Mais um filme
ambientado na Detroit decadente habitada por jovens sem futuro cujo único sonho
é cair fora dali. Três jovens marginalizados vivem de pequenos roubos em
subúrbios de classe média. Até que surge a chance da fazerem o grande assalto
que mude a vida de todos para sempre: o casarão de um solitário veterano de
guerra cego, cujo cofre guarda milhares de dólares, fruto de uma indenização. O
que poderia dar errado em um assalto aparentemente tão fácil? No filme “O Homem
nas Trevas” (“Don’t Breathe, 2016) vemos os dilemas morais envolvendo culpa e
racionalizações. Uma batalha entre vontades de pessoas que tomaram decisões
muito ruins, mas que encontraram justificativas a si mesmos para seguir em frente convivendo com a culpa. Um filme que aborda dois temas de fundo sucessivamente freudiano e existencial: o homem não é racional, ele apenas racionaliza; e que,
por isso mesmo, o inferno sempre ficará cheio de boas intenções. Filme sugerido pelo
leitor Felipe Resende.
O homem não é um ser
racional, ele é um ser que racionaliza. Apesar do seu conservadorismo
ideológico e epistemológico, Freud virou o racionalismo do avesso ao descobrir
que o homem age a maior parte do tempo de forma impulsiva, inconscientemente,
para depois racionalizar as suas ações – procurar algum pretexto, álibi,
justificativa e, muitas vezes, um discurso moral que dê fundamento “racional”
aos atos que acabou de cometer.
O filme O Homem nas Trevas (Don’t
Breathe, 2016) do escrito/diretor uruguaio Fede Alvarez (sob a produção e
proteção do diretor e roteirista Sam Raimi – Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio, 1981 e diretor da série
de filmes sobre o Homem Aranha) trata exatamente disso: os dilemas morais
envolvendo culpa e racionalizações. Uma batalha de vontades entre pessoas que
tomaram decisões muito ruins, mas que encontraram justificativas para si mesmas
para poderem conviver com o sentimento de culpa.
E, mais uma vez, O Homem nas Trevas coloca esse
drama/terror no cenário de uma cidade de Detroit, outrora dinâmico centro da
indústria automobilística, hoje abandonada com uma população sem expectativas
vivendo o buraco negro do sonho americano. O filme se alinha a outros diversos
que escolhem Detroit como cenário privilegiado do terror como O Mistério da Rua 7 (2010), Amantes Eternos (2013), Corrente do Mal (2014) ou Lost River (2014) – todos filmes já
discutidos pelo Cinegnose, veja links
ao final dessa postagem.
Desemprego, decadência,
falta de perspectivas e a atmosfera dominante de “no future” com relações
familiares de deteriorando é o cenário perfeito para espíritos ancestrais
buscarem vingança (O Mistério da Rua 7)
ou, então, jovens desalentados e sem futuro tentarem medidas impulsivas para
fugirem de si mesmos ou de suas relações familiares que caem em pedaços, como
em O Homem nas Trevas.
E mais: Fede Alvarez nos
mostra com os dilemas éticos e morais propostos pela narrativa como é
compreensível a máxima de que “de bem-intencionados, o inferno anda cheio” – se
a ética deixa de ter um fundamento racional para se transformar em racionalização,
as ações tornam-se ou imorais ou amorais.
Um grupo de jovens veem no
assalto a uma casa de um homem cego com milhares de dólares no cofre como a
grande chance de mudarem de vida e caírem fora de um mundo que desmorona. Mas
por mais éticas ou bem-intencionadas suas finalidades, suas ações tornam-se
condenáveis e voltam-se contra si mesmos quando descobrem que a vítima também
esconde uma sombria imoralidade também racionalizada pela melhor suposta boa
intenção.
Eles assaltaram o homem cego
errado...
O Filme
Rocky (Jane Levy), seu
namorado Money (Daniel Zovatto) e o pretendente a ser também namorado de Rocky,
Alex (Dylan Minnette) roubam casas nos subúrbios de classe média de Detroit. O
pai de Alex administra uma empresa de segurança residencial, o que permite ao
grupo ter acesso a chaves que quebram os sistemas de monitoramento e alarme das
casas.
Rocky vive uma relação
familiar que desmorona: uma mãe divorciada horrível com um novo padrasto
disfuncional e perigoso. Ela e sua pequena irmã têm fantasias escapistas de
fugirem para as praias da Califórnia. Rocky participa dos roubos na tentativa
de juntar alguma soma de dinheiro que permite realizar esse sonho.
Mas o grupo está cansado de
roubos rápidos que amealham apenas algumas joias e relógios, vendidas depois a
baixos preços no mercado negro de uma Detroit em ruínas com mato crescendo por
toda parte e casas e ruas vazias.
Mas Money tropeça nas
informações de um possível crime que realmente mudaria a vida de todos: nas
profundezas do desolado centro de Detroit (em um dos muitos quarteirões vazios
com casas abandonadas) vive um homem cego (Stephen Lang), ex combatente da
guerra da Guerra do Golfo que perdeu a visão em uma explosão de granada.
Alguns anos antes, sua filha
foi atropelada e morta por uma garota, filha de uma família rica. Por isso,
para indenizá-lo e livrar a motorista da Justiça, o veterano militar recebeu
uma grande quantia em dinheiro que, acreditam, está guardada em algum lugar no
velho casarão em que o velho mora.
Um veterano cego que mora
sozinho. Quão difícil poderia ser esse roubo que mudaria a vida de todos? Qual
o problema moral de assaltar um cego, já que seria o último assalto que fariam
na vida?
O problema é que toda a
perícia e técnicas de um veterano militar foram potencializadas pela cegueira.
Ainda mais, que a geografia do território de batalha é bem conhecida por ele,
nos mínimos detalhes. Ao contrário do trio de assustados ladrões, o homem cego
conhece de forma tátil cada meandro de uma casa labiríntica com corredores e
porões sem saída.
Uma grande ratoeira
Tanto os protagonistas como
nós espectadores nos sentimos claustrofóbicos nesse jogo de caça gato e rato.
Nos seus longos planos de câmera em sequência (principalmente do início da
invasão, na qual morbidamente nos aliamos ao cego veterano – só nós, os espectadores,
e ele conhecem mais o interior daquele casarão do que os pobres protagonistas
com os planos-sequência iniciais) toda a ação de desenrola em tempo real,
criando uma geografia cênica única.
A casa se transforma numa
grande ratoeira, principalmente quando Rocky e Alex descobrem um terrível
segredo daquele combatente cego. Sem revelar um spoiler, podemos dizer que tanto ele quanto os jovens ladrões na
verdade estão confrontando suas vontades e racionalizações. Escolhas moralmente
erradas a partir de dilemas de valores – os jovens que querem fugir de qualquer
maneira daquela cidade decadente e o militar que de alguma forma pretende fazer
justiça pela morte da sua filha.
Em muitos aspectos O Homem nas Trevas lembra o tragicômico
das escolhas erradas dos protagonistas dos irmãos Ethan e Joel Cohen, como, por
exemplo, no filme Fargo (1996).
São protagonistas imbuídos
das melhores intenções, como as de Rocky: levar a sua irmãzinha para conhecer
as praias californianas para crescer de uma maneira sadia, longe daquela família
tóxica.
Mas as decisões erradas e
impulsivas são escamoteadas pela incrível capacidade humana em racionalizar. Mesmo
Alex, talvez o centro da racionalidade dos equívocos em série, também acaba procurando
uma justificativa racionalizadora para embarcar naquela furada: ficar próxima
de Rocky, seu secreto amor, e protege-la do macho-alfa impulsivo Money.
Quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem
Como última reflexão, para
além da discussão da racionalização humana e da distinção entre as boas
intenções éticas e as ações moralmente erradas, há um componente clichê
hollywoodiano nesse filme: a fantasia-clichê de “quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem”.
É um cânone do gênero terror
a díade culpa-punição. Os protagonistas têm sonhos: mudar de vida, recomeçar do
zero, fugir pobreza e da condição de classe marginalizada pelos efeitos do
capitalismo globalizado. Para realizar esses sonhos, têm que lidar com a culpa,
toneladas de racionalizações para, depois, serem torturados e punidos. Para a
ordem moral retornar.
Seja nos protagonistas drugs
de Laranja Mecânica de Kubrick, seja
na selvageria do mestre da violência Sam Peckimpah, seus personagens não
experimentam culpa e tudo explode sem a marca da punição moral. Afinal, todos
são amorais, ninguém sente culpa.
Ao contrário, filmes como O Homem nas Trevas nos mostra que quem
tem sonhos deve ser punido. Jogo subliminar hollywoodiano para gerar
conformismo na vida cotidiana dos espectadores depois que as luzes do cinema se
acendem.
São personagens punidos não
pela amoralidade, mas exatamente pelos dilemas morais racionalizados por
finalidades éticas: segunda chance, recomeço etc.
Ficha Técnica
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Título: O Homem nas Trevas (Don’t Breathe)
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Diretor: Fede
Alvarez
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Roteiro: Fede Alvarez e Rodo Sayagues
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Elenco: Stephen Lang, Jane Levy, Dylan Minnette, Daniel
Zovatto
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Produção: Screen Gems, Stage 6 Films, Ghost
House Pictures
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Distribuição: Sony Pictures
Releasing
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Ano: 2016
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País: EUA
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