quarta-feira, maio 23, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Um homem acorda sem memórias após um acidente automobilístico. Na
medida em que vaga pela estrada em busca de ajuda, vê pessoas e animais caindo
mortos na sua frente. Ao mesmo tempo, flashs de fragmentos de lembranças
aparecem involuntariamente, mostrando que ele está em meio a um gigantesco
quebra-cabeças. Tudo lembra a atmosfera dos episódios da série clássica “Além
da Imaginação”. Mas estamos diante da nova safra de filmes de ficção-científica
independente, onde nunca sabemos o que vamos encontrar pela frente. É um
sci-fi? Um thriller sobre ataques terroristas? Ou uma discussão metafísica
sobre a responsabilidade sobre atos de um passado do qual não lembramos? O
filme canadense “Radius” (2017) eleva os temas gnósticos da “amnésia” e do “detetive”
(aquele que tenta solucionar um enigma) para um novo patamar: sempre tentamos
reunir cacos de um mundo desmoronando, sem saber que o enigma que buscamos desvendar
tem a ver com nós mesmos – o passado esquecido que vem cobrar responsabilidades,
culpas ou contas a acertar.
O
grande prazer em assistir a atual safra de filmes de ficção científica
independentes é que geralmente você nunca sabe o que vai encontrar pela frente.
E as surpresas sempre estão entre o estranho e o surpreendente.
A
produção canadense Radius (2017) é
mais um filme dessa safra com premissas aparentemente clássicas da ficção
científica. Porém, ao longo da narrativa se transformam em outra coisa –
incursões por gêneros híbridos nos quais as premissas sci-fi parecem meros
pretextos para se discutir uma outra coisa. A crítica especializada tem chamado
esses filme de “psicodramas alt. sci fi”.
Radius começa com uma atmosfera típica
da histórica série Além da Imaginação: um homem desperta de um acidente de
carro, sem memória e cercados de acontecimentos estranhos e inexplicáveis:
encontra pessoas mortas ou elas caem mortas na sua frente. Além de pássaros que
caem das árvores fulminados, com olhos esbranquiçados. Assim como os seres
humanos.
Memórias
e amnésias são temas clássicos entre os filmes gnósticos. Radius não é
propriamente um filme gnóstico, mas tem um inegável sabor gnóstico: um homem
busca memórias através de um quebra-cabeças de indícios e gatilhos que
despertam fragmentos de uma vida esquecida.
Aos
poucos vamos descobrindo que não se trata apenas de recuperar lembranças. Mas
de redefinir-se a si próprio: quem você pensa que é, na verdade é quem você não
queria pensar que fosse. Como um detetive dos velhos filmes noir: sempre o mistério
que ele pretende resolver acaba revelando alguma coisa sinistra de si mesmo que
ele gostaria de ter esquecido.
Há
coisas que achamos melhor esquecer? Recuperar memórias é sempre positivo? Para
o Gnosticismo vivemos no sono do esquecimento. Sempre a cada reencarnação
estamos condenados a recomeçar do zero, sem lembrarmos de quem fomos numa outra
existência – nossos erros e acertos. Por isso, não aprendemos porque não lembramos,
prisioneiros naquilo que os budistas chamam de “Roda do Samsara”: o fluxo
incessante de renascimentos do qual só podemos escapar através da iluminação.
Mas a
retomada das memórias pode nos trazer surpresas assustadoras sobre nós mesmos.
Esse tema existencial parece ser o argumento central de Radius, sob as distrações de uma situação fantástica.
O Filme
A
narrativa já começa em ritmo frenético, sem nenhum tipo de introdução. Liam
(Diego Klattenhoff) desperta após um acidente com seu carro em uma estrada.
Acorda sem memórias. Tudo que sabe é que pessoas e animais estão morrendo ao
seu redor.
Liam
acredita que está ocorrendo algum tipo de apocalipse viral: as pessoas caem com
os olhos esbranquiçados. Mas há algo mais, que Liam não demora muito para
descobrir. Na verdade, as mortes ocorrem no entorno do seu perímetro – daí o
título ambíguo do filme: “raio” como a metade do diâmetro de uma
circunferência; ou o “raio” como descarga elétrica.
Por
algum motivo desconhecido, ele está matando as pessoas dentro de um raio de 15
metros. E as coisas ficam ainda mais estranha quando conhece Jane (Charlotte
Sullivan): uma mulher também sem memórias. O único ser vivo a não morrer quando
entra no perímetro de Liam. E mais: quando Jane está dentro desses 15 metros, é
como anulasse o poder mortal de Liam, deixando de matar as pessoas que se
aproximam dele.
Flashs de memórias involuntárias atingem
os dois durante a narrativa, até descobrirem que ambos estavam no mesmo carro
que se acidentou. Por que estavam juntos? Esse é mais um enigma para o
quebra-cabeças que se forma.
Por
onde passam veem transmissões dos telejornais e ouvem notícias nas rádios
locais sobre a suspeita de um atentado terrorista bioquímico. Mas logo a
polícia conectará as mortes com Liam, que se transformará num suspeito de
terrorismo.
Agora,
o casal terá que fugir da polícia e juntar os cacos das memórias involuntárias
para reconstituir quem eles eram antes do acidente.
A
princípio o filme explora a questão da culpa: quanta culpa podemos assumir por
ações das quais não podemos lembrar? Quanta culpa devemos ter por situações que
não podemos ajudar ou reverter? Diante do número de mortos que cresce em torno
de Liam, ele é uma vítima ou um assassino?
Mas a
questão desesperadora para Liam é essa: ele não consegue impedir as pessoas de
se aproximarem dele. Portanto, quem é responsável pelas mortes: ele ou as
pessoas? Como lidar com uma sociedade que não quer deixa-lo sozinho: a polícia
o persegue como suspeito de terrorismo. E as pessoas são atraídas pela
curiosidade ou pela tentativa simples de vingança.
O quebra-cabeças da amnésia
Radius não chega a um quebra-cabeças tão
complexo como o filme Amnésia (Memento, 2000) de Christopher Nolan. Mas
se Amnésia explorava a busca
desesperada por memória pelo protagonista, em Radius, os fragmentos do passado surgem involuntariamente. E
ameaçam revelar alguma coisa muito sombria envolvendo Liam e Julie que, talvez,
gostariam de ter esquecido.
Nolan
em Amnésia apresentava um insight gnóstico: será que a realidade
existe independente da nossa memória? Se esquecemos, será que a realidade ainda
existe? Mas em Radius, há uma outra
questão igualmente gnóstica, mas de um outro tipo: se estamos prisioneiro da
chamada “ Roda do Samsara” do fluxo de sucessivas encarnações e esquecimentos
de quem já fomos e agimos, como esse passado sem lembranças repercute no nosso
futuro?
Somos responsáveis por aquilo do qual não lembramos?
Como a
inconsciência desse limbo do tempo nos atinge no presente. Somos responsáveis
por aquilo da qual não lembramos?
De
certa forma, esse arquétipo gnóstico já estava presente no personagem do
detetive do cinema noir: sempre tentando reunir cacos de um mundo
desmoronando, sem saber que o enigma que busca desvendar tem a ver com ele
mesmo – o passado esquecido que vem cobrar responsabilidades, culpa ou contas a
acertar.
A
virtude de Radius é trazer de volta
esse arquétipo (presente em filmes não exatamente noir, como no terror Coração
Satânico - Angel Heart, 1987 - de
Alan Parker), dessa vez sob uma roupagem sci-fi.
E, como todo filme independente do gênero na atualidade, nos surpreende ao
revelar que, na verdade, está querendo discutir outra coisa. Não tanto
fantástica, mas existencial e ontológica.
Radius eleva o tema gnóstico da amnésia
a um outro patamar: a da discussão da culpabilidade e responsabilidade. O drama
aparentemente metafísico de Liam e Julie põe em cena o próprio drama da prisão
humana no fluxo das sucessivas reencarnações: é como se Liam após o acidente de
carro estivesse vivendo uma outra vida, uma nova oportunidade para se redimir
de alguma coisa muito sombria do passado.
Mas
algum tipo de incidente cósmico fez a culpa do passado retornar como uma
armadilha cruel que perseguirá Liam por toda a narrativa. Certamente o leitor
perceberá que as mortes involuntárias é uma sutil metáfora da nossa própria
condição prisioneira nessa roda cósmica infernal: condenados ao esquecimento,
recorremos aos mesmos erros.
Não
aprendemos, porque a vida parece sempre operar pela lógica da subtração, e não
adição. Tira de nós a memória, criando sempre a ilusão de que começamos tudo de
novo. Como um livro com páginas em branco.
Mas há
sempre algo no passado que nos faz incorrer nos mesmos erros.
Ficha Técnica
Título: Radius
Diretor: Caroline Labrèche, Steeve Léonard
Roteiro:Caroline
Labrèche, Steeve Léonard
Elenco:Diego Katlenhoff, Charlotte Sullivan, Robert Borges
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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