Desde o lançamento, o filme "I See You" (2019) é considerado um filme praticamente impossível de ser vendido: como falar dele sem incorrer em spoilers que estragarão totalmente a experiência? Passou a ser promovido como um filme de terror... mas não é! O filme brinca com a percepção do espectador explorando todos os clichês do subgênero “casa invadida”: a típica família de um subúrbio de classe média lutando contra uma força maligna invasora - uma mãe em um relacionamento familiar fraturado. Ela teve um caso, há uma criança desaparecida, coisas estranhas começam a acontecer na sua casa. Mas nada é o que parece. Há um inconsciente social e familiar pulsando no sótão e porão daquela afluente casa de subúrbio.
Dirigido por Brit Adam Randall (iBoy, da Netflix), o filme I See You (2019) tem sido uma verdadeira dor de cabeça para os produtores, desde o seu lançamento: na imprensa especializada e nos festivais acabou até se transformando numa piada – “Bem, é um filme que não podemos falar muito sobre ele... então como vendê-lo?”.
Isso porque é um filme praticamente impossível de ser resenhado sem incorrer num spoiler irreversível que estragará a experiência.
I See You está sendo vendido como um filme de terror estrelado por Helen Hunt protagonizado uma mãe em um relacionamento familiar fraturado. Ela teve um caso, há uma criança desaparecida, coisas estranhas começam a acontecer na sua casa. Duas linhas de história. Mas o filme não é isso. Ao promovê-lo dessa forma, incorremos nos clichês do subgênero da invasão domiciliar – a casa é invadida pelo Mal, ameaçando a integridade familiar.
Mas nada se diz da coisa mais interessante do filme: como a noção de estarmos assistindo a mais um filme de terror “casa invadida” é rapidamente transformada em algo muito diferente – Helen Hunt não está apenas sendo aterrorizada em sua casa.
É um filme de terror apenas no primeiro ato, para depois fugir o máximo possível disso.
Tematicamente o filme é sobre a presença do Mal como se estivesse em sua própria casa, mas aquele tipo de mal que o público está habituado – o Mal invasor e dominador, difuso é que ameaça uma típica família de classe média suburbana, que tenta se reeguer após uma crise.
Obviamente, todo o filme manipula o público através de todos os tropos dos filmes de terror: um grande sobrado com disposição labiríntica dos cômodos, porão, sótão, uma criança que pode ter sido sequestrada ou simplesmente abduzido por uma força maligna, uma família estilhaçada por dentro, permitindo a entrada do Mal etc.
I See You manipula o público exatamente através daquilo que é o cinema: o que vemos no quadro e aquilo que não está, ou o quê imaginamos existir fora do quadro.
Sabemos inconscientemente que há algo a mais, mas temos medo de admitir. E por isso somos conduzidos pelos clichês do terror no primeiro ato. Fazemos a mesma coisa que a família ameaçada pelo Mal: personagens que reagem inconscientemente, que tem medo de admitir algo muito mais sombrio em seus relacionamentos. E agem de acordo com essa aparência, daquilo que supostamente sabem um do outro.
Por isso, o filme adquire um curioso nível metalinguístico: assim como os planos de câmeras manipulam nossa percepção, também os personagens são manipulados pelas próprias aparências que criam uns dos outros. Vivem em uma negação contínua. Seria essa a natureza das próprias relações familiares?
Portanto, é o máximo que podemos falar de I See You. A partir desse ponto, assista primeiro ao filme. Ou, se sabe lidar bem com spoilers, continue a leitura...
O Filme – Alerta de Spoilers à frente
Os Harpers são uma família disfuncional. Jackie Harper (Helen Hunt) recentemente traiu seu marido, Greg (Jon Tenney), perturbando o equilíbrio de sua família, que inclui seu filho adolescente, Connor (Judah Lewis).
Greg é um detetive que investiga o desaparecimento de um garoto de 10 anos (Riley Caya) cujo sequestro na floresta testemunhamos na primeira cena do filme; ele parece que foi retirado de sua bicicleta, em câmera lenta, como se estivesse sendo abduzido para uma nave alienígena ou por alguma entidade sobrenatural no meio da floresta.
Mas aos poucos Outras evidência de horror e o paranormal começam a aparecer num filme cujas sequências predominantemente ocorrem no interior do casarão de subúrbio dos Harpers: fotos começam a desaparecer das paredes, os talheres desaparecem para depois serem inexplicavelmente encontrados na secadora, uma caneca de café acaba no telhado e o toca-discos e a TV ligam sozinhos. É como se a casa estivesse assombrada.
Porém, são apenas falsas pistas do roteiro de Devon Graye que soltam linhas díspares no primeiro ato - drama familiar, suspense policial, horror de invasão da coisa por alguma entidade maligna - aterrando-os nos perigos e traumas do mundo real.
Sob a direção de Adam Randall, o tom do filme é extremamente assustador, com movimentos de câmera assustadores, imagens impressionantes, edições abruptas e uma trilha musical sinistra de William Arcane. Todos eles ajudam a elevar o drama doméstico no centro da história e torná-la muito mais convincente do que poderia ser.
Porém, o segundo ato de I See You reconta os eventos da primeira metade de uma perspectiva diferente, criando uma violenta torsão tanto de narrativa quanto de gênero. Mas se os mistérios do primeiro ato foram respondidos, decepcionantemente despidos de sua aura sobrenatural, ainda haverá muitas inversões de papéis e reviravoltas na trama que avançam a história em novos temas.
Considerando o estado tenso das coisas em torno da família Harper, infelizmente para Jackie, seu amante Todd decide visita-la de surpresa implorando para que ela continue o relacionamento. Até a conversa ser interrompida quando ele é atingido na parte de trás da cabeça por uma caneca de café que foi lançada do sótão. Vendo que a casa está vazia, exceto Connor, Jackie chega à conclusão de que seu filho é responsável por atacar o namorado.
Phrogging e “Parasita”
Acontece que existem mais segredos na casa dos Harpers. I See You começa também a flertar no tema da lenda (real) urbana do phrogging: o ato de esgueirar-se para dentro da casa (ou empresa) de alguém para viver por um período de tempo sem que seus ocupantes saibam. As pessoas que praticam esse estilo de vida são chamadas de phrogs (de frog, “sapo”).
Phrogs são comumente conhecidos por procurar comida e água para sobreviver e usar o banheiro do proprietário para uso pessoal, como tomar banho e ir ao banheiro. Geralmente, os phrogs ficam em um local por apenas alguns dias antes de seguir em frente (embora alguns tenham ficado sabendo que ficaram anos sem serem detectados).
I See You começa a lembrar Parasita, de Bong Joon-ho: a torção narrativa começa quando acompanhamos imagens de câmera na mão de um casal de adolescentes phrogging que invadem a casa dos Harpers e passam a viver escondidos no sótão – Mindy (Libe Barer) e Alec (Owen Teague) que estão filmando a própria experiência de se infiltrar na casa dos outros.
O filme começa a dar espaço a comentários sociais: os adolescentes fervilham ressentimento ao comentar sobre a mobília, objetos de decoração e os hábitos de consumo dos Harpers – os Harpers são ricos e consumistas, enquanto eles estão mais seguros escondendo-se em sótãos de casas alheias do que buscando comida e proteção nas ruas e rodoviárias.
Aos poucos, o papel do pai traído e detetive policial Greg começa a se tornar central na narrativa. Ao mesmo tempo em que investiga o mistério do desaparecimento do menino ele enfrenta estranhos eventos na sua casa – na verdade o phrogging Alec começa a pregar pequenas peças para assustar os Harpers, para atormentá-los com uma suposta ameaça sobrenatural.
Mas Alec e Mindy descobrirão os segredos comprometedores do detetive que deve solucionar o sequestro do adolescente. O que fará o personagem de Greg mergulhar no destino final de todos os Detetives no cinema: no final, a investigação se volta contra o próprio detetive.
Mas em I See You esse retorno ocorrerá numa torção ainda mais radical, revelando culpa e abuso infantil envolvendo o próprio investigador policial.
Dessa maneira, o roteiro de Devon Graye manipula a familiaridade de conhecimento do público com os tropos clássicos dos filmes de terror: nada é o que parece – o phrogging Alec, com sua máscara de sapo que ilustra o pôster promocional do filme, parece ser o psicótico invasor que ameaça a união familiar.
Mas o que descobriremos é o contrário: como o conforto e afluência de classe média dos Harpers e aquele casarão labiríntico escondem a disfuncionalidade do típico modo de vida de um subúrbio norte-americano. Na verdade, os ricos e poderosos são os mais loucos – e muito mais criminosos.
Como em Parasita, I See You reflete o drama do crescimento da desigualdade social e a violenta concentração de riqueza que o capitalismo no seu modo Globalização vem gerando.
Nos dois filmes, a própria arquitetura dos cômodos da casa se torna emblemática como se simbolicamente representasse a irrupção do inconsciente seja familiar ou coletivo: o intruso (a verdade sempre inconveniente do inconsciente) esconde-se em porões e sótãos. Lugares ocultos do dia-a-dia familiar das aparências.
E desse inconsciente que habita os cômodos ocultos explodirá as contradições sejam sociais ou familiares – aquilo que a negação psíquica diária esconde.
Magistralmente, I See You consegue ainda construir uma metalinguagem sobre esse tema: como a própria linguagem de gênero induz o espectador ao engano – como as máscaras dos clichês nos faz não ver aquilo que os planos de câmera estão nos apresentando.
Ficha Técnica |
Título: I See You |
Diretor: Adam Randall |
Roteiro: Devon Graye |
Elenco: Helen Hunt, Jon Tenney, Judah Lewis, Owen Teague, Libe Barer |
Produção: Head Gear Films |
Distribuição: Film & TV House |
Ano: 2019 |
País: EUA |