sábado, junho 29, 2013

Bombas semióticas explodem na mídia


Paralela à escalada de manifestações no País, nesse momento em cada redação de um veículo de comunicação e em cada cobertura jornalística nas ruas, está sendo travada uma verdadeira guerrilha semiótica: um enorme aparato de recursos bélicos retóricos, linguísticos e semiológicos está sendo mobilizado para saturar fotografias e vídeos com significações que apontam para uma estratégia discursiva bem evidente: a imagens devem ser testemunhas da instabilidade, caos e baderna que dominaria a Nação. Encontramos duas “bombas semióticas” (uma no Portal Terra e outra na autodenominada “edição histórica” da revista Veja) e tentamos desmontá-las em um exercício de engenharia reversa. Bombas camufladas em informação, mas que explodem para criar ondas de choque de um tipo de propaganda baseada no esvaziamento de dois símbolos: a da “bandeira nacional” e o do “manifestante”.

Junto com as manifestações nas ruas de várias cidades no País, está ocorrendo uma guerrilha de um tipo muita especial: uma guerrilha semiótica nas mídias. Depois da primeira semana em que se viram perplexos diante das manifestações que saíram do script do jogo político-institucional e reponderam de uma forma reflexa (taxando os manifestantes de “criminosos” e “politicamente burros”) os meios de comunicação monopolistas encontraram uma narrativa em que podiam ser encaixados os acontecimentos: o roteiro da escalada da instabilidade, descontrole e baderna que estaria minando o governo federal.

Para tanto, nesse momento está sendo mobilizando um impressionante aparato retórico, linguístico e semiótico em fotografias e vídeos. Uma mobilização talvez somente comparável às estratégias discursivas de períodos de guerra como a propaganda política norte-americana e nazista durante a Segunda Guerra Mundial.


Revista "Veja", edição 2327.
Capas de revistas semanais, portais de internet e imagens de TV transbordam de efeitos retóricos e linguísticos, tornando as imagens carregadas e propagandísticas de uma forma tão explícita que é incrível que leitores, telespectadores e internautas não se insurjam contra um produto que diz informar quando, na verdade, é propaganda travestida de notícia.

Para fins didáticos, vamos tentar desmontar duas “bombas semióticas” que se destacaram na blitzkrieg midiática dos últimas dias: primeiro a capa da “edição histórica” (como se autodenominou a revista Veja n° 2327) com o título “Os sete dias que mudaram o Brasil” e o printscreen de um flagrante do portal Terra acessado em 27/06 onde vemos uma chamada com o título “BH se despede de teste com morte, terror nas ruas e sopro de futebol” – veja as imagens ao lado e abaixo.



Portal Terra acessado em 27/06

Dessimbolização


Os primeiros elementos que chamam a atenção nas duas fotos são a bandeira nacional e as figuras solitária de manifestantes.  Esses dois elementos são tradicionalmente dominantes no fotojornalismo centrado em passeatas e manifestações: são sempre destacados como símbolos. Todo símbolo evoca uma força de reconciliação, prenuncia a reunificação de “restos” espalhados pelo mundo. A bandeira nacional é a Nação, a unificação das diferenças étnicas, de classe e geográficas através da força de um pacto. E os manifestantes tradicionalmente são mostrados em conjunto como nas fotos clássicas das manifestações de Maio de 1968 na França, a caminhada dos 100 mil no Brasil contra a ditadura militar etc. Grandes multidões de manifestantes, em movimento ou portando cartazes e faixas, são a materialização de símbolos ideológicos e políticos.

Mas nessas “bombas linguísticas” temos uma espécie de regressão semiótica do símbolo para o índice. A bandeira que vemos nas fotos não é mais um símbolo de unificação, mas um índice de abandono e esgarçamento. Na foto da Veja ela remete ainda a uma regressão intermediária – de símbolo a ícone como “manto” sobre o corpo do manifestante – mas as franjas nas bordas sugerem retoricamente uma bandeira com tecido esgarçado ou rasgado. Ou seja, índices de descontrole e instabilidade, a bandeira vítima da violência e caos.

Na foto do portal Terra a bandeira está jogada, parece cobrir alguma coisa ou está estendida, com o lema “ordem e progresso” invertido. Novamente índices de abandono e enfraquecimento de um outrora símbolo de unificação.

Os manifestantes estão solitários e impotentes: na capa da Veja uma jovem caminha para frente, mas olha para o lado. Sabemos que em jornalismo noticiar que milhares morreram ou ficaram feridos pouco sensibiliza os receptores. Porém se for destacado um caso individual, o impacto será muitas vezes maior. Mas nessas fotos temos algo diferente: o manifestante solitário transmite, novamente, índices do descontrole e instabilidade. No portal Terra, o manifestante está curvado diante da destruição e chamas.

Esse mecanismo de regressão do símbolo para o índice (dessimbolização) tem na atualidade uma força muito grande, principalmente pela sintaxe metonímica do discurso publicitário no qual os jovens estão bem inseridos como consumidores. Se no símbolo temos a ideia que remete a outra coisa por meio da analogia, metáfora ou alegoria, na metonímia temos uma contiguidade (aproximação) entre o índice e a representação de um objeto mais geral já presente na mente do intérprete. Se o texto ou as chamadas falam em “terror nas ruas” e “morte”, a apresentação de antigos elementos simbólicos como a bandeira e o manifestante serão esvaziados de seu simbolismo (Nação e União, respectivamente) para serem apresentados como evidências ou sintomas de um clima mais geral de desordem e caos: em ambas as fotos a bandeira colocada em uma zona de penumbra (futuro tenebroso?), cobrindo algo, jogada ou esfarrapada; e o manifestante solitário, impotente e não mais mostrado em grupo demonstrando força e convicção.

Não é por acaso que, de repente, slogans usados pelos jovens manifestantes são referências a slogans publicitários como “O Gigante Acordou” (da campanha do Johnny Walker): em um ambiente semiótico tão dessimbolizado, a aproximação metonímica com os “símbolos” publicitários torna-se automática.

O Amarelo


O amarelo: na psicologia das cores, é a cor
mais contraditória
Outra coisa que chama a atenção é o domínio da cor amarela, seja na matiz da fotografia como nas chamas que eclodem da destruição que domina a composição fotográfica.

Segundo a psicóloga alemã Eva Heller no seu livro Psicologia das Cores – sentimentos, impressões e simbologia, o amarelo é a cor com um imaginário mais contraditório: otimismo e ao mesmo tempo ciúme. É a cor da diversão e entendimento, mas por outro lado é também da traição. Vai do amarelo ouro ao amarelo enxofre, do nobre ao mal cheiroso e demoníaco. Em combinação com o preto como no caso da foto do portal Terra inspiraria sentimentos negativos como traição e mentira.

É a cor da ameaça (por exemplo, “a ameaça amarela”, para designar a China ou como o “povo amarelo” era encarado nos EUA, como estrangeiros dissimulados e traiçoeiros). O amarelo ouro da bandeira é neutralizado na penumbra para dominar a composição o amarelo enxofre para dar uma atmosfera infernal, reforçando o efeito retórico geral de descontrole, instabilidade e caos.

Composição


Os elementos principais das fotos (manifestante e bandeira) estão em contra luz, reforçando ainda mais o processo de dessimbolização descrito acima, onde bandeira e manifestante são colocados solitários para criar o índice do abandono e impotência.

Os enquadramentos estão inclinados para a esquerda (no caso da Veja, uma inclinação mais leve), em um clássico recurso da linguagem visual dos filmes policiais ou thrillers para reforçar uma situação de risco, desequilíbrio e ameaça latente.

Por isso, a composição é tão saturada que já deixou de ser fotojornalismo ou mesmo “foto-choque” da antiga “imprensa marrom”: são explicitamente posadas em uma decupagem cênica onde os elementos parecem com uma posição marcada como em um palco de teatro. Explícitamente perderam a natureza espontânea de flagrante para se constituírem em fotos posadas e meticulosamente compostas a partir de clichês da galeria de imagens seja da cabeça do fotógrafo ou de editores.

Duplo vínculo na comunicação visual


Um cenário pós-apocalipse divide tranquilamente o
espaço com a normalidade rotineira dos anúncios
O antropólogo e psiquiatra inglês Gregory Bateson costumava definir o problema do esquizofrênico como uma questão de comunicação: ele não conseguia entender certas ciladas lógicas que a nossa linguagem cria que ele chamou de “duplo vínculo”: se uma mãe nervosa ralha com a criança que não para de falar na refeição dizendo “fecha a boca e come”, a criança poderá não compreender as dupla mensagem contraditória (como posso fechar a boca e comer ao mesmo tempo?), entrando num estado de paralisia sem entender a conotação da frase.

Pois igualmente essas fotografias estão imersas em uma dupla mensagem contraditória entre textos e a retórica/disposição semiótica das fotografias, resultando numa interpretação esquizo por parte do receptor.

A capa da Veja fala em fala em “sete dias que mudaram o Brasil”, mas na composição e retórica fotográfica passa a ideia geral de medo, insegurança e impotência. Bem diverso do tom heroico e “histórico” que o texto comunica. Enquanto isso no Portal Terra a fotografia alarmista e aterrorizante compartilha o espaço confortavelmente com anúncios de TV por assinatura, tênis e aparelhos de TV. Se na fotografia temos um cenário de um típico filme “pós-apocalipse” hollywoodiano, no entorno do espaço gráfico há uma normalidade cotidiana contraditória.

Se para Bateson, o duplo vínculo produz uma situação onde o esquizofrênico não consegue compreender simbolismos, metáforas ou conotações e reduz-se à literalidade da linguagem (comer de boca fechada é impossível), da mesma forma os intérpretes dessas fotos tendencialmente vão dessimbolizá-las, reduzindo-as à literalidade do que veem: índices, pistas, evidências do caos e da baderna que tomou conta do País. Sabemos que a repercussão política desse diagnóstico chapado de uma conjuntura pode resultar em apoio das massas a medidas bem drásticas e nefastas.

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Mesmo após desarmarmos essas duas bombas semióticas, não podemos garantir que não explodirão: elas já foram detonadas e continuam explodindo no campo da opinião pública! O que nos leva a duas hipóteses:

(a) apesar do aspecto retoricamente carregado, não espontâneo e posado dessas fotos, elas têm força graças ao senso comum que possuímos em relação às fotografias, tidas como decalques da realidade, e não um exercício arbitrário de intencionalidade do fotógrafo.

(b) a força dessas bombas semióticas é também um sintoma do monopólio midiático: esta retórica e composição visual é tão comum e clichê em qualquer mídia que se tornou naturalizado e autoevidente. 

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