domingo, março 22, 2015

Feitiço do Tempo paralisa ciclovias de São Paulo

Não existe terceiro turno. Estamos todos presos no dia 26 de outubro de 2014, em uma cilada do tempo que nos condena a repetir o mesmo dia, tal qual no filme “O Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, 1993). Os resultados da eleição presidencial nunca são totalizados e retornamos sempre à disputa de uma eleição sem fim. Com isso abriu-se um vórtice tempo/espaço que está sugando o futuro, nos condenando a viver um eterno presente. O exemplo recente da paralisação judicial da construção das ciclovias em São Paulo é mais um sintoma dessa anomalia temporal onde de cosmopolita a cidade de São Paulo tornou-se um enclave neoconservador. Através de um texto adjetivado e vago, o pedido de paralização das ciclovias feito pelo Ministério Público é uma peça exemplar da atual mentalidade neoconservadora que se fundamenta na percepção de terra arrasada e na aposta do quanto-pior-melhor.

Esse humilde blogueiro que vos escreve é um usuário diário de bicicleta como meio de transporte para o trabalho pelas ciclovias/faixas da cidade de São Paulo. Desde o início das suas atividades em 2009 este blog "Cinegnose" tem se posicionado a favor da bike como esporte, lazer e transporte por razões políticas (clique aqui), gnóstico-filosóficas (clique aqui) ou cinematográficas (clique aqui) – sem falar no fator pragmático de que com bicicleta numa cidade como São Paulo sempre temos a certeza que chegaremos no horário a um compromisso.

Após décadas convivendo com a impaciência de motoristas e com um trânsito cada vez mais ríspido e intolerante, sintomas de uma mentalidade paulistana cada vez mais envolta em uma rinocouraça, foi com otimismo que testemunhamos o crescimento da malha de ciclofaixas/vias em São Paulo e a promessa da interligação de uma rede de 400 km.


 Bicicletas como alternativa dentro de uma filosofia multimodal de transporte nas grandes cidades parecia ser um consenso até midiático, traduzido pelo marketing de bancos, supermercados e matérias em telejornais e revistas de uma grande imprensa conservadora.

E surpreendentemente até de montadoras de veículos como aquele comercial em que vemos um ciclista colocando a bike em uma garagem onde está o carro motivo da campanha publicitária.

O Feitiço do Tempo


Estamos presos no dia 26 de outubro de 2014
Tudo parecia caminhar para o futuro quando, repentinamente, fomos capturados por uma espécie de vórtice tempo/espaço semelhante à daquele filme chamado O Feitiço do Tempo (Grounhog Day, 1993) onde um repórter interpretado por Bill Murray torna-se prisioneiro de um bizarro fenômeno temporal: todo dia que ele acorda, é o mesmo dia – Murray está condenado a repetir o mesmo dia para sempre.

No dia 26 de outubro de 2014 o País parece ter entrado em um vórtice tempo/espaço análogo ao do filme – o resultado do segundo turno daquelas eleições presidenciais estranhamente nunca são totalizados e sempre retornamos ao início daquela manhã quando militantes aecistas distribuíam nas ruas cópias das capas da revista Veja que denunciava que Lula e Dilma sabiam de toda a corrupção da Petrobrás e o PT acusava a reportagem de manobra eleitoral.

Desde então, tudo parece que está sendo sugado para esse vórtice onde o tempo se repete e até retrocede: o retorno da União Soviética, a ameaça do comunismo, a iminência de um novo golpe militar e assim por diante.

E o avanço civilizatório das ciclovias e ciclo-faixas em São Paulo é mais uma vítima desse insólito fenômeno temporal.  

Guerra contra as ciclovias


Tudo começou bem antes quando a professora de Semiótica da PUC Lúcia Santaella alertou em redes sociais que as ciclo-faixas continham um perigo subliminar de fazer cidadãos de uma hora para outra se tornarem simpatizantes do PT, do comunismo ou do Diabo em pessoa pela cor vermelha pintada no asfalto – sobre isso clique aqui.

Aos poucos, editores de jornais e revistas da grande imprensa começaram a repetir um mantra: “falta planejamento” – “planejamento”, palavra mágica e propagandística, ótima para ser repetida em qualquer contexto pelos paulistanos sugados por aquele vórtice temporal. 

Buracos, poças d’água, postes, qualquer coisa era sintoma de “falta de planejamento” – como se a cidade alguma vez tivesse sido planejada com o caótico processo de urbanização ao invadir as várzeas dos rios e abrir ruas com repentinos postes que surgem em pleno meio-fio... Pois a conta da histórica “falta de planejamento” da cidade foi cair agora nas bicicletas.

Mas, apesar disso, o tempo andava para frente e as ciclo-faixas eram construídas, ao ponto de serem reconhecidas internacionalmente: São Paulo foi a vencedora da 10a edição  do Suitnable Transport Award em janeiro desse ano com a construção do 214 quilômetros de vias exclusivas para bikes.

Procuradora Camila Mansour Magalhães: também
prisioneira do Feitiço do Tempo

Mas o “feitiço do tempo” de outubro de 2014 encontrou um dos seus maiores vetores de potencialização: o Ministério Público de São Paulo - a promotora Camila Mansour Magalhães da Silveira entra com uma Ação Civil Pública pedindo a paralisação da implementação das ciclovias na cidade. O pedido de liminar da promotora é claramente uma peça política dentro de um conjunto de ações que visam paralisar qualquer iniciativa do prefeito Fernando Haddad que dê visibilidade midiática à administração.

O texto do pedido da promotora é adjetivado e vago com menções ao “desenvolvimento exacerbado do sistema cicloviário”, “número considerável de reclamações de munícipes” (o que é exatamente um “número considerável”? Quais “munícipes”, cara pálida?), “impactos no trânsito”, “falta de planejamento” (o mantra midiático em uma peça jurídica) e, claro, referência a matéria da revista Veja – a promotoria deve ter assinatura garantida da publicação através de verbas públicas do Estado para ajudar a editora da Marginal Pinheiros à beira da insolvência.

A “Síndrome de Higienópolis”


Esse vórtice aberto em 26 de outubro de 2014 parece sugar todo o fluxo do tempo, clivando o acesso ao futuro e paralisando o presente: além dessa batalha do Ministério Público contra a evolução da política de mobilidade urbana em São Paulo, temos a judicialização da Política com a Operação Lava Jato com esperado impacto negativo de 13% no PIB – desemprego de meio milhão de trabalhadores na cadeia econômica que tem no topo as 23 empreiteiras supostamente envolvidas e abaixo de si cerca de 50 mil empresas.

Esse “Dia da Marmota” da política brasileira apresenta sintomas mais profundos que vão além da estratégia de sangramento e, talvez, impeachment, que a oposição quer emplacar contra a presidenta Dilma.  Tornar o sangramento diário como um sacrifício cíclico que arrasta todo o País para uma espécie de repetição da cena do trauma de outubro de 2014.

Em um enclave conservador que é a cidade de São Paulo, esse acidente temporal revela facetas mais profundas no qual se legitima a onda neoconservadora atual: a concepção do Brasil como terra arrasada. Uma espécie de “síndrome de Higienópolis” (como certa vez se referiu a cicloativista Renata Falzoni) onde encara o espaço público, e de resto toda a Nação, como sem futuro ou esperanças.



Motivado pela ideologia meritocrática, encara o automóvel como o símbolo de tudo aquilo que conquistou graças ao mérito, mesmo no meio de uma terra arrasada e perdida como o Brasil. Portanto, qualquer mudança num espaço público que obriga a partilhar as ruas com pessoas menos favorecidas ou bikes que teimam em circular pelos cenários distópicos urbanos, é vista como “delírio autoritário” ou “falta de planejamento”.

Defensores ferrenhos do ideário meritocrático, esses neoconservadores adoram livros motivacionais como o chamado Quem Mexeu no Meu Queijo? de Spencer Johnson, parábola que nos ensina a aceitar mudanças na busca de nossos objetivos. Curioso é que para eles a necessidade de ter de aceitar mudanças só pode ser prescrita aos subalternos e “colaboradores”, nunca para eles próprios. A cidade deve se manter estática para garantir o quinhão de privilégios. Afinal, vivemos em uma terra arrasada e, se eles venceram, foi APESAR da corrupção e de um governo sedento por impostos.

Quanto pior melhor
Essa pergunta a elite paulistana
não quer fazer para si mesma

Mas esse "Feitiço do Tempo" reserva momentos inusitados em telejornais. No momento em que Cesar Tralli no telejornal SPTV anunciava a matéria sobre a liminar que paralisava a construção de ciclovias (com as mesmas imagens repetidas de buracos, postes e poças d’água em ciclo-faixas), sua cara era de constrangimento – logo ele, certa vez flagrado patinando em ciclovias na orla da praia no Rio de Janeiro...

É constrangedor para um apresentador de um telejornal que até pouco tempo atrás participava do consenso da necessidade de evolução das políticas de mobilidade (elogiava a abertura da ciclovia da marginal Pinheiros e iniciativas como a World Bike Tour em São Paulo), agora vê-se também prisioneiro do Dia da Marmota de outubro de 2014.

 E como se solucionará esse “Feitiço do Tempo”? No filme, Phil (Bill Murray) descobre que a sua “vidência” (afinal, ele sabe o que acontecerá em cada detalhe daquele dia) não deve ser usada para a manipulação, mas para ajudar as outras pessoas e melhorar interiormente. Phil deixa de ser arrogante e o tempo passa a andar para frente.

Infelizmente, no atual Feitiço do Tempo a repetição acontece como farsa, isto é, como onda neoconservadora – se no filme Phil queria mudar, aqui na realidade o conservadorismo se baseia na percepção de terra arrasada e na aposta do quanto-pior-melhor.


Aos ciclistas resta voltar a enfrentar a impaciência e ressentimento dos motoristas, que agora têm o álibi da judicialização da Política, enquanto mais uma vez saem às ruas em protesto. 

              Quem sabe um dia a Polícia Federal fará uma blitz nas poucas ciclovias que ainda restarem para prender ciclistas suspeitos em uma futura Operação Lava Bike...


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