quarta-feira, junho 26, 2013

Lâmpadas e conspirações no curta argentino "Luminaris"


O mais premiado curta de animação argentino e que chegou a ficar entre os dez finalistas para concorrer ao Oscar da categoria, “Luminaris” (2011) de Juan Pablo Zaramella apresenta em seus seis minutos uma grande riqueza simbólica a partir da colagem de estilos que vai da arte Deco e Surrealismo ao Filme Noir e Neorrealismo. O que representaria a alegoria de um universo alternativo governado por uma estranha força magnética do Sol que arrasta todos para os seus trabalhos? Apesar de Zaramella desconversar sobre o simbolismo do seu curta, podemos fazer um pequeno exercício de leitura do conteúdo da narrativa a partir de três pontos de vista: o marxista, o conspiratório e o gnóstico.

O mais premiado curta argentino, “Luminaris” em 2012 foi pré-selecionado entre os dez finalistas para concorrer ao Oscar dentro de sua categoria. Feito com uma técnica de stop-motion denominada pixilation onde atores reais interagem com objetos inanimados - veja o curta abaixo.

Dirigido por Juan Pablo Zaramella, a narrativa de seis minutos é ambientada em uma Buenos Aires que parece o resultado do cruzamento entre filme noir, realismo fantástico, neorrealismo e surrealismo. O curta conta a história de um homem (Gustavo Cornillón) que vive em um universo alternativo onde o tempo, o trabalho e o cotidiano são controlados pela luz do sol que age como espécie de força magnética, despertando a todos para depois arrastá-los ao trabalho e trazê-los ao final do expediente de volta para casa. O protagonista tem um trabalho rotineiro e repetitivo na linha de montagem em uma fábrica de lâmpadas onde são produzidas de uma forma, digamos, não muito ortodoxa...

Mas o protagonista alimenta um sonho, um projeto que será revolucionário. Às escondidas ele rouba a matéria- prima da fábrica de lâmpadas para em casa traçar os diagramas do seu secreto projeto.

Assistindo ao curta, podemos imaginar as dificuldades de produção e por que levou dois anos para ser concluído: a imprevisibilidade do tempo e as mudanças na intensidade movimentação do sol tornaram as tomadas de cena extremamente complicadas.

Juan Pablo Zaramella afirma que a temática do curta é “o trabalho em equipe e a importância dos sonhos e de manter os ideais pessoais” – “Juan Pablo Zaramella: “Luminaris fue creciendo y en un momento me di cuenta que tenía algo mucho más grande que lo que había planeado originalmente”, EscrebiendoCine , 16/01/2012.

A estranha fábrica de lâmpadas, a rotina maquinal daquela Buenos Aires alternativa de Zaramella, e a oposição entre a luz do Sol e a luz das lâmpadas são elementos que permitem ao espectador fazer diversas leituras. Sentimos que “Luminarias” é uma alegoria de alguma coisa a mais do que o diretor falou na entrevista, nitidamente em tom protocolar e genérico.

Por isso, vamos fazer um pequeno exercício de interpretação a partir de três leituras possíveis: (a) Marxista; (b) Conspiratória; e (c) Gnóstica.

Assista primeiro ao curta para depois discutirmos sobre as leituras:


(a) Leitura Marxista


O tema do curta não é o “trabalho em equipe” em geral, mas um específico tipo de trabalho, o da linha de montagem industrial, que produz a alienação e o estranhamento do ser humano em relação ao seu próprio trabalho.

Esse é o conceito central na teoria marxista, resultante da exploração e do domínio do capital na reprodução da vida material e no domínio do trabalho. Se o trabalho define a essência humana, para Marx o Capitalismo não permitiria a realização dessa essência por causa de uma série de mediações que se interporiam entre o homem e o produto do seu trabalho: propriedade privada, intercâmbio e divisão do trabalho.

No curta, o protagonista está confinado em uma divisão entre dezenas que existem na fábrica, fazendo um trabalho de ação repetitiva e especializada, tal como Chaplin na insana linha de montagem do filme “Tempos Modernos”: o protagonista sopra o dia todo pequenas esferas semelhantes a bolinhas de gude que se transformam em lâmpadas. Seu trabalho é fragmentado: faz o mesmo gesto repetitivo o dia inteiro para voltar para casa e recomeçar no dia seguinte. Ele perde a noção do Todo - para onde vai o produto do seu trabalho que se perde em uma série de subdivisões na cadeia de produção? Ele tem uma relação de alienação, estranhamento e repulsa com aquilo que deveria ser sua essência: o trabalho. O produto do trabalho não é mais dele, mas do Capital.

Tudo parece alheio ao protagonista, menos o seu sonho secreto planejado minuciosamente em um papel: aparentemente ele planeja construir nada mais do que ele já produz na empresa. Porém, dessa vez ele será senhor da integralidade do processo produtivo. Ele rouba dezenas de esferas matéria-prima da fábrica até encher um pote. Ele engole, então, todas as esferas ao mesmo tempo para soprá-las e produzir uma gigantesca lâmpada – talvez, uma metáfora do fim da divisão do trabalho alienante em que vivia, condenado a soprar uma por uma das esferas.

A gigantesca lâmpada revela-se ser um balão, por meio do qual o protagonista foge com a sua amada. Do alto, vê seu antigo chefe na fábrica possesso ao vê-lo fugir pelos ares.

Um marxista ortodoxo condenaria esse final como um sonho egoísta de um pequeno-burguês: ao invés de lutar e liderar uma revolução sindical na fábrica para mudar as condições de trabalho de todos, decide pular fora num sonho romântico individualista.

(b) Leitura Conspiratória


É conhecida a teoria conspiratória da obsolescência planejada das lâmpadas. Na década de 1920 um cartel de lâmpadas nos EUA decidiu que elas não deveriam durar mais do que mil horas, sendo que na época a duração média era de mais de duas mil horas – sobre isso veja abaixo o documentário “Pyramids of Waste” aka “The Light Bulb Conspiracy” (2010). Isso alterou o conceito de consumo, tornando-se um paradigma natural a necessidade de trocarmos periodicamente os produtos por obsolescência seja física (o produto simplesmente deixa de funcionar), tecnológica (uma nova geração “superior” é lançada) ou psicológica (moda). Graças a essa obsolescência intencional das coisas, somos forçados a sempre consumir.

Podemos perceber no papel do projeto do protagonista o esboço de uma nova lâmpada, mais poderosa e duradoura. Em uma sequência do curta o protagonista traz para casa a matéria-prima roubada da fábrica. Tenta em soprar uma das esferas para produzir uma lâmpada, o que resulta numa explosão. A fábrica produz evidentemente lâmpadas de baixa qualidade. Seu sonho é produzir algo melhor, mais duradouro. Isso exigiria a utilização de dezenas de esferas para uma única lâmpada o que está fora de cogitação para a fábrica, regida pelo cálculo capitalista de lucro máximo com menores custos.

O protagonista pretende enfiar várias esferas na boca, soprá-las simultaneamente para produzir uma lâmpada tão perfeita que o faça fugir daquele lugar. Ele é o gênio empreendedor, o cientista cujas invenções batem de frente com os paradigmas econômicos limitantes do capitalismo. Uma espécie de Nikola Tesla das lâmpadas - sobre a vida desse controverso cientista veja links abaixo.

(c) Leitura Gnóstica


Zaramella cria em “Luminaris” um universo alternativo com uma lógica própria. Tudo é governado pelo sol através de uma espécie de força magnética: o relógio, o despertador, as pessoas são despertadas e arrastadas até os seus trabalhos na medida em que o sol se desloca no céu. Há uma atmosfera de confinamento e prisão. O figurino dos personagens e as ambiências remetem aos filmes noir (conjunto de filmes norte-americanos da década de 1940 associados a detetives particulares e policiais em um mundo cínico e hostil), que exploravam exatamente essas atmosferas carregadas de paranoia e confinamento.

O surpreendente no curta é que o Sol, astro celeste habitualmente investido de simbolismos positivos como vitalidade, energização etc., aqui tem um papel inverso: subjugar, arrastar, ser um instrumento ativo naquele universo de dominação e controle.

Do lado oposto está a luz das lâmpadas. Elas são fabricadas a partir do sopro masculino e do olhar feminino que faz o filamento da lâmpada incandescer. Ao contrário do Sol, o brilho da lâmpada é revestido de um simbolismo positivo. Seu brilho e energia estão submetidos à produção industrial, fragmentada em pequenas lâmpadas. O protagonista sonha em fazer uma lâmpada cujo brilho o liberte.

Haveria aqui um evidente simbolismo gnóstico: o sopro (referência ao sopro divino que dá vida) vem de dentro do ser humano e o olhar feminino (Sophia?) por fim dá energia e vitalidade àquele sopro. Sophia na mitologia gnóstica é um personagem feminino de importância, pois é o aeon que vem despertar a fagulha de luz interior em todos nós (gnose) para fazer-nos conectar de volta com a Plenitude (o Pleroma).

A divindade só poderia estar dentro de cada um de nós por que o cosmos em que vivemos está corrompido, nos confina e explora de nós essa fagulha de luz espiritual (no curta, a fábrica que produz a luz como mercadoria) para manter em funcionamento esse mesmo cosmos. O Sol só poderia fazer parte desse perverso esquema como instrumento de dominação e controle. Como diria o poeta maldito William Blake, “a Natureza só pode ter sido obra do Demônio”.

E no final do curta, a gnose: com a ajuda da sua enamorada e colega de fábrica, juntos transformam essa fagulha em uma lâmpada gigantesca que os fará ir em direção aos céus, em um simbolismo de transcendência espiritual e de reconexão com a Plenitude.

Após esse pequeno exercício de leitura de um curta, o leitor poderá optar por uma dessas alternativas ou sugerir uma outra leitura por outro ponto de vista. O que podemos concluir desse exercício é a formulação de uma hipótese de que existem basicamente três leituras possíveis de um produto cultural em geral: o ideológico, o político-conspiratório e o esotérico-místico-gnóstico.

Ficha Técnica

  • Título: Luminaris
  • Diretor: Juan Pablo Zaramella
  • Roteiro: Gustavo Cornillón, Juan Pablo Zaramella
  • Elenco: Gustavo Cornillón, Maria Alche, Luis Rial
  • Trilha musical: “Lluvia de Estrellas”
  • Ano: 2011
  • País: Argentina

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