Dois fantasmas rondam a atual tecnologia de convergência com seus
celulares e tablets: o solipsismo e a incomunicabilidade. Uma garota sente-se
solitária no seu aniversário porque todos ao seu redor estão imersos em mundos
virtuais. E uma garota ciumenta em um restaurante exige a atenção do seu
namorado, que prefere prestar atenção ao seu pequeno hamster. Ou será um
celular? São as pequenas estórias contadas respectivamente pelos curtas de
animação “Tennessee”(2017) e “Look At Me
Only”(2016). Por que as tecnologias atuais produzem incomunicabilidade? Talvez
porque estamos confundindo comunicação com informação.
Dois
curtas de animações que falam de um mal-estar que ronda a tecnologia de
convergência atual com seus dispositivos móveis: o solipsismo e a
incomunicabilidade. Paradoxalmente, tecnologias que deveriam ser de comunicação
se restringem apenas à transmissão de informações – dados, bits, streamings,
fluxos de informações que ao invés de nos abrir para o mundo (comunicação) nos
faz imergir em mundos virtuais, ciberespaço, que apenas reforça o que já somos,
em um feedback infinito.
O
primeiro curta é Tennessee (2017), um
trabalho de conclusão de graduação da NYU (New York University) de Jack Wedge.
Um curta experimental e estranho. Uma verdadeira cacofonia de ideias visuais,
uma bagunça proposital. Certamente para criar o efeito de que num mundo de
aplicativos que prometem soluções para qualquer coisa, as relações humanas
tornam-se mais caóticas.
Basicamente
a narrativa do curta é bem simples: num mundo do futuro uma garota sente-se
solitária no dia do seu aniversário. Sente-se isolada porque todos ao seu redor
estão imersos em seu próprio mundo virtual – seus irmão, pais e os amigos de
trabalho vivem conectados aos seus dispositivos (computadores, óculos 3D,
celulares etc.). Tenta encontrar alguém através de um aplicativo de
relacionamentos. Mas na verdade, tudo o que procura é um amor através de uma
conexão no mundo real.
O
segundo curta é japonês, do animador Tomoki Misato: Look At Me Only (2016). Uma curiosa animação em stop motion com bonecos de feltro. Um
casal está na mesa de um restaurante. O homem tem um olhar errante e está
diante da sua namorada ciumenta. E na mesa, um alegre hamster ou porquinho da
índia. E o pet do rapaz que olha ansiosamente para as garotas da mesa ao lado,
despertando ciúmes cada vez maiores na sua namorada.
Ela
pede insistentemente para que ele olhe unicamente para ela, enquanto tenta
mostrar para ele as páginas de uma revista de moda. O curta explora temas
comuns como romance e fidelidade, porém trazidos para o campo dos efeitos
perniciosos dos dispositivos móveis.
Além
de tudo, Look At Me Only nos oferece
uma outra visão da estética audiovisual japonesa: acabamos nos acostumando com
a estética de animes e mangás. Porém o curta, com seu detalhismo artesanal, nos
dá uma estética audiovisual bem alternativa.
Mas o
estranho da narrativa o porquê do rapaz
ser tão apegado ao seu hamster, simplesmente ignorando sua namorada que fica
cada vez mais nervosa. Ao ponto de, literalmente, transformar-se numa víbora.
Um futuro hipo-utópico
Tennessee é um típico exemplar daquilo
que o Cinegnose define como
hipo-utopia: o futuro figurado como uma projeção hiperbólica e surreal das
mazelas do nosso presente – sobre esse conceito clique aqui.
Se na
atualidade os dispositivos tecnológicos nos fazem cada vez mais andar curvados,
concentrados em nosso celulares, alheios ao mundo ao redor (muitas vezes mesmo
diante da nossa companhia), no mundo futuro até bebês usarão óculos 3D para
imergirem nos contos de fadas. Não será mais necessário os pais contarem
estórias. A criança já viverá imersa nos mundos de monstros e castelos. Até
porque os pais estarão também imersos em seus próprios mundos, sem tempo para
os próprios filhos.
A
protagonista parece ser a única a resistir: até arrisca a sorte num aplicativo
de relacionamentos, mas procura mesmo uma interação com a realidade – vai de
bicicleta ao emprego, para encontrar o seus colegas concentrados em insidiosos
computadores com telas REM (Rapid Eyes Moviment). Quem sabe, uma forma
subliminar corporativa para manter os funcionários engajados e produtivos.
Comunicação e Informação
Em Look At Me Only o enredo nos leva a
acreditar que a garota é uma verdadeira bruxa, tão mal humorada que odeia o
hamster do namorado. Exige a atenção do namorado e chega até a ficar com ciúmes
de um pobre roedor.
Porém,
o curta dá uma virada, para compreendermos que o hamster é uma fantástica
metáfora do celular que rouba os melhores momentos da relação do casal. Que já
viveu dias melhores, mas agora não consegue competir com um dispositivo móvel.
Por
que esse fenômeno paradoxal? Tecnologias de comunicação que produzem o oposto,
a incomunicabilidade. Quem sabe, porque
confundimos os conceitos de informação e comunicação.
Lá nas
origens da teoria matemática da informação criada por Claude Shannon em 1948 (a
base do código digital, processamento de dados, computação, criptografia etc.)
e da Cibernética de Norbert Wiener em
1942 (teoria dos sistemas e inteligência artificial) estava bem clara para
esses cientistas a diferença entre os dois conceitos.
Para
eles, “comunicação” era incerteza, erro, aleatoriedade. Impossível de ser
quantificada através de uma linguagem artificial. Ao contrário da “informação”,
quantificável, regida pelos princípios da certeza e feedback.
Todos
os dispositivos tecnológicos foram criados e se desenvolveram como meios de
informação, jamais de comunicação. O objetivo final é a transmissão da
informação e o feedback positivo – traduzido midiaticamente pela busca de altos
índices de audiência (na mídia de massa) e nos algoritmos das redes sociais e
motores de busca que procuram aprender os hábitos, atitudes e escolhas dos
usuários.
Até
criar os mundos solipsistas atuais, bolhas virtuais que criam um mundo
customizado para imersão.
Isso
significa que, desde o início, nunca houve alguma coisa chamada de “tecnologia
da comunicação”. Na verdade, até aqui, só tivemos tecnologias de transmissão de
informações que buscam sempre o feedback positivo.
Talvez
apenas no cinema e no teatro ainda exista a possibilidade da comunicação: a
possibilidade da surpresa, do aleatório, do erro. De nos confrontarmos com uma
realidade que nos desafie, choque, que nos contradiga.
Em
outras palavras: enquanto a informação é acumulativa, aditiva, confirmadora de
um repertório pré-existente no receptor. Enquanto a comunicação é irruptiva, nos
confronta, interfere na forma de ver o mundo e as pessoas, transforma. Cria
condições para o surgimento do novo.