana que envolve mecanismos de personalização narrativa, happy end mas, principalmente, a visão do processo eleitoral como uma mera competição de marcas num mercado de ofertas.

É a visão formal da democracia liberal que até pode ser aplicada ao intrincado sistema eleitoral de afunilamento do poder nos EUA (que desde os séculos XVIII-XIX mantém o poder em proprietários de terra e escravos), mas que nas eleições em países sul-americanos, parte importante do xadrez geopolítico, vira uma estratégia ideológica para ocultar as digitais das operações psicológicas norte-americanas.




O Documentário

 “A primeira vez que fui a La Paz, vi pichado por todos os lados: “Goni é a Solução... Goni era o problema naquele momento, não era a solução! Não se propõe uma coisa na qual os eleitores não acreditam”. Esse diagnóstico inicial de Carville é o divisor de águas no documentário, no qual a propaganda política clássica evolui para um outro patamar: as operações psicológicas.

Estratégias hipodérmicas de repetição de mensagem não funcionariam num jogo em que os dois primeiros colocados (Evo Morales e Manfred Villa) vendiam esperança para o povo.

Carville propõe uma mensagem mais ampla: “Sim, é possível!”. Também vender esperança? Talvez, mas agora dentro de um outro cenário: não mais dos debates sobre plataformas e soluções para o futuro. Mas da modelagem da percepção de que o país vive uma crise. De que todos estão à beira do abismo. Em outras palavras, ao invés de vender esperança, a consultoria GCS passou a criar a atmosfera psicológica do medo.

As lentes de Boynton testemunham a seminal operação psicológica que iria orientar todas as estratégias de ação direta nas ruas, durantes as “revoluções coloridas” do tour das guerras híbridas que sacudiram o planeta nas décadas posteriores. Até chegar à tempestade perfeita criada na guerra híbrida brasileira: constantes manifestações e ações diretas nas ruas combinada com a percepção de uma crise econômica turbinada pela grande mídia. E o impeachment como a “solução”.




Assim como passou a ser vendida a imagem de Lozada. O que fez pular da quinta para a terceira colocação, aproximando-se de Manfred e Morales.

A palavra “crise” tornou-se um mantra na campanha. Porém, só a repetição de uma ideia não seria suficiente. Como a certa altura, o consultor Greenberg fala, “não são os fatos que aprendemos, é a textura das paixões por trás dos acontecimentos”. O que ele quer dizer com essa frase eufemística é que toda operação psicológica deve se fundamentar na descoberta dos “botões a serem apertados” do psiquismo coletivo.

A partir das reuniões de “focus group”, mostradas pelo documentário, a GCS monta o quadro de funcionamento natural daquela sociedade: os pontos fracos, rivalidades regionais, conflitos étnicos, ressentimentos coletivos etc. Bastou “apenas” a campanha fazer as provocações certas para obter a resposta esperada de seus alvos.

Primeiro, o discurso da corrupção para atacar Manfred, o segundo colocado. Segundo, exacerbar a polarização: os preconceitos da classe média urbana contra o crescente empoderamento indígena, representado por Evo Morales.   

O que fica claro no documentário é que as tropas de Carville foram enviadas para La Paz para resistir à crescente onda de esquerdismo latino-americano representado na Bolívia pelo o líder político indígena Evo Morales, o principal oponente de Goni. 

Mas quem decidiu que um candidato amplamente detestado em um país tão pequeno merecia tanta atenção, ao lado de clientes famosos do GCS como Tony Blair, o Partido Trabalhista de Israel e o Partido Liberal Canadense?  Quem pagou por isso? 

Carville e Greenberg venceram a eleição para Goni, depois de mudar todo o tema de sua campanha para o mantra da “crise”. O segundo mandato de Goni como presidente mal durou um ano, depois que seus planos de permitir que um consórcio internacional construísse um gasoduto e enviasse gás natural boliviano para a América do Norte a preços baratíssimos gerou uma revolta popular massiva. 




Enfrentando uma greve geral e uma série de confrontos entre soldados e manifestantes que deixaram pelo menos 67 civis mortos, Goni impôs a lei marcial em outubro de 2003, e o Departamento de Estado dos EUA emitiu um comunicado oferecendo seu total apoio. Goni fugiu do país cinco dias depois e agora vive exilado nos Estados Unidos, que se recusou a extraditá-lo para a Bolívia para ser julgado por execuções extrajudiciais e outros crimes contra a humanidade.

Quem pagou por isso? A resposta ao final de Our Brand is Crisis fica óbvia diante de acolhida de Gonzalo Sánchez Lozada pelos EUA.

O Filme

A versão ficcional de Our Brand is Crisis ("A Especialista em Crise", título em português) acompanha a história da queda e redenção de uma consultora política sem escrúpulos chamada “Clamity” Jane (Sandra Bullock). Depois de uma série de reveses e escândalos na carreira (muitos deles causados pelo seu inimigo de profissão, o mefistófilo Pat Candy – Bob Thornton – muito parecido com Carville) ela se aposentou e vive reclusa numa casa nas montanhas.




Uma velha colega Nell (Ann Dowd), acompanhada do jovem idealista Ben (Anthony Mackie), vão até as montanhas para persuadir Jane a descer à Bolívia, para administrar a campanha presidencial de um senador conservador cujo mandato anterior como chefe daquele país foi muito ... autoritário. A notícia de que Jane enfrentará mais uma vez o consultor político Pat Candy. Será a chance de “Calamity” se redimir.

Com o seu expertise informado pelo livro “Arte da Guerra” de Sun-Tzu, passa a ajudar o tenso candidato Castillo (Joaquim de Almeida). Inicialmente ela tem a impressão de que seu cliente é um completo fracasso. Porém, Jane logo é animada pela resposta agressivamente espontânea de Castillo ao ser agredido por um popular. Ao lado da animosidade pessoal contra Candy, Jane descobre o novo mote da campanha: substituir a esperança pelo mantra da crise e do medo. Somente um homem “forte” como Castillo salvará a Bolívia do caos.

Claramente, a versão ficcional hollywoodiana tenta apagar as digitais da operação psicológica de intervenção geopolítica na Bolívia. Em primeiro lugar, através da personalização narrativa: o contexto político vira um mero pano de fundo para um duelo de redenção pessoal de Jane contra Pat Candy. O problema é que na verdadeira eleição boliviana de 2002, não havia uma rivalidade entre spin doctors norte-americanos que trabalhavam para diferentes candidatos. Goni foi o único candidato que teve a ajuda da pesada artilharia da consultoria política.




Castillo (o Goni ficcional) é mostrado apenas como um pequeno ditador local, arrogante e corrupto, numa republiqueta de bananas. Ao contrário da realidade, ele não tem nenhum vínculo com os EUA e a empresa de consultoria na qual Jane trabalha apenas viu nas eleições bolivianas uma oportunidade de negócios.

As questões cruciais geopolíticas envolvendo a exportação do gás natural são substituídas pela submissão de Castillo ao FMI, por empréstimos.

E para a versão ficcional, todo o processo eleitoral é reduzido a uma competição de marcas no mercado de eleitores: Jane versus Candy são figurados como propagandistas lutando pelos seus produtos. Essa narrativa que confunde processo eleitoral com liberdade de mercado apenas oculta a verdade mais perversa que o documentário original aponta: a consultoria GCS como braço armado de uma intervenção na AL para impedir o avanço da esquerda – ou, pelo menos, das forças contrárias ao Consenso de Washington.

Mas se Sandra Bullock está no filme, tem que ter um happy end. Assim como Goni, Castillo ganha as eleições... para depois trair o povo e fazer o acordo com o FMI no dia seguinte. Condenando o povo à muito mais penúria. O povo vai às ruas em grandes manifestações. Sentindo-se culpada, Jane larga a sua equipe e se une ao povo nos protestos.

Enquanto no documentário de 2005, tudo termina de forma sinistramente cínica: Greenberg faz uma reflexão sobre a fuga de Goni para os EUA e a posse do vice Carlos Mesa dizendo que enquanto o “populismo” prevalecer sobre as “liberdades democráticas e de mercado”, “jamais as democracias latino-americanas amadurecerão”.

Essa foi a deixa para o que viria nas décadas seguintes: guerra híbrida e revoluções colorida. E, como sempre, com a ajuda da máquina hollywoodiana de apagar os rastros da geopolítica norte-americana. 

 

 

Ficha Técnica 

Título: Our Brand is Crisis (documentário)

Diretor: Rachel Boynton

Roteiro: Rachel Boynton

Elenco: Mauricio Balcazar, James Carville, Tad Devine

Produção: Boynton Films Production, BBC

Distribuição:  Koch Lorber Films

Ano: 2005

País: EUA

 

Ficha Técnica 

Título: Our Brand is Crisis (Especialista em Crise)

Diretor: David Gordon Green

Roteiro: Peter Straughan

Elenco: Sandra Bullock, Billy Bob Thornton, Anthony Mackie, Joaquim de Almeida

Produção: Participant, Fortis Films

Distribuição:  Warner Home Video

Ano: 2015

País: EUA

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