Um repórter da
revista “Veja Brasília” invade um condomínio em São Paulo disposto a fabricar
provas para uma pauta inventada. Pego com a boca na botija, é levado pela
polícia e a família vítima da “reportagem investigativa” faz um BO na
delegacia. Além do episódio ser mais uma contribuição à pesada atmosfera
política atual (a pauta era sobre uma suposta festa infantil de 200 mil reais
pagos em dinheiro vivo pelo ex-presidente Lula), há algo mais: curiosamente o
repórter é um dublê de jornalista e DJ de festas privadas no Lago Sul de
Brasília e clubes que fervem na noite daquela cidade. Está para ser feita uma
pesquisa etnográfica dos novos tipos-ideais do atual neoconservadorismo. Alguns
já podem ser detectados: “coxinhas”, “coxinhas 2.0” e “simples descolados”. E o
intrépido repórter da “Veja” pertence a um novo tipo-ideal: os “novos
tradicionalistas”.
Tudo
começou com uma nota da revista Veja
Brasília redigida por um repórter chamado Ulisses Campbell sobre festa em buffet
infantil na cidade, de um suposto sobrinho do ex-presidente Lula. O custo da
festa teria sido de 200 mil reais pagos em dinheiro pelo ex-presidente. Com os
desmentidos feitos pelo Instituto Lula e comprovada a mentira, o repórter foi
para São Paulo disposto a produzir provas que sustentassem sua bizarra pauta.
Usando
nomes falsos passou a assediar a família de “Frei Chico”, como é conhecido o irmão
de Lula, através de ligações telefônicas como representante do buffet de
Brasília ou como estudante da USP fazendo uma suposta pesquisa. Após ameaças de
que “publicaria o que quisesse”, invadiu o condomínio da família passando-se
por um entregador de livro para obter de uma babá informações sobre horários de
chegada dos moradores, além de obter RG e CPF dela.
Tudo
terminou em um BO registrado pela família em uma delegacia e o repórter
localizado pela Polícia Militar após fugir do condomínio.
Não
importa a vertente política ou ideológica: temos que admitir que termos de técnica jornalística, a
atitude do repórter da Veja foi ética
e moralmente abominável – para sustentar uma pauta, inventam-se afirmações,
arrancam-se declarações a fórceps mediante ameaças, para depois coloca-las no
contexto que o redator quiser.
Brasil: um caldo sociocultural que está entrando em ebulição |
Mas
nada disso é surpreendente. Deixou de ser escandaloso por já ter-se transformado
em modus operandi diário da grande
mídia nesses tempos em que ela obrigatoriamente assumiu o papel de oposição
política ao Governo Federal diante de uma oposição parlamentar inepta.
O mais preocupante de toda essa história é a figura do repórter
Ulisses Campbell: de qual ovo ele foi chocado? Esse modus operandi da grande mídia só pode funcionar se ela encontrar
uma farta mão de obra de jornalistas dispostos a mandar às favas qualquer
lastro ético que ainda resta à profissão.
Uma tipologia do neoconservadorismo
Casos como esse de um repórter pego com a boca na botija tentando
fabricar “provas” para uma pseudonotícia são apenas a ponta do iceberg de um
caldo sociocultural que está sendo gestado já há algum tempo, e que começa a entrar
em ebulição com a atual temperatura política.
Está ainda para ser feita uma pesquisa etnográfica da tipologia do
neoconservadorismo: os novos tipos-ideais, grupos ou tribos urbanas que foram
incubados e que agora estão florescendo em uma atmosfera de polarização e
radicalização.
Faz-se urgente fazer um verdadeiro inventário dos tipos da fauna
humana atual, algo como fez o cartunista Angeli no final da década de 1990 com
uma série de tirinhas chamadas “República dos Bananas”: representações cômicas
de tipos urbanos cotidianos dos meios culturais, corporativos, privados e
políticos – ressentimentos, frustrações, fantasias e mediocridades de todas as
classes como advogados, artistas plásticos, jornalistas e flanelinhas.
Este blog já vem tentando iniciar esse esforço de mapeamento dos
novos tipos-ideais no neoconservadorismo, traçando o perfil dos “coxinhas”,
“coxinhas 2.0”, “simples descolados” etc. – sobre isso clique
aqui.
Angeli e a República dos Bananas: tentar descobrir os tipos-ideais do "Brasil profundo" |
Certamente a carreira e estrepolias do repórter Ulisses Campbell apresentam
características e sintomas de um novo tipo-ideal dentro da atual onda
neoconservadora. Poderíamos chama-lo de “Novo Tradicionalista”.
Hal Niedzviecki no seu livro Hello,
I’m Special: How Individuality Became The New Conformity sustenta que o
novo tradicionalismo prospera em uma espécie de sensibilidade pós-milênio de
que alguma coisa foi perdida na atual sociedade tecnológica – algum propósito
ou conexão que a geração anterior possuía e que a atual obviamente perdeu.
Nostalgia por épocas que não foram vividas e o gosto estético pelo
retro fazem parte desse novo tipo-ideal que acaba transformando esse inclinação
para o passado em pretexto para o reacionarismo e práticas políticas golpistas
como únicas formas de combater um contexto atual que, acredita, esteja
corrompido. Esses traços podem ser encontrados no destemido repórter Ulisses
Campbell, como veremos.
Jornalista e DJ
O que chama a atenção no repórter “investigativo” Ulisses Campbell
é que ele é um dublê de jornalista e DJ nas baladas de clubes e festas privadas
nas noites de São Paulo e Brasília. Segundo o próprio repórter em uma
entrevista concedida ainda nos tempos do jornal Correio Brasiliense, após ganhar dois prêmios Esso regionais com
matérias sobre prostituição infantil nas grandes cidades e crianças mutiladas
em carvoarias, ficou “estressado com o trabalho”. E a partir de 2003 passou a
se aventurar na carreira de DJ.
Começou então a ser “super requisitado para festas particulares e o
preferido do “pessoal fervido” do Itamaraty e dos jornalistas baladeiros de
Brasília. Uma vez por mês, Campbell toca no Gate’s Pub, na festa concorrida
chamada Cabaret, no sábado”, diz o lead da entrevista de 2006 – clique aqui para ler.
Sua
marca é a discotecagem com discos de vinil por ser “um som mais puro e
vibrante” e o repertório dos anos 80 e 90 por serem “musicalmente as décadas
mais ricas”. E disponibiliza sets musicais completos gravados com LPs para
download no SoundCloud.
Um curioso
mix de conservadorismo estético, com a prática da reportagem “investigativa” e
discotecagem de festas privadas no Lago Sul de Brasília.
Campbell
aparece em muitas fotos ao lado da sua coleção de antigos discos de vinis,
usando t-shirts com motivos sobre as velhas bolachonas, posando ao lado de
pick-ups com vinis coloridos – que até lembram a velha coleção da Disquinho,
pequenos vinis dos anos 1970 com histórias infantis.
A marca
dos novos tradicionalistas é inclinar-se para o passado para querer entender o
presente. Para eles, “tradicional” e “inovação” não são excludentes –
estranhamente, ser “cool” é ser tradicional.
Ed Motta: um novo tradicionalista que tem horror ao "Brasil feio". |
O cantor e compositor Ed
Motta é outro Novo Tradicionalista com sua coleção de 20 mil vinis organizados
em ordem alfabética – notório pelo seu apreço também a antiquários, objetos e
roupas “de bom gosto” do passado e o seu apego a “gente bonita do Sul” para
onde gosta de ir de avião para fugir do “povo feio brasileiro”.
Talvez seja atrás dessa
“gente bonita” que também esteja o destemido repórter “investigativo” Ulisses
Campbell: discotecar festas privadas e a “ferveção” de clubes ao som do
“Psicokiller” dos Talking Heads ou “Heart
of Glass” do Blondie, sucessos da new
wave dos anos 1980.
Por que o novo tradicionalista é neoconservador?
Todos os Novos
Tradicionalistas partilham do conservadorismo político, o retorno ao passado
para buscar fantasmas que justifiquem seu reacionarismo – “comunismo”, “ouro de
Cuba”, a ameaça da “União Soviética” – sendo que essa nem mais existe, mas há
Novos Tradicionalistas que falam dela e dos seus planos para dominar o Brasil
em vídeos indignados no YouTube.
Folha de São Paulo: sintonizada com os "Novos Tradicionalistas": Pacman e "Dilman" |
Não é à toa que o Jornal
Folha de São Paulo criou um jogo online
retro para o leitor “entender os problemas do governo Dilma”. O jogo tem o
design dos primeiros jogos de computadores do Pacman – o jogo chama-se
“Dilman”, onde o bonequinho representando a presidenta tenta “capturar”
inimigos, ao som das antigas musicas de computador em MIDI - sobre isso clique aqui.
Os “nerds” da Folha sabem
o público que possuem: conservadorismo político atual se associa a tudo aquilo
que um dia foi inovador e moderno, para hoje se converterem no signo de um novo
tradicionalismo.
Mas os Novos
Tradicionalistas não se tornam neoconservadores por quererem fazer oposição ao
Governo Federal. Isso é natural e faz parte do jogo democrático. O problema que
o conservadorismo estético resulta em reacionarismo social (o fascínio pelos
lugares onde “gente bonita ferve”), preconceito e golpismo – como a intrépida
aventura do repórter Campbell em tentar fabricar provas para uma pauta
fictícia.
Como Novos
Tradicionalistas, exemplares como Ulisses Campbell são ambiciosos e buscam um
lugar de destaque junto aos seus (a gente-bonita-que-ferve): tornam-se a mão de
obra ideal para as pautas decididas em reuniões que não são mais feitas nos
“aquários” das redações, mas agora nos porões escuros das empresas
jornalísticas.
Postagens Relacionadas |