O mais premiado curta de animação argentino e que chegou a ficar entre
os dez finalistas para concorrer ao Oscar da categoria, “Luminaris” (2011) de
Juan Pablo Zaramella apresenta em seus seis minutos uma grande riqueza
simbólica a partir da colagem de estilos que vai da arte Deco e Surrealismo ao
Filme Noir e Neorrealismo. O que representaria a alegoria de um universo alternativo
governado por uma estranha força magnética do Sol que arrasta todos para os
seus trabalhos? Apesar de Zaramella desconversar sobre o simbolismo do seu
curta, podemos fazer um pequeno exercício de leitura do conteúdo da narrativa a
partir de três pontos de vista: o marxista, o conspiratório e o gnóstico.
O mais premiado curta argentino, “Luminaris” em
2012 foi pré-selecionado entre os dez finalistas para concorrer ao Oscar dentro
de sua categoria. Feito com uma técnica de stop-motion
denominada pixilation onde atores
reais interagem com objetos inanimados - veja o curta abaixo.
Dirigido por Juan Pablo Zaramella, a narrativa de
seis minutos é ambientada em uma Buenos Aires que parece o resultado do
cruzamento entre filme noir, realismo fantástico, neorrealismo e surrealismo. O
curta conta a história de um homem (Gustavo Cornillón) que vive em um universo
alternativo onde o tempo, o trabalho e o cotidiano são controlados pela luz do sol
que age como espécie de força magnética, despertando a todos para depois
arrastá-los ao trabalho e trazê-los ao final do expediente de volta para casa.
O protagonista tem um trabalho rotineiro e repetitivo na linha de montagem
em uma fábrica de lâmpadas onde são produzidas de uma forma, digamos, não
muito ortodoxa...
Assistindo ao curta, podemos imaginar as
dificuldades de produção e por que levou dois anos para ser concluído: a
imprevisibilidade do tempo e as mudanças na intensidade movimentação do sol
tornaram as tomadas de cena extremamente complicadas.
Juan Pablo Zaramella afirma que a temática do curta é “o trabalho
em equipe e a importância dos sonhos e de manter os ideais pessoais” – “Juan Pablo Zaramella: “Luminaris fue creciendo y en un momento me di
cuenta que tenía algo mucho más grande que lo que había planeado
originalmente”, EscrebiendoCine , 16/01/2012.
A estranha fábrica
de lâmpadas, a rotina maquinal daquela Buenos Aires alternativa de Zaramella, e
a oposição entre a luz do Sol e a luz das lâmpadas são elementos que permitem
ao espectador fazer diversas leituras. Sentimos que “Luminarias” é uma alegoria
de alguma coisa a mais do que o diretor falou na entrevista, nitidamente em tom
protocolar e genérico.
Por isso, vamos
fazer um pequeno exercício de interpretação a partir de três leituras
possíveis: (a) Marxista; (b) Conspiratória; e (c) Gnóstica.
Assista primeiro ao curta para depois discutirmos sobre as leituras:
(a) Leitura Marxista
O tema do curta
não é o “trabalho em equipe” em geral, mas um específico tipo de trabalho, o da
linha de montagem industrial, que produz a alienação e o estranhamento do ser
humano em relação ao seu próprio trabalho.
Esse é o conceito
central na teoria marxista, resultante da exploração e do domínio do capital na
reprodução da vida material e no domínio do trabalho. Se o trabalho define a
essência humana, para Marx o Capitalismo não permitiria a realização dessa
essência por causa de uma série de mediações que se interporiam entre o homem e
o produto do seu trabalho: propriedade privada, intercâmbio e divisão do
trabalho.
No curta, o
protagonista está confinado em uma divisão entre dezenas que existem na fábrica, fazendo um
trabalho de ação repetitiva e especializada, tal como Chaplin na insana linha
de montagem do filme “Tempos Modernos”: o protagonista sopra o dia todo
pequenas esferas semelhantes a bolinhas de gude que se transformam em lâmpadas.
Seu trabalho é fragmentado: faz o mesmo gesto repetitivo o dia inteiro para
voltar para casa e recomeçar no dia seguinte. Ele perde a noção do Todo - para
onde vai o produto do seu trabalho que se perde em uma série de subdivisões na
cadeia de produção? Ele tem uma relação de alienação, estranhamento e repulsa
com aquilo que deveria ser sua essência: o trabalho. O produto do trabalho não
é mais dele, mas do Capital.
Tudo parece alheio ao
protagonista, menos o seu sonho secreto planejado minuciosamente em um papel:
aparentemente ele planeja construir nada mais do que ele já produz na empresa.
Porém, dessa vez ele será senhor da integralidade do processo produtivo. Ele
rouba dezenas de esferas matéria-prima da fábrica até encher um pote. Ele
engole, então, todas as esferas ao mesmo tempo para soprá-las e produzir uma
gigantesca lâmpada – talvez, uma metáfora do fim da divisão do trabalho alienante
em que vivia, condenado a soprar uma por uma das esferas.
A gigantesca lâmpada revela-se
ser um balão, por meio do qual o protagonista foge com a sua amada. Do alto, vê
seu antigo chefe na fábrica possesso ao vê-lo fugir pelos ares.
Um marxista ortodoxo condenaria
esse final como um sonho egoísta de um pequeno-burguês: ao invés de lutar e
liderar uma revolução sindical na fábrica para mudar as condições de trabalho de todos,
decide pular fora num sonho romântico individualista.
(b) Leitura Conspiratória
É conhecida a teoria
conspiratória da obsolescência planejada das lâmpadas. Na década de 1920 um
cartel de lâmpadas nos EUA decidiu que elas não deveriam durar mais do que mil
horas, sendo que na época a duração média era de mais de duas mil horas – sobre
isso veja abaixo o documentário “Pyramids of Waste” aka “The Light Bulb
Conspiracy” (2010). Isso alterou o conceito de consumo, tornando-se um
paradigma natural a necessidade de trocarmos periodicamente os produtos por
obsolescência seja física (o produto simplesmente deixa de funcionar),
tecnológica (uma nova geração “superior” é lançada) ou psicológica (moda). Graças
a essa obsolescência intencional das coisas, somos forçados a sempre consumir.
Podemos perceber no papel do
projeto do protagonista o esboço de uma nova lâmpada, mais poderosa e
duradoura. Em uma sequência do curta o protagonista traz para casa a matéria-prima
roubada da fábrica. Tenta em soprar uma das esferas para produzir uma lâmpada,
o que resulta numa explosão. A fábrica produz evidentemente lâmpadas de baixa qualidade. Seu sonho é produzir algo melhor, mais
duradouro. Isso exigiria a utilização de dezenas de esferas para uma única
lâmpada o que está fora de cogitação para a fábrica, regida pelo cálculo
capitalista de lucro máximo com menores custos.
O protagonista pretende enfiar
várias esferas na boca, soprá-las simultaneamente para produzir uma lâmpada tão
perfeita que o faça fugir daquele lugar. Ele é o gênio empreendedor, o
cientista cujas invenções batem de frente com os paradigmas econômicos limitantes
do capitalismo. Uma espécie de Nikola Tesla das lâmpadas - sobre a vida desse controverso cientista veja links abaixo.
(c) Leitura Gnóstica
Zaramella cria em “Luminaris” um
universo alternativo com uma lógica própria. Tudo é governado pelo sol através
de uma espécie de força magnética: o relógio, o despertador, as pessoas são
despertadas e arrastadas até os seus trabalhos na medida em que o sol se
desloca no céu. Há uma atmosfera de confinamento e prisão. O figurino dos
personagens e as ambiências remetem aos filmes noir (conjunto de filmes norte-americanos da década de 1940 associados a detetives particulares e policiais em um mundo cínico e hostil), que exploravam exatamente essas atmosferas carregadas de
paranoia e confinamento.
O surpreendente no curta é que o
Sol, astro celeste habitualmente investido de simbolismos positivos como
vitalidade, energização etc., aqui tem um papel inverso: subjugar, arrastar,
ser um instrumento ativo naquele universo de dominação e controle.
Do lado oposto está a luz das
lâmpadas. Elas são fabricadas a partir do sopro masculino e do olhar feminino
que faz o filamento da lâmpada incandescer. Ao contrário do Sol, o brilho da lâmpada
é revestido de um simbolismo positivo. Seu brilho e energia estão submetidos à
produção industrial, fragmentada em pequenas lâmpadas. O protagonista sonha em
fazer uma lâmpada cujo brilho o liberte.
Haveria aqui um evidente
simbolismo gnóstico: o sopro (referência ao sopro divino que dá vida) vem de
dentro do ser humano e o olhar feminino (Sophia?) por fim dá energia e
vitalidade àquele sopro. Sophia na mitologia gnóstica é um personagem feminino
de importância, pois é o aeon que vem
despertar a fagulha de luz interior em todos nós (gnose) para fazer-nos
conectar de volta com a Plenitude (o Pleroma).
A divindade só poderia estar
dentro de cada um de nós por que o cosmos em que vivemos está corrompido, nos
confina e explora de nós essa fagulha de luz espiritual (no curta, a fábrica
que produz a luz como mercadoria) para manter em funcionamento esse mesmo
cosmos. O Sol só poderia fazer parte desse perverso esquema como instrumento de
dominação e controle. Como diria o poeta maldito William Blake, “a Natureza só
pode ter sido obra do Demônio”.
E no final do curta, a gnose:
com a ajuda da sua enamorada e colega de fábrica, juntos transformam essa
fagulha em uma lâmpada gigantesca que os fará ir em direção aos céus, em um
simbolismo de transcendência espiritual e de reconexão com a Plenitude.
Após esse pequeno exercício de
leitura de um curta, o leitor poderá optar por uma dessas alternativas ou
sugerir uma outra leitura por outro ponto de vista. O que podemos concluir
desse exercício é a formulação de uma hipótese de que existem basicamente três leituras
possíveis de um produto cultural em geral: o ideológico, o político-conspiratório
e o esotérico-místico-gnóstico.
Ficha Técnica
- Título: Luminaris
- Diretor: Juan Pablo Zaramella
- Roteiro: Gustavo Cornillón, Juan Pablo Zaramella
- Elenco: Gustavo Cornillón, Maria Alche, Luis Rial
- Trilha musical: “Lluvia de Estrellas”
- Ano: 2011
- País: Argentina