Paralela à escalada de manifestações no País, nesse momento em cada
redação de um veículo de comunicação e em cada cobertura jornalística nas ruas,
está sendo travada uma verdadeira guerrilha semiótica: um enorme aparato de
recursos bélicos retóricos, linguísticos e semiológicos está sendo mobilizado
para saturar fotografias e vídeos com significações que apontam para uma
estratégia discursiva bem evidente: a imagens devem ser testemunhas da
instabilidade, caos e baderna que dominaria a Nação. Encontramos duas “bombas
semióticas” (uma no Portal Terra e outra na autodenominada “edição histórica”
da revista Veja) e tentamos desmontá-las em um exercício de engenharia reversa.
Bombas camufladas em informação, mas que explodem para criar ondas de choque de
um tipo de propaganda baseada no esvaziamento de dois símbolos: a da “bandeira
nacional” e o do “manifestante”.
Junto com as manifestações nas ruas de várias
cidades no País, está ocorrendo uma guerrilha de um tipo muita especial: uma
guerrilha semiótica nas mídias. Depois da primeira semana em que se viram
perplexos diante das manifestações que saíram do script do jogo
político-institucional e reponderam de uma forma reflexa (taxando os
manifestantes de “criminosos” e “politicamente burros”) os meios de comunicação
monopolistas encontraram uma narrativa em que podiam ser encaixados os
acontecimentos: o roteiro da escalada da instabilidade, descontrole e baderna
que estaria minando o governo federal.
Para tanto, nesse momento está sendo mobilizando um
impressionante aparato retórico, linguístico e semiótico em fotografias e
vídeos. Uma mobilização talvez somente comparável às estratégias discursivas de
períodos de guerra como a propaganda política norte-americana e nazista durante
a Segunda Guerra Mundial.
Revista "Veja", edição 2327. |
Capas de revistas semanais, portais de internet e
imagens de TV transbordam de efeitos retóricos e linguísticos, tornando as
imagens carregadas e propagandísticas de uma forma tão explícita que é incrível
que leitores, telespectadores e internautas não se insurjam contra um produto
que diz informar quando, na verdade, é propaganda travestida de notícia.
Para fins didáticos, vamos tentar desmontar duas
“bombas semióticas” que se destacaram na blitzkrieg
midiática dos últimas dias: primeiro a capa da “edição histórica” (como se
autodenominou a revista Veja n° 2327) com o título “Os sete dias que mudaram o
Brasil” e o printscreen de um
flagrante do portal Terra acessado em 27/06 onde vemos uma chamada com o título
“BH se despede de teste com morte, terror nas ruas e sopro de futebol” – veja
as imagens ao lado e abaixo.
Portal Terra acessado em 27/06 |
Dessimbolização
Os primeiros elementos que chamam a atenção nas
duas fotos são a bandeira nacional e as figuras solitária de manifestantes. Esses dois elementos são tradicionalmente
dominantes no fotojornalismo centrado em passeatas e manifestações: são sempre
destacados como símbolos. Todo símbolo evoca uma força de reconciliação,
prenuncia a reunificação de “restos” espalhados pelo mundo. A bandeira nacional
é a Nação, a unificação das diferenças étnicas, de classe e geográficas através
da força de um pacto. E os manifestantes tradicionalmente são mostrados em
conjunto como nas fotos clássicas das manifestações de Maio de 1968 na França,
a caminhada dos 100 mil no Brasil contra a ditadura militar etc. Grandes
multidões de manifestantes, em movimento ou portando cartazes e faixas, são a
materialização de símbolos ideológicos e políticos.
Mas nessas “bombas linguísticas” temos uma espécie
de regressão semiótica do símbolo para o índice. A bandeira que vemos nas fotos
não é mais um símbolo de unificação, mas um índice de abandono e esgarçamento.
Na foto da Veja ela remete ainda a uma regressão intermediária – de símbolo a ícone
como “manto” sobre o corpo do manifestante – mas as franjas nas bordas sugerem
retoricamente uma bandeira com tecido esgarçado ou rasgado. Ou seja, índices de
descontrole e instabilidade, a bandeira vítima da violência e caos.
Na foto do portal Terra a bandeira está jogada,
parece cobrir alguma coisa ou está estendida, com o lema “ordem e progresso”
invertido. Novamente índices de abandono e enfraquecimento de um outrora
símbolo de unificação.
Os manifestantes estão solitários e impotentes: na
capa da Veja uma jovem caminha para frente, mas olha para o lado. Sabemos que
em jornalismo noticiar que milhares morreram ou ficaram feridos pouco
sensibiliza os receptores. Porém se for destacado um caso individual, o impacto
será muitas vezes maior. Mas nessas fotos temos algo diferente: o manifestante
solitário transmite, novamente, índices do descontrole e instabilidade. No
portal Terra, o manifestante está curvado diante da destruição e chamas.
Esse mecanismo de regressão do símbolo para o
índice (dessimbolização) tem na atualidade uma força muito grande,
principalmente pela sintaxe metonímica do discurso publicitário no qual os
jovens estão bem inseridos como consumidores. Se no símbolo temos a ideia que
remete a outra coisa por meio da analogia, metáfora ou alegoria, na metonímia
temos uma contiguidade (aproximação) entre o índice e a representação de um
objeto mais geral já presente na mente do intérprete. Se o texto ou as chamadas
falam em “terror nas ruas” e “morte”, a apresentação de antigos elementos
simbólicos como a bandeira e o manifestante serão esvaziados de seu simbolismo
(Nação e União, respectivamente) para serem apresentados como evidências ou
sintomas de um clima mais geral de desordem e caos: em ambas as fotos a
bandeira colocada em uma zona de penumbra (futuro tenebroso?), cobrindo algo,
jogada ou esfarrapada; e o manifestante solitário, impotente e não mais
mostrado em grupo demonstrando força e convicção.
Não é por acaso que, de repente, slogans usados
pelos jovens manifestantes são referências a slogans publicitários como “O
Gigante Acordou” (da campanha do Johnny Walker): em um ambiente semiótico tão
dessimbolizado, a aproximação metonímica com os “símbolos” publicitários
torna-se automática.
O Amarelo
O amarelo: na psicologia das cores, é a cor mais contraditória |
Outra coisa que chama a atenção é o domínio da cor
amarela, seja na matiz da fotografia como nas chamas que eclodem da destruição
que domina a composição fotográfica.
Segundo a psicóloga alemã Eva Heller no seu livro Psicologia das Cores – sentimentos, impressões
e simbologia, o amarelo é a cor com um imaginário mais contraditório:
otimismo e ao mesmo tempo ciúme. É a cor da diversão e entendimento, mas por
outro lado é também da traição. Vai do amarelo ouro ao amarelo enxofre, do
nobre ao mal cheiroso e demoníaco. Em combinação com o preto como no caso da
foto do portal Terra inspiraria sentimentos negativos como traição e mentira.
É a cor da ameaça (por exemplo, “a ameaça amarela”,
para designar a China ou como o “povo amarelo” era encarado nos EUA, como estrangeiros
dissimulados e traiçoeiros). O amarelo ouro da bandeira é neutralizado na
penumbra para dominar a composição o amarelo enxofre para dar uma atmosfera
infernal, reforçando o efeito retórico geral de descontrole, instabilidade e
caos.
Composição
Os elementos principais das fotos (manifestante e
bandeira) estão em contra luz, reforçando ainda mais o processo de
dessimbolização descrito acima, onde bandeira e manifestante são colocados
solitários para criar o índice do abandono e impotência.
Os enquadramentos estão inclinados para a esquerda
(no caso da Veja, uma inclinação mais leve), em um clássico recurso da
linguagem visual dos filmes policiais ou thrillers para reforçar uma situação
de risco, desequilíbrio e ameaça latente.
Por isso, a composição é tão saturada que já deixou
de ser fotojornalismo ou mesmo “foto-choque” da antiga “imprensa marrom”: são
explicitamente posadas em uma decupagem cênica onde os elementos parecem com
uma posição marcada como em um palco de teatro. Explícitamente perderam a
natureza espontânea de flagrante para se constituírem em fotos posadas e
meticulosamente compostas a partir de clichês da galeria de imagens seja da
cabeça do fotógrafo ou de editores.
Duplo vínculo na comunicação visual
Um cenário pós-apocalipse divide tranquilamente o espaço com a normalidade rotineira dos anúncios |
O antropólogo e psiquiatra inglês Gregory Bateson
costumava definir o problema do esquizofrênico como uma questão de comunicação:
ele não conseguia entender certas ciladas lógicas que a nossa linguagem cria
que ele chamou de “duplo vínculo”: se uma mãe nervosa ralha com a criança que
não para de falar na refeição dizendo “fecha a boca e come”, a criança poderá
não compreender as dupla mensagem contraditória (como posso fechar a boca e
comer ao mesmo tempo?), entrando num estado de paralisia sem entender a
conotação da frase.
Pois igualmente essas fotografias estão imersas em
uma dupla mensagem contraditória entre textos e a retórica/disposição semiótica
das fotografias, resultando numa interpretação esquizo por parte do receptor.
A capa da Veja fala em fala em “sete dias que
mudaram o Brasil”, mas na composição e retórica fotográfica passa a ideia geral
de medo, insegurança e impotência. Bem diverso do tom heroico e “histórico” que
o texto comunica. Enquanto isso no Portal Terra a fotografia alarmista e
aterrorizante compartilha o espaço confortavelmente com anúncios de TV por
assinatura, tênis e aparelhos de TV. Se na fotografia temos um cenário de um
típico filme “pós-apocalipse” hollywoodiano, no entorno do espaço gráfico há
uma normalidade cotidiana contraditória.
Se para Bateson, o duplo vínculo produz uma
situação onde o esquizofrênico não consegue compreender simbolismos, metáforas
ou conotações e reduz-se à literalidade da linguagem (comer de boca fechada é
impossível), da mesma forma os intérpretes dessas fotos tendencialmente vão
dessimbolizá-las, reduzindo-as à literalidade do que veem: índices, pistas,
evidências do caos e da baderna que tomou conta do País. Sabemos que a
repercussão política desse diagnóstico chapado de uma conjuntura pode resultar
em apoio das massas a medidas bem drásticas e nefastas.
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Mesmo após desarmarmos essas duas bombas semióticas,
não podemos garantir que não explodirão: elas já foram detonadas e continuam
explodindo no campo da opinião pública! O que nos leva a duas hipóteses:
(a) apesar do aspecto retoricamente carregado, não
espontâneo e posado dessas fotos, elas têm força graças ao senso comum que
possuímos em relação às fotografias, tidas como decalques da realidade, e não
um exercício arbitrário de intencionalidade do fotógrafo.
(b) a força dessas bombas semióticas é também um
sintoma do monopólio midiático: esta retórica e composição visual é tão comum e
clichê em qualquer mídia que se tornou naturalizado e autoevidente.